quinta-feira, 6 de novembro de 2014

BDpress #441: ENTREVISTA COM RAFAEL COUTINHO – ILUSTRADOR DA BD “CACHALOTE” EDITADA PELA POLVO E LANÇADA NO AMADORA BD 2014


ENTREVISTA COM RAFAEL COUTINHO
ILUSTRADOR DA BD “CACHALOTE” 
POLVO
OBRA LANÇADA NO AMADORA BD 2014 


UM CACHALOTE INVADE 
A BD NACIONAL

Diário Digital, 6 de Novembro de 2014 
Por Pedro Justino Alves

Rafael Coutinho

A banda desenhada «Cachalote», do escritor Daniel Galera e do artista plástico Rafael Coutinho, ambos brasileiros, foi editada em Portugal pela editora independente Polvo, quatro anos depois da sua edição no Brasil. Uma iniciativa que merece um sonoro aplauso por parte do leitor português, que aguarda que esta diligência de publicar o melhor da BD brasileira continue a dar os seus passos.

«Cachalote» reúne cinco histórias, mais uma que serve de introdução e desfecho da BD. Cinco (ou seis…) histórias independentes entre si, cinco histórias sem início nem fim. Ao leitor é apresentado fragmentos de vidas de personagens que buscam algum sentido para as suas vidas. O ilustrador Rafael Coutinho esteve entre nós na passada semana, onde participou em mais uma edição da BD da Amadora. Oportunidade para falar com o brasileiro, que apresenta um trabalho em «Cachalote» realmente deslumbrante.

Apesar de «Cachalote» reunir histórias independentes, acredita haver alguma unidade entre elas? Talvez a aceitação do destino...
Não acho que seja aceitação. Na minha opinião é algo mais relacionado com a própria busca por uma saída. Ou o fato de que estão eles todos a passar por algum tipo de mudança. Todos estão incomodados, procuram mudar. Cada um a seu modo, evitam aceitar que estão em um lugar de desconforto. E todos encararão esse fato, queiram ou não.

As histórias parecem que não têm início e fim, são fragmentos da vida dos personagens, que têm passado e futuro, todos desconhecidos do leitor. Este é o principal fator “inovador” da trama?
Não sei dizer. Não miramos por nenhuma inovação. Era um dispositivo criativo que nos agradava na época, fazia sentido com o que buscávamos em nossas histórias, individualmente. A maior parte das decisões foram muito intuitivas, contávamos um ao outro essas histórias e criávamos os enredos delas partindo de pressupostos em comum. O "gosto" pelo meio da história saiu naturalmente, não foi uma manobra com um objetivo concreto.

Porque a primeira e a última história não têm sequência no segundo capítulo, como as restantes?
Elas são como o prólogo e o epílogo do livro, um momento poético que surgiu no caminho. Era uma história que queríamos muito contar e que acabou por ficar divertida. Foi muito interessante vê-la existir no livro. Deveria ser uma sexta história, mas nunca conseguimos desenvolvê-la como as demais. Então funcionou bem assim, como introdução e conclusão do todo. Para mim ela reforça o registo insólito e fantástico do livro, deixa claro essa intenção para o leitor. A intenção é dizer: «Não estamos inteiramente a falar de realidade aqui.»

Todas as personagens atravessam algum tipo de provação emocional, provação que coloca em causa as suas convicções. Como isso influi no seu trabalho gráfico?
Boa pergunta. Foram dois anos muito focados no livro. Lembro que procurei algumas coisas diferentes, mas foi na definição de regras gráficas bem determinadas que encontrei um caminho de condução. O que chamamos de “grid” das páginas, que são diferentes em cada história, ajudou a conduzir essas emoções. Quando terminava uma parte do Chinês e entrava na história do Tulio e Vita, lembro que me enchia de energia saber que agora a regra era aquele formato, o plano fixo. E que o ritmo da história deles teria que ser conduzido por aí. Foi como me conectei com os personagens, com essas definições formais. Mas, em cada definição, havia em si a quebra da regra, encontrar a sutileza e as saídas. Enfim, parece insignificante, mas foram restrições que abalizaram o livro. Isso ajudou a ir atrás das emoções.


