BDpress #469
O FUNDO DAS TREVAS
Expresso revista E, 18 de Junho de 2016
Texto José Mário Silva
Filipe Melo e Juan Cavia
descem aos abismos da Guerra Colonial
numa novela gráfica exemplar.
Com "Os Vampiros", Melo e Cavia sobem uma parada que já estava bastante alta. Quer pela temática quer pela abordagem ficcional, esta novela gráfica pode chegar a um público mais alargado, nomeadamente aquele que não tem por hábito comprar banda desenhada. Construído como um filme de ação (fruto talvez da experiência cinematográfica dos autores: Melo como realizador, Cavia como diretor de arte), o livro circula por um território raras vezes abordado pela BD portuguesa: a Guerra Colonial. E se havia um risco evidente na escolha de um tema tão delicado, o certo é que o argumento revela-se à prova de bala. Embora nascido alguns anos após o final do conflito, Filipe Melo documentou-se, pesquisou durante quatro anos, e falou com ex-combatentes, tendo reunido mais de 50 horas de depoimentos. O resultado dessa investigação pressente-se em cada prancha, em cada fala, em cada discussão ou troca de insultos entre os soldados. Isto é, na densidade psicológica e absoluta verosimilhança de todas as personagens. No início, os soldados são nove, a que se soma um guia negro. Em vez de nomes próprios, têm alcunhas: o Fátima (porque vem da terra das aparições), o Totobola (sortudo que escapou várias vezes à morte certa), o cigano, etc. Formam um grupo coeso, sob o comando de um sargento duro, e cabe-lhes cumprir uma missão aparentemente simples: entrar no Senegal, em dezembro de 1972, e localizar uma base do PAIGC junto à fronteira. À medida que se adentram no mato, porém, a realidade da guerra assume os contornos de um horror puro, meio caminho andado para a suspensão dos códigos morais e das distinções entre bem e mal. Aos poucos, o grupo vai sendo dizimado e a corda da loucura estica-se até ao ponto de máxima tensão, levando em particular dois dos militares aos respetivos limites: Agostinho, o médico que se insurge contra as atrocidades (cortar orelhas aos inimigos mortos, por exemplo); e Machado, o homem marcado pelo trauma (a culpa pela perda da mulher e filha pequena) que acaba sendo o fio que cose uma história de deambulação pelo fundo das trevas, essa experiência da guerra enquanto personificação de um monstro que tudo devora e, nas palavras do Padre António Vieira (citadas em epígrafe), "quanto mais come e consome, tanto menos se farta". São vários os sentidos da palavra "vampiro": do nome da companhia de comandos, que operava na Guiné, à letra da célebre canção de José Afonso, mas em última análise é uma metáfora para a desumanização de quem combate sem saber porquê, como as páginas finais, ao colocarem face a face dois homens com histórias e perdas simétricas, tão bem ilustram.
Nota final para a irrepreensível qualidade gráfica desta edição, de capa dura e impecavelmente impressa. Também nesse plano, este livro é um marco na BD portuguesa contemporânea. Esperemos que outros se sigam, porque a fasquia passou a estar lá muito em cima.
OS VAMPIROS Filipe Melo e Juan Cavia Tinta da China, 2016. 228 págs. €:24.90
OS VAMPIROS Filipe Melo e Juan Cavia Tinta da China, 2016. 228 págs. €:24.90
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Nota do Kuentro
Deixo aqui fotos de algumas pranchas de Juan Cavia ainda sem estarem finalizadas,
Deixo aqui fotos de algumas pranchas de Juan Cavia ainda sem estarem finalizadas,
expostas na exposição patente na cafetaria
do Centro Cultural e de Congressos (CCC) de Caldas da Rainha:
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