Gazeta da BD #81 – 8 Set. 2017
Jorge Machado-Dias
A MINHA CASA NÃO TEM DENTRO
de António Jorge Gonçalves
Memórias da “quase morte” do Autor
Tenho pena de nunca ter trabalhado com António Jorge Gonçalves, que é um autor/ilustardor que admiro bastante. Aliás conhecemo-nos muito pouco, uma vez que as vicissitudes da vida, raramente nos premitiram encontros pessoais, senão mesmo os muito esporádicos, em festivais de BD da Amadora e pouco mais. Daí que tenha recebido, com alguma estupefacção, o livro A Minha Casa Não tem Dentro, editado pela Abysmo, de João Paulo Cotrim, com um autógrafo do próprio autor e que me sensibilizou e agradou muito. Mas só quando o comecei a ler, percebi que este era o resultado imagético de uma complicada intervenção cirurgica de AJG, de que felizmente recuperou.Como o próprio autor refere na pequena introdução ao livro: “No dia 22 de Fevereiro de 2016 – por causa de uma veia que rebentou no meu estômago – morri e regressei à vida, num acontecimento que atravessou espaço e tempo separando e unindo em simultâneo. Descrevê-lo com desenhos fez parte dessa viagem.”
Claro que o trabalho de AJG é sempre visto com “alguma desconfiança” pelos puristas da BD. Isto porque, como justamente refere João Ramalho Santos, em artigo publicado no Jornal de Letras sobre este livro, “classificar o trabalho de António Jorge Gonçalves como ‘inclassificável’ é uma opção possível, mas fácil”.
Ora neste livro, a classificação que pode surgir de imediato nas cabeças dos tais puristas (ou mesmo nos mais comuns leitores de BD), é de facto o “inclassificável”. Logo porque AJG recorre a um tipo de discurso gráfico puro, em que as palavras se encontram em páginas separadas das ilustrações. E, mais “grave” ainda, aquelas palavras parecem não ter nada a ver com as ilustrações. “Isto alguma vez é banda desenhada?” Perguntaram-me já duas ou três pessoas a quem emprestei o livro e que estão habituadas a ler os “balões”, arrumados em cada vinheta, por cima das respectivas ilustrações.
Para nos situarmos na questão da “leitura” deste livro, posso dizer que, como seria normal, vi as imagens e li as legendas, sequencialmente do princípio ao fim, depois vi todas as imagens e de seguida li todas as legendas e por fim, inverti a ordem: li todas as legendas e de seguida “li” todas as imagens demoradamente. Nestas leituras o livro fez todo o sentido. É só uma questão de leitura e o livro ganha um fascínio, que uma leitura apressada não contribui para o seu entendimento. Quase posso afirmar que este, é um livro “que se mastiga” e depois, quando se “digere”, é o fascínio absoluto, pela dôr, dúvida e finalmente o regresso à vida, que a última página regista magistralmente. Isto tudo na minha opinião, claro.
Mas é preciso fazer aqui um pequeno périplo pela carreira do autor, para se perceber quem é ele e o que fez até agora. Nasceu em 1964 em Lisboa, é autor de banda desenhada, cartoonista, performer visual, ilustrador, cenógrafo e professor. Em 1978, António Jorge Gonçalves editava o fanzine Graphic, em 1981 criou para o semanário Se7e, a rúbrica Disco na Pranhceta, onde ao que parece ilustrava músicas de discos. Depois colaborou no Correio da Manhã, na Capital, etc... As suas primeiras influências foram, segundo confessa, de Moebius, Loustal e principalmente Didièr Comes. Em 1985 publicou Balas Perdidas... no suplemento Tablóide, do antigo Diário Popular, na rúbrica Divulgação BD, de Geraldes Lino.
Em 1993 estreou-se em álbum, editado pela Asa, com Filipe Seems – Ana, com argumento de Nuno Artur Silva. Desta série sobre o investigador Filipe Seems, seriam publicados mais dois álbuns que serão tema de próxima Gazeta da BD, na série Heróis da BD Portuguesa #11.