Apesar de apresentar histórias bastante realistas, há espaço para o surrealismo, o lado onírico. Qual o motivo dessa escolha?
Não houve motivo. Como disse, foi algo muito intuitivo. Gostamos imediatamente, logo nas primeiras linhas que lemos um ao outro. Surgiu de livros anteriores, de filmes, de discos. Trocámos muito material durante o processo. A verdade é que fomos nos conhecendo à medida que trabalhávamos, não nos conhecíamos antes. Tudo aconteceu da vontade de apresentar ao outro uma ideia, um conceito, e achar os pontos em comum. Esse lado onírico, surrealista foi rapidamente um deles.

A verdade é que apresenta uma linguagem bastante cinematográfica em «Cachalote». Em determinados momentos parece que estamos a ver storyboards de filmes.
Gosto muito de cinema, sou muito inspirado por filmes, com determinadas cenas de algumas obras. A verdade é que já falaram dessa aproximação. Mas sou “quadrinista”, desenhista, e não me canso de encontrar novos caminhos no meio. Sempre que acho que esgotei as minhas possibilidades, encontro algum desgraçado genial que mostra algo absolutamente novo e inspirador. Aí tudo recomeça... Na época de «Cachalote» estava muito apaixonado pelos irmãos Dardenne e lembro de rever alguns dos seus filmes, de pensar como seria fazer aquilo em “quadrinhos”. Mas não é um storyboard. BD é BD.

Quais das histórias mais gostou? Em termos de conteúdo e de desenhar?
Cada um tinha um desafio. Gostei muito de entrar no mundo do Tulio e da Vita. Mas acho que o mais cheio de elementos e loucura foi o do playboy. Muitas viagens, muitos lugares diferentes, foi sempre um banho de referências. E o personagem era muito instigante porque é um oposto muito distante à mim, um garoto horrível.

Tem alguma tira que guarde com especial recordação, aquela que gosta de rever sempre que reabre o livro?
Não! Procuro não ver o livro, não me agrada. Gosto e me sinto muito orgulhoso, mas o desenho é muito distante do que eu gostaria que fosse. Ainda chego lá, com calma. Mas, para mim, é como ficar a olhar no espelho. Lá pelas tantas acho que é um exercício de egolatria e vaidade muito descabido. Gosto de desenhar e contar histórias, não de me adorar.

Ficou surpreso quando leu os agradecimentos de Galera, exclusivos a si?
Ri bastante. Ele é um grande amigo e sou muito grato por ter feito este livro com ele. Um grande escritor também, tenho muita admiração por ele. Quero ser o Galera quando crescer.

Como foi trabalhar com o Galera? Poderia falar sobre o processo criativo entre os dois em «Cachalote»?
Ele é muito focado e disciplinado e tem muitos recursos no jogo de contar história. Em algum momento percebes que a história é grande demais e estás perdido. Tudo parece possível e se todos os personagens viajarem para Marte ou morrerem, quem é você pra dizer que não? O Galera foi um norte para mim, alguém que sabia como aquilo chegaria ao fim, sem pressa e desespero. E, embora pareça um cara sério e duro, é muito engraçado e leve. Foram dois anos e meio a desenhar sem parar. Precisas parar às vezes e rir de tudo aquilo.

Penso que é a primeira vez que trabalha com um escritor de ficção. Que diferença encontrou em relação aos seus trabalhos anteriores?
Eu era muito cru até então. Tinha feito muita coisa, mas foi o meu primeiro projeto realmente longo. Tudo é diferente. Mas, como disse, o Galera foi um norte muito importante. Ensinou-me muito.

Prefere trabalhar sozinho ou acompanhado?
Faço sempre muita coisa ao mesmo tempo. Nunca estou só a desenhar ou a escrever. Ou seja, sempre estou só e acompanhado. Gosto de sair de um para o outro, acho que é esse o meu equilíbrio. Mas preciso que estejam os dois lados minimamente equilibrados. Sempre!

Quais as diferenças entre trabalhar sozinho ou acompanhado? Apenas o total controlo da obra?
Um é social e o outro é solitário. Um é conversa e o outro é silêncio. Gosto de ambos.

O Galera é um escritor com uma voz ouvida na literatura brasileira. Você é reconhecido também pelos seus traços e voz autoral, com trabalhos próprios. Como vocês encontraram o equilíbrio para «Cachalote»?
Longas conversas… E o desejo mútuo de andar para frente, de chegar ao fim do processo e de conduzi-lo com nossos melhores esforços. Não sei explicar direito, mas houve isso, um pacto silencioso de profissionalismo e foco. E muita sensibilidade de ambos os lados para deixar o outro criar, ir até o fim de uma ideia, aceitar a visão do outro para algo específico. Desenhei coisas que eu não entendia bem, em nome de uma ideia que o Galera teve, e ele fez o mesmo por mim. Mas abandonamos muitas ideias, forçamos caminhos que depois eram confusos para história. Não foi um equilíbrio perfeito e harmônico com borboletas ao nosso redor.

Como definiria o seu traço?
Não sei dizer. Prefiro não saber.

O que pretendeu mostrar com o seu trabalho gráfico em «Cachalote»?
Não faço ideia. Nada, creio. Queria testar-me em histórias longas, era uma obsessão. Gostei. Encontrei-me!

Sentiu alguma mudança significativa entre o desenho de «Cachalote» e o que tinha feito até então?
Sim. Fui atrás de um desenho que eu ainda não tinha, acho eu. Histórias longas são difíceis porque, em algum momento, você quer mudar o traço e não pode. Encontrei um caminho nessa ambição meio irreal de ir atrás do que havia de mais difícil para mim na época. Por isso é mais difícil esgotar e secar aquele poço.

Consegue definir a importância de «Cachalote» para a sua carreira?
Sim, foi fundamental. Tudo mudou. Virei um contador de histórias longas e um desenhista com relevância, que é chamado para projetos mais complexos do que antes. Sinto que virei adulto com o livro, olho para trás e vejo um garoto cheio de energia. Agora o jogo é outro, envolve um tanto mais de sabedoria e controlo, de esforço focado. «Cachalote» foi um expurgo gráfico, precisava muito de o fazer.

Acredita que já encontrou o seu estilo, algo sempre procurado pelos artistas?
Sim. O que não significa que esteja satisfeito. Mas encontrei.

Ficou surpreso com a edição do livro em Portugal? Acredita que «Cachalote» poderá abrir portas para os seus livros?
Espero que sim e encontrei na Polvo uma editora muito familiar ao que fazemos no Brasil atualmente. Um misto de projetos artísticos, experimentais e comerciais. O projeto gráfico está lindo e tudo foi feito com pouquíssimo tempo. Não achei que seria possível, também fiquei muito impressionado com a qualidade gráfica. E porque edito e publico livros no Brasil, fico identificado com editores como o Rui Brito, um cara meio “do-it-your-self” que não espera as coisas acontecerem ou melhorarem. É uma pessoa que está envolvido na construção da cena e da cultura de uma BD de autor, forte, desde sempre.

Conhece algo da BD portuguesa? Se sim, qual a sua opinião?
Não conheço muito, mas do pouco que vi, achei muito bom. Os “quadrinhos” portugueses fazem parte de uma tradição visível (principalmente para quem é de fora), algo "franco/belga/espanhol". Estou a colocar muita coisa diferente num pote só, mas acredito que, para quem não conhece, entra bem “certinho” ali no meio de um Miquelanxo Prado, um Muñoz, um Asterix e um Moebius. Mas há um novo momento para todos nós, onde o design, a animação e o cinema entraram no jogo. Recursos digitais que parecem estar a fazer bem para todo mundo. Adoro as coisas da Chili com Carne e ElPep e identifico-me com aquela onda mais “autoral-fora-do-padrão-estranha”, mas também fico muito impressionado de ver uma Joana Afonso na livraria.

Por último, o que significa o cachalote do livro?
Não há um significado. Se eu definisse um estaria a tirar do leitor todo o envolvimento. Para mim é um símbolo de algo profundo e antigo, algo emocional. Mas vou parar por aqui...


Daniel Galera e Rafael Coutinho

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