quarta-feira, 9 de outubro de 2013

MORREU MARIANA VIEGAS – A “TIA NITA”



O meu primeiro encontro com a “tia Nita” aconteceu em 1995, no programa para a TVI Dar que falar, de Júlio Isidro, em que também compareceu Carlos Costa, do Trio Odemira, que se havia iniciado na edição de livros de BD, com a editora Época de Ouro. Fui apresentar os livros d’As Aventuras de Paio Peres editados nesse ano. Depois encontraria a “tia Nita” em algumas outras ocasiões, especialmente em Festivais da Amadora...

Aqui fica o texto de Leonardo De Sá, escrito para este post e a transcrição do jornal O Mirante, de Santarém, com a biografia dessa insigne Senhora, muito ligada à BD portuguesa como poderão ler.

Faleceu a “nossa” Tia Nita

Esta grande senhora chamava-se Mariana Simões Lopes Pereira Viegas. Era mãe do actor Mário Viegas. E, entre 1943 e 1947, foi directora da quase totalidade dos 180 pequenos números de A Formiga (que incluiu colaboração de E. T. Coelho, Jayme Cortez, Jesús Blasco, Arturo Moreno, Ángel Puigmiquel, entre outros), o suplemento “para meninas” da célebre revista infanto-juvenil O Mosquito, onde utilizava o pseudónimo “Tia Nita”, com a consonância familiar que era muitas vezes costume usar naquela época. Era a mais nova irmã de Cardoso Lopes Júnior, o Tiotónio do mesmo O Mosquito e muitas outras revistas de histórias aos quadradinhos, que em 1950 emigrou para o Brasil e, por assim dizer, por lá desapareceu.

Depois daqueles “pecados de juventude” casou-se com Francisco Pereira Viegas, farmacêutico e figura destacada da sociedade de Santarém, onde o casal tomou residência e onde foi professora. Manteve sempre o interesse pela literatura infanto-juvenil e, em particular, pela banda desenhada. Foi ela, por exemplo, quem consegui trazer ao conhecimento pessoal do meio bedéfilo a figura da Amélia Pae da Vida, a primeira mulher a ter realizado bandas desenhadas em Portugal, a partir de 1924 na revista ABC-zinho.

Ao longo dos anos em que pude trocar impressões com ela, já cega e com idade avançada, mas sempre com grande lucidez, sempre me dizia e repetia que “não gostava de morrer sem saber o que tinha acontecido ao irmão desaparecido no Brasil”. Foi em grande parte por isso que realizei a pesquisa que foi, finalmente, bem-sucedida, sabendo-se hoje a história completa — que contei no livro Tiotónio: uma vida aos quadradinhos (Lisboa: Bonecos Rebeldes, 2008).

Esta grande senhora chamava-se Mariana Simões Lopes Pereira Viegas, mas nós preferíamos antes tratá-la simplesmente por “Tia Nita”. Faleceu no dia 6 de Outubro de 2013, em Santarém. Tinha 95 anos.

Leonardo De Sá

A capa do primeiro número de A Formiga, que saiu a 22 de Setembro de 1943, é de Eduardo Teixeira Coelho.

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 O MIRANTE, 14 Dezembro 2005

Mariana Viegas foi pioneira e navegadora contra a corrente numa época em que a mulher tinha pouco protagonismo social. Fez banda desenhada, praticou hóquei, aprendeu árabe e sánscrito. Rasgou horizontes, rompeu preconceitos. Uma história de vida reconhecida recente­mente em Santarém.

Integrou a primeira equipa feminina de hóquei em patins de que há memória em Portu­gal. Fundou, executou e dirigiu a primeira publicação juvenil de banda desenhada dedicada ao público feminino - "A For­miga", suplemento do jornal "O Mosquito" que fez furor no nosso país há meia dúzia de décadas. Assinava como Tia Nita.

Foi professora de méritos reconhecidos em colégios par­ticulares de Santarém e no an­tigo magistério primário. Vi­veu na sombra do carisma do seu falecido marido, Francisco Viegas, farmacêutico e figura reputada em Santarém na se­gunda metade do século XX. E foi mãe de Mário Viegas, actor genial e polémico também já falecido.

A folha de serviços de Ma­riana Viegas não deixa mentir: está ali uma mulher extraordi­nária, com uma vida cheia. Que nunca teve os seus méritos devidamente reconhecidos pela cidade que adoptou como sua em meados da década de quarenta.

Foi para colmatar essa la­cuna que a Escola Superior de Educação de Santarém (ESES) lhe promoveu uma homena­gem na manhã de 7 de Dezem­bro, no âmbito de um Seminá­rio Internacional de Museolo­gia da Infância e da Educação. Na ocasião foi-lhe entregue a medalha da escola, pela presi­dente da ESES Maria José Pagarete.

Uma homenagem à artista e mulher de cultura, mas tam­bém um tributo à cidadã gene­rosa e solidária que ainda hoje, aos 87 anos, dá aulas de litera­tura infanto-juvenil na Univer­sidade da Terceira Idade de Santarém.

"A idade não é um contra quando se quer trabalhar", ex­plicou Mariana Viegas na sua voz doce e cristalina. É o seu contributo para pôr os avós a contar histórias aos seus netos. "A imaginação das crianças precisa de alimento". E é esse alimento que os avós, os ido­sos, podem dar aos mais novos através da literatura.