É certo que essas obras iniciais como As aventuras de Filipe Seems tinham uma matriz de BD franco-belga filiada na retoma contemporânea da "linha clara", que se foi desvanecendo (em termos de história e estilo) especialmente no último volume da trilogia e depois nas colaborações com Rui Zink (A arte suprema, Rei), e em trabalhos a solo, como O Sr. Abílio, etc...
Contudo, quanto a mim, o melhor exemplo do trabalho de AJG é, sem sombra de dúvidas, Subway Life (Vida Subterrânea), onde ele retrata 43 pessoas sentadas em carruagens do metropolitano, em 10 cidades de cinco continentes. Esta obra teve exposições, espalhadas um pouco por todo o país e foi editada em álbum pela Assírio e Alvim em 2010.
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OBRAS PUBLICADAS DE ANTÓNIO JORGE GONÇALVES
BANDA DESENHADAEUROVISIONI-VIAGGIO A FUMETTI TRA LE CITTA D’EUROPA (colectivo). Mondatori. 1989
FILIPE SEEMS - ANA (argumento de Nuno Artur Silva) Ed. Asa. 1993.
LISBOA ÀS CORES. Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro da Cultura. 1993.
À PROCURA DO FIM (argumento de Nuno Artur Silva). Encomenda de Lisboa Capital da Cultura 94. 1994.
FILIPE SEEMS - A HISTÓRIA DO TESOURO PERDIDO (argumento de Nuno Artur Silva) Ed. Asa. 1994.
PLANO ESTRATÉGICO DE LISBOA (argumento de Nuno Artur Silva). Publicado pela CM de Lisboa - Departamento do Plano Estratégico. 1995.
A ARTE SUPREMA (argumento de Rui Zink) Ed. Asa. 1997.
O SENHOR ABÍLIO. Ed. Asa. 1999.
FILIPE SEEMS - A TRIBO DOS SONHOS CRUZADOS (argumento de Nuno Artur Silva) Ed. Asa. 2003.
REI (argumento de Rui Zink) Ed. Asa. 2007.
VIH, O BICHO DA SIDA (com Rui Zink) Almedina/Abraço. 2008
SUBWAY LIFE. Assírio & Alvim. 2010
O GRUPO DO LEÃO (com Rui Zink). Museu do Chiado de Arte Contemporânea. 2010.
HERÓIS DO MAR (livro+cd). EMI/Diário de Notícias|Jornal de Notícias. 2011.
BARRIGA DA BALEIA, Pato Lógico, 2013
UMA ESCURIDÃO BONITA (com Ondjaki), Caminho 2014.
EU QUERO A MINHA CABEÇA, Pato Lógico, 2015.
A MINHA CASA NÃO TEM DENTRO, Abysmo, 2017
O CONVIDADOR DE PIRILAMPOS, Ondjaki e António Jorge Gonçalves, Leya-Caminho, 2017.
CARTOON
CARTOONS DO ANO 2007 (com António, Cid, e Maia) Assírio & Alvim. 2008.
CARTOONS DO ANO 2008 (com António, Cid, Cristina e Maia) Assírio & Alvim. 2009.
NOM DE DIEUX! (colectivo) Pal a Pan. 2010
CARTOONS DO ANO 2009 (com António, Carrilho, Cid, Cristina e Maia) Assírio & Alvim. 2010.
CARTOONS DO ANO 2010 (com António, Carrilho, Cid, Cristina e Maia) Assírio & Alvim. 2011.
CARTOONS DO ANO 2011 (com António, Carrilho, Cid, Cristina, Monteiro, Maia e Viana) Documenta. 2012.
BEM DITA CRISE! Documenta. 2012
CARTOONS DO ANO 2013 (com António, Carrilho, Cid, Cristina, Monteiro e Maia) Documenta. 2014.
CARTOONS DO ANO 2014 (com António, Carrilho, Cid, Cristina, Monteiro e Maia) Documenta. 2015.
CARTOONS DO ANO 2015 (com António, Carrilho, Cid, Cristina, Monteiro, Maia e Rodrigo) Documenta. 2016.
E ainda uma extensa obra em Realização Plástica para Teatro e Desenho Digital em tempo real.
Só para rematar, António Jorge Gonçalves disse uma vez, numa entrevista, que