terça-feira, 28 de janeiro de 2014

BDpress #402: BLAKE E MORTIMER DESSINTONIZADOS DO SEU CRIADOR, por Eurico de Barros, no D.N.



BLAKE E MORTIMER 
DESSINTONIZADOS DO SEU CRIADOR

Diário de Notícias, Quociente de Inteligência, Sábado, 18 de Janeiro de 2014

'A ONDA SEPTIMUS', O NOVO ÁLBUM DAS PERSONAGENS CRIADAS 
POR EDGAR P. JACOBS, ATREVE-SE 
A CONTINUAR 'A MARCA AMARELA'. 
E FALHA.
Por Eurico de Barros

A capa original e a versão portuguesa da Asa para a FNAC


A ONDA SEPTIMUS
de Jean Dufaux, Antoine Aubin e Étienne Schreder
Edições Asa, 72 págs. 
ISBN9789892324784 
€ 15,90

Lacónico e brutal, o veredicto foi deixado nas caixas de comentários de um dos principais sites de banda desenhada (BD) da internet: "Blake e Mortimer morreram com Jacobs, mas estes cadáveres editoriais continuarão a andar enquanto vocês os comprarem." O "cadáver" editorial a que o comentador se refere é A Onda Septimus, o novo álbum das aventuras de Blake e Mortimer, e o oitavo feito por uma das várias equipas de desenhadores e argumentistas que se têm revezado na autoria da série desde que esta foi retomada em 1996 com O Caso Francis Blake, nove anos depois da morte do seu criador, Edgar P. Jacobs (1904-1987).

Com argumento de Jean Dufaux e desenhos de Antoine Aubin e Étienne Schréder, A Onda Septimus é o segundo álbum de BD em língua francesa de maior tiragem de 2013, com meio milhão de exemplares, apenas ultrapassado pelos dois milhões de Astérix entre os Pictos, o primeiro do pequeno gaulês sem a participação de Uderzo e escrito e desenhado por uma nova dupla. E é aquele que mais debate, mais divisão e mais acrimónia parece estar a causar entre os leitores de BD e os seguidores da série Blake e Mortimer em especial, a julgar pelo que se tem escrito, opinado e fulminado sobre ele, em papel mas também na internet, dos sites e blogues especializados em BD até às redes sociais e às caixas de comentários da Amazon francesa.

A toda esta emoção e esgrima de opiniões não é alheio o facto de, pela primeira vez desde 1996, argumentista e desenhadores, em vez de se terem limitado a conceber novas histórias para as personagens de Blake e Mortimer, do seu criador, tenham decidido fazer uma continuação de uma das aventuras originais de Jacobs. E foram logo pôr a barra altíssima e escolher uma das mais emblemáticas e míticas, um dos álbuns de referência da história da BD, da escola franco-belga e da "linha clara", que melhor expressa o universo narrativo e gráfico do genial Edgar P. Jacobs e é considerado por muitos como o melhor da série: A Marca Amarela, originalmente publicada em continuação na revista Tintin entre 1953 e 1954, e editada em álbum em 1956.

Na apresentação pública de A Onda Septimus em Bruxelas, no passado dia 22 de dezembro, o seu argumentista, Jean Dufaux (que vem substituir Jean Van Hamme na série), justificou e explicou esta ousadia, que alguns classificarão mesmo de sacrilégio: "Os templos são feitos para ser violados (...), mas na realidade eu não estava à espera de ir atacar uma tal obra (...), para mim o melhor álbum de Jacobs, Na verdade, não me sentia no meu lugar entre todos os outros que até agora retomaram as personagens de Blake e Mortimer. E pensei que a minha abordagem mais sincera teria de passar por partir de Jacobs e afrontar a obra naquilo que ela tinha de mais incontornável, o mito d'A Marca Amarela."

E assim, Blake e Mortimer voltam, em A Onda Septimus, a ter de enfrentar, em Londres, Olrik e um Septimus que se manifesta numa encarnação "magrittiana". Se o desenho de Aubin e de Schréder consegue chegar muito perto do de Jacobs, sem fazer passar a impressão de pastiche torturado, já o enredo concebido por Dufaux deixa muito mais a desejar do que o grafismo.

É precisamente pela história que A Onda Septimus claudica, devido a uma deficiente combinação dos elementos policiais, aventurosos e de ficção científica em que Edgar P. Jacobs era exímio, por uma falta de verosimilhança que se vai acumulando à medida que o enredo progride, e por uma complicação extrema da linha narrativa, que instala gradualmente a confusão e a irritação no leitor e contradiz a fluidez, a clareza e a capacidade de exposição, elaboração e resolução de Jacobs.

Há ainda a insólita transformação de Olrik no "herói" do enredo, e em aliado pontual de Blake e Mortimer face a um inimigo comum. É uma escolha que descaracteriza a personagem e a esvazia das suas virtualidades enquanto vilão carismático e inimigo figadal e crónico daqueles ao longo de toda a série (alguém escreveu que a personagem de Olrik estava a ser "enriquecida na sua identidade, e Jean Dufaux disse que Olrik "ganhava em humanidade o que perdia em força").

Se, em termos gráficos A Onda Septimus consegue mimar mais do que aceitavelmente A Marca Amarela, em termos de história, é a sua negação e chumba estrondosamente no exame. Não é de ânimo leve que se vai violar· um templo, sobretudo quando esse templo toma a forma de um álbum de BD clássico entre os clássicos. A Onda Septimus tenta, mas não consegue, sintonizar-se na frequência de Jacobs.

Por outro lado, o seguidor e admirador de longa data das aventuras de Blake e Mortimer que deu o beneficio da dúvida à série quando ela foi reativada em 1996, pode juntar alguma inquietação à insatisfação sentida com a leitura de A Onda Septimus. É que se adivinha, por alguns elementos, que esta história prepara o terreno para que um dos próximos álbuns de Blake e Mortimer, se não mesmo o próximo (da responsabilidade da dupla Yves Sentei/André Julliard, autores de A Conspiração Voronov, Os Sarcófagos do 6.º Continente, O Santuário de Gondwana e O Julgamento dos Cinco Lordes), venha, de alguma forma, a ser a continuação de outro dos álbuns originais de Jacobs.

A origem da gigantesca nave que Blake e os seus companheiros descobrem nas entranhas de Londres nunca é explicada, tal como nunca é sugerida a identidade do seu misterioso ocupante, que não sai do casulo que é o escafandro em que está metido. Tendo em conta que o engenho espacial parece ter saído direitinho de O Enigma da Atlântida, poderá dar-se o caso de o seu ocupante ser o Magon, que sobreviveu ao cataclismo da Atlântida e agora vem voltar a manifestar-se no universo das aventuras de Blake e Mortimer? A explosão final poderá querer dizer que a nave vinda não se sabe de onde foi destruída, mas os mais batidos nestas coisas das continuações, seja no cinema, seja na BD, sabem que nada é definitivo. A resposta virá nos próximos álbuns.

Os problemas, os debates e as dúvidas que se põem sobre a legitimidade ou não da continuação de séries de BD após a morte dos seus autores ganham sempre um novo fôlego quando surgem apostas editorialmente arriscadas e controversas, com reações longe de consensuais junto de leitores e críticos, como é o caso de A Onda Septimus, independentemente do seu bom resultado comercial (há uma semana, na lista de vendas de álbuns de BD publicada pelo site especializado BDGest – www.bdgest.com –, A Onda Septimus aparecia em terceiro lugar, à frente do novo Astéríx). E que dão também vasta munição aos mais puristas e aos detratores militantes destas continuações de séries de BD consagradas. Mas o imperativo comercial tem muita, muita força e a Nona Arte também não lhe escapa.

São conhecidos os problemas e as dificuldades que, no final da vida, Edgar P. Jacobs teve na gestão da sua obra e na edição dos últimos álbuns de Blake e Mortimer. Descontente coma atuação da Le Lombard, o autor associou- se em 1979 ao seu amigo e editor discográfico Claude Lefrancq e a Christian Vanderaeghe, para criar as Éditions Blake et Mortimer, garantindo a Jacobs o controlo editorial e comercial da sua obra. Anos depois da morte do autor de A Marca Amarela, a editora seria vendida à Dargaud, sendo hoje uma filial do grupo Media Participations.

A decisão da Dargaud de relançar, em 1996, as aventuras de Blake e Mortimer obedeceu a um projeto eminentemente comercial, mas que tinha de ter a dignidade, a credibilidade e a qualidade necessárias para ser aceite pelos leitores de BD, e muito especialmente pelos admiradores da série. Desde a edição de Mortimer contra Mortimer, a segunda parte de As Três Fórmulas do Professor Sato, e que à morte de Jacobs foi concluída por Bob De Moor (1)" em 1990, quase 20 anos depois da publicação da primeira parte, que as vendas dos fundos dos álbuns de Blake e Mortimer estavam a deslizar. Para a Dargaud, o regresso das personagens em novas aventuras, necessariamente fiéis ao traço e ao espirito das originais, a ter o sucesso previsto, além de ser uma nova fonte de receitas, daria uma segunda vida à venda dos álbuns clássicos.

Na altura, Jean Van Hamme, o argumentista de O Caso Francis Blake, o primeiro álbum apócrifo de Blake e Mortimer, exprimiu-se de forma muito pragmática numa entrevista sobre o seu papel, e o do desenhador Ted Benoit, na "segunda vida" da dupla de heróis de Edgar P. Jacobs: "Somos mercenários que levam a sério a causa que nos pediram para defender." E adiantava, embora falando também como parte interessada: "Todos sabemos que, na ausência de novos álbuns, a série teria, lentamente, sido esquecida pelas novas gerações."Claro que estas afirmações podem ser rebatidas com o exemplo da continuidade da popularidade e das vendas dos álbuns de Tintin, cujas aventuras Hergé não quis que fossem continuadas por outros autores depois da sua morte, graças à gestão que tem sido feita pelos detentores dos direitos de autores do intrépido repórter. Mas nem Uderzo, que não desejava a continuidade de Astérix após a sua reforma, conseguiu resistir ao peso dos milhões e milhões de exemplares de álbuns da série vendidos, às pressões da editora Hachette, que detém os direitos das aventuras de Astérix, dos seus familiares e da filha do falecido Goscinny, e ao apelo dos nédios cheques de royalties que pingam regularmente, e autorizou que Astérix passasse para as mãos de novos autores, embora sob a sua supervisão.

Mesmo Benoit Mouchart e François Rivière, biógrafos de Jacobs, autores de La Damnation d'Edgar P. Jacobs, escreveram neste livro: "Privados do impulso editorial suscitado por este retomar.das suas aventuras, Blake e Mortimer não teriam tardado a ir juntar-se ao museu de cera da banda desenhada."

Aplauda-se ou deteste-se, A Onda Septimus não, é apenas o novo álbum da "segunda vida" editorial de Blake e Mortimer, que se atreveu a continuar A Marca Amarela. Já não estamos a falar apenas de uma série de BD, mas sim de uma marca com uma forte e variada componente de merchandising. Há T-shirts, bonés e blusões Blake e Mortimer, calendários, jogos, portfólios de desenhos, coleções de miniaturas dos veículos que aparecem nos álbuns, perfumes, chás, etc.

Os números de vendas são impressionantes logo desde O Caso Francis Blake, do qual se comercializaram 610 mil exemplares. Desde ai, cada nova aventura de Blake e Mortimer vende entre 400 mil e meio milhão de exemplares, enquanto os álbuns clássicos da autoria de Edgar P. Jacobs saem das livrarias a uma média de entre 250 mil e 300 mil cópias por ano, o que faz da série uma das de maior sucesso comercial do mercado da BD, apenas superada pelo inevitável Astérix.

Os valores movimentados pela marca Blake e Mortimer apenas no plano editorial andam na casa das muitas dezenas de milhões de euros. São números com que Edgar P. Jacobs nunca terá sequer sonhado quando era vivo. Tal como nunca deve ter imaginado que, certo dia no século XXI, alguém iria escrever e desenhar uma continuação da sua obra-prima A Marca Amarela.

1) Bob de Moor (1925-1992) - era o pseudónimo do autor belga de BD Robert Frans Marie de Moor, colaborador de longa data de Hergé e criador da série Barelli.

Bibliografia selecionada

'A Marca Amarela'
(1956)
Edgar P. Jacobs
Edições Asa
7,98 euros

Feito após O Segredo do Espadão (1950) e os dois volumes de O Mistério da Grande Pirâmide (1954/55), A Marca Amarela é na opinião de muitos, a obra-prima de Jacobs. 

'O Enigma da Atlântida
(1957)
Edgar P. Jacobs
Edições Asa
7,98 euros

O elemento de ficção científica domina esta aventura que se inicia nos Açores e conduz Blake e Mortímer à descoberta da mítica Atlântida, subterrânea e dividida entre bárbaros e civilizados.

'A Armadilha Diabólica
(1962)
Edgar P. Jacobs
Edições Asa
7,98 euros

Mortímer é o principal protagonista deste álbum, que sucede a S.O.S.Meteoros (1959), e viaja no tempo, para o passado pré-histórico e medieval, e para um futuro longínquo.

Nota: não temos a capa da Asa, mas é igual a esta da Meribérica
'O Caso Francis BIake'
(1996)
T. Benoit/ Van Hamme
Edições Asa
7,98euros

Primeiro álbum da "nova vida" de Blake e Mortimer. Antes de morrer, Jacobs ainda fez O Caso do Colar (1967) e a Parte 1 de As Três Fórmulas do Professor Sato (1977), concluído por Bob de Moor em 1990.

'Le Monde d'Edgar P. Jacobs
(2005, reedição)
C. Le Gallo/D. Van Kerckhove
Le Lombard
21,38 euros na amazon.fr

Originalmente publicado em 1984, este estudo de referência da obra de Edgar P. Jacobs inclui um completíssimo dossiê sobre A Marca Amarela.

'Un Opéra de Papier'
(2013, reedição)
Edgar P. Jacobs
Gallimard Jeunesse
27,55 euros na amazon.fr

O "pai" de Blake e Mortimer publicou estas "memórias gráficas" em 1981, seis anos antes da sua morte. Nelas, revisita todas as peripécias da sua vida e a sua genial obra.


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BIBLIOGRAFIA 
D'AS AVENTURAS DE BLAKE E MORTIMER
Nota extra texto do Kuentro - com as capas das edições portuguesas mais antigas

1947 – O Raio U, de Edgar P. Jacobs
1950 – O Segredo do Espadão - Tomo 1, de Edgar P. Jacobs
1953 – O Segredo do Espadão - Tomo 2, de Edgar P. Jacobs
1953 – O Segredo do Espadão - Tomo 3, de Edgar P. Jacobs
1954 – O Mistério da Grande Pirâmide - Tomo 1, de Edgar P. Jacobs
1955 – O Mistério da Grande Pirâmide - Tomo 2, de Edgar P. Jacobs
1956 – A Marca Amarela de Edgar P. Jacobs
1957 – O Enigma da Atlântida de Edgar P. Jacobs
1959 – S.O.S. Meteoros de Edgar P. Jacobs
1962 – A Armadilha Diabólica de Edgar P. Jacobs
1967 – O Caso do Colar de Edgar P. Jacobs
1977 – As Três Fórmulas do Professor Sato - Tomo 1, de Edgar P. Jacobs
1990 – As Três Fórmulas do Professor Sato - Tomo 2, de Edgar P. Jacobs & Bob de Moor

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1996 – O Caso Francis Blake de Ted Benoît & Jean Van Hamme
2000 – A Maquinação Voronov de André Juillard & Yves Sente
2001 – O Estranho Encontro de Jean Van Hamme & Ted Benoît
2003 – Os Sarcófagos do 6.º Continente - Tomo 1, de Yves Sente & André Juillard
2004 – Os Sarcófagos do 6.º Continente - Tomo 2, de Yves Sente & André Juillard
2008 – O Santuário de Gondwana - de Yves Sente & André Juillard
2009 – A Maldição dos Trinta Denários - Tomo 1, de René Sterne, Chantal de Spiegeleer & Jean Van Hamme
2010 – A Maldição dos Trinta Denários - Tomo 2, de Jean Van Hamme & Antoine Aubin
2012 – O Juramento dos Cinco Lordes - de Yves Sente & André Juillard
2013 – A Onda Septimus, de Jean Dufaux, Antoine Aubin & Étienne Schreder

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