Eulália Marques, professo­ra que foi sua colega no magis­tério primário, traçou-lhe o per­fil. Com emoção. Mariana foi pioneira em muitas activida­des. Estudou no ensino público quando poucas mulheres o fre­quentavam. Matriculou-se em Filologia Clássica porque era o curso mais difícil e com menos gente matriculada. Teve como companheiros na universidade nomes como Sophia de Mello Breyner, Jacinto Prado Coe­lho, os irmãos Saraiva, Antó­nio José e José Hermano.

Mariana Lopes Viegas foi também uma das primeiras pro­fessoras de literatura para cri­anças no nosso país. Aprendeu árabe, arqueologia e sánscrito por puro gozo. Como um desa­fio à ordem estabelecida, num país onde as mulheres eram pouco mais que figuras deco­rativas na sociedade da época.

A curiosidade e o espírito empreendedor herdou-os de uma família recheada de "gen­te fora do comum". O pai foi empresário e inventor. O irmão António foi um talento na escri­ta e no desenho e pioneiro do jornalismo juvenil em Portu­gal. O irmão Alvaro foi jogador de renome no hóquei em pa­tins, que jogou com os irmãos Serpa ou com Jesus Correia. Foi ele que a influenciou a pra­ticar hóquei na Amadora.

José Ruy, autor de banda desenhada que trabalhou em O Mosquito, conheceu de perto a família Lopes. E garante que vem dessa publicação - que chegou a tirar 60 mil exempla­res duas vezes por semana - a forte ligação que a Amadora tem à banda desenhada.

A professora Teresa Cláu­dia Tavares referiu-se à home­nageada como alguém, que não foi incentivado a fazer carrei­ra, a deixar o nome escrito. Uma verdadeira formiga, "que trabalhava muito mas não po­dia dar muito nas vistas". "Que fez muito mas podia ter feito muito mais".

O rosto ladino e jovial ca­mufla a cegueira que a atingiu há dois anos. Depois de uma luta estóica de duas décadas, que envolveu uma operação em Inglaterra. Mas o verdadei­ro cego é aquele que não quer ver e Mariana Viegas não de­siste de olhar longe. Vai orga­nizando os seus papéis e as suas memórias, para um dia, quem sabe, todos podermos ler a história desta mulher frágil de alma grande e espírito inquieto que conseguiu ultrapassar mui­tas barreiras num tempo em que a mulher servia para parir, criar e chorar.

Como referiu Eulália Mar­ques, "valia a pena escrever as memórias de Mariana Viegas". Uma mulher "que soube sub­verter as. regras tradicionais realizando-se na vida pública e como professora de bem falar e bem escrever português".

João Calhaz
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CULTURA & LAZER

Recordar Amélia Pai da Vida

O seu nome pouco diz à maioria dos escalabitanos, que não saberão que Amélia Pai da Vida foi a primeira autora de banda desenhada publicada no país, rompendo uma barreira e penetrando num mundo até aí conjugado no masculino.

A autora, já falecida há muitos anos, foi também evocada pela Escola Superi­or de Educação. E foi Maria­na Viegas quem a recordou, lamentando que o seu vasto espólio artístico não tenha sido aproveitado pela família.

Mariana Viegas sugeriu que dentro da ESES alguém se dedicasse a escrever um livro sobre essa figura que, para além de ter sido profes­sora e explicadora, "foi a primeira mulher em Portu­gal a fazer banda desenhada".

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2 comentários:

  1. Um abraço de muita saudade, admiração e profunda amizade que nos ligou por décadas. A Tia Nita não morreu, foi o seu corpo que nos eixou, mas connosco fica o seu saber, tudo de importante que criou e a sua gentil imagem.
    José Ruy

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  2. Inesquecível presença da Tia Nita nos primeiros anos da Tertúlia BD de Lisboa,
    então no restaurante "Chico Carreira", no Parque Mayer, por cima da "Gina" (salvo seja).

    Da Tia Nita e do seu filho Mário Viegas, que bateu todos os recordes de "discurso do homenageado" pós-jantar. Foram 45 minutos bem medidos,
    de enormes elogios à tertúlia.

    'A partir de hoje, a minha mãe fica obrigada a vir todos os meses à tertúlia.
    Vem de Santarém e não interessa como. A pé, de carro, de comboio, de carroça. E eu também venho".

    Não apareceram mais, mas esta visita foi inesquecível. E disse a Tia Nita:
    "Não se assustem que eu não vou falar tanto como o meu filho". Falou cerca
    de 30 minutos. Foi verdade.

    A caminho das quatro centenas de encontros mensais da TBD, este figura certamente no meu top-ten de memórias.

    Alguns anos depois deste encontro, tive oportunidade de me encontrar com a Tia Nita em Tomar. O Nuno Garcia Lopes organizou uma semana poética em
    Agosto ou Setembro de 1996 e eu fui lá passar férias.
    Logo no dia de abertura, houve uma homenagem feita pelo Nuno ao Mário Viegas, que tinha falecido há muito pouco tempo.
    Tive oportunidade de ver com todo o cuidado e demoradamente, o álbum de recortes que deixou, com toda uma vida de recordações.

    A Tia Nita e o pai de Mário Viegas não podiam deixar de estar presentes.
    A Tia Nita era mesmo uma senhora muito simpática, com a sua dose se subversão escondida na sua aparência muito bem comportada.

    Paz à sua alma.

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