domingo, 2 de agosto de 2015

BDpress #463 – FINALMENTE O VERÃO – DE JILLIAN TAMAKI E MARIKO TAMAKI

BDpress #463
FINALMENTE O VERÃO 
DE JILLIAN TAMAKI E MARIKO TAMAKI 

Público – Revista Ípsilon, 31 de Julho de 2015

AS FÉRIAS DE UMA RAPARIGA
A passagem do tempo num livro enternecido pelas personagens. 

Texto de José Marmeleira

FINALMENTE O VERÃO
Jillian Tamaki e Mariko Tamaki (Trad. Isabel Minhós Martins) Edição Planeta Tangerina
Distinguido com o Prémio Eisner (melhor obra gráfica) e elogiado pela crítica francesa e americana,


Finalmente o Verão, das primas canadianas Jillian e Mariko Tamaki, chegou às livrarias portuguesas pela mão da Planeta Tangerina, na colecção Dois Passos e um Salto. Trata-se de uma estreia notável da editora no domínio da banda desenhada, mas, também, pouco comentada, quase invisível em Portugal (se exceptuarmos a recepção pelo blogue Lerbd). A que se deve o recato? Talvez ao limbo em que a BD, outrora uma arte* das massas, se tem exilado, indecisa entre a expansão artística* e a fidelidade à sua história cultural.

Mas esse é um debate para outra ocasião.

Entretanto, Finalmente o Verão escolhe o segundo caminho, reivindicando a banda desenhada como arte* de contar histórias por meio do desenho, da figuração humana e de recursos gráficos centenários.

E a história que conta é relativamente simples e familiar. Narra a entrada de Rose na confusão e na excitação da adolescência durante as férias de Verão com a família e a amiga, Windy. A primeira paixoneta (por um rapaz da vila local), a descoberta da sexualidade e a aproximação desconfiada ao mundo dos adultos revelam-se, num tom pausado e meigo. Fale-se, sem pudor, de meiguice a propósito deste livro. Há um enternecimento pelas personagens que resiste à sucessão das tramas, aos fantasmas do passado e às tragédias que se avizinham. Os diálogos são curtos e eloquentes e as peripécias desenvolvem-se a uma distância digna do leitor, ao mesmo tempo que permitem o acesso a uma intimidade. Tal equilíbrio é consagrado pelo traço redondo de Jillian, abonecado mas realista, pelas tonalidades claras e escuras do azul, pelas spash-pages que suspendem ou sossegam os diálogos. A leitura faz-se numa respiração lenta, para que o leitor também possa ver.

Com cautela é possível inscrever Finalmente o Verão no universo do Bildungsroman. A Rose que regressa à casa de férias não será a mesma que faz as malas no fim do Verão. Embora continue a correr para a praia do lago Awago na companhia de Windy, vai deixando de partilhar com a amiga os mesmos desejos e anseios. O seu tempo e o seu olhar vão sendo outros, e de uma irremediável solidão. As autoras representam esta mudança com mestria, no primeiro encontro com o rapaz (páginas 36-37) ou na “fuga” de Rose para a casa, assustada com os ruídos da noite, depois de assistir ao filme Sexta-feira 13 (páginas 206-207). Os visionamentos de filmes de terror (no inevitável portátil) repetem- se, aliás, ao longo do livro, como discretos e bem-humorados rituais de passagem. Ao medo da noite, seguir-se-á, sempre, o começo da manhã.

Alheios às dores de crescimento de Rose, os pais enovelam-se nos seus dramas. Vivem uma crise conjugal cuja origem se desvelará numa fantasmática e comovente sequência: figura esfingica e introspectiva, a mãe entrará no lago para abraçar e salvar outra personagem. Embora preservando a leveza e a banalidade das situações quotidianas (por exemplo, com a presença “sonora” das onomatopeias), as autoras utilizam as possibilidades expressivas da banda desenhada para distorcer os rostos (o efeito do fogo no semblante da mãe de Rose) ou transformar as paisagens e os elementos naturais (o lago, a praia, o fogo, a água). O fantástico pinta assim a realidade, mas sem a dominar. É sempre ò ponto de vista de Rose quem o introduz.

Finalmente o Verão é também um livro sobre a passagem do tempo, ao “desenhar” o entrançar do cabelo de Rose, as brincadeiras com as gomas ou, sobretudo, a despedida, com o vidro traseiro do carro a enquadrar o aceno enérgico de Windy. São momentos não muito diferentes daqueles que Antonius Block, o cavaleiro de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, insta os seus colegas de viagem a lembrar e a acarinhar. E é um privilégio poder reencontrá-los num livro assim, que começa com um pai a proteger o sono da filha.


(*) Nota do editor do Kuentro: Evidentemente que não podemos concordar nunca com estas definições de “arte” e “artísticas” de José Marmeleira. A banda desenhada não é uma arte. Ponto final. É apenas um meio de literatura gráfica popular que junta duas artes, a literária e a ilustração.

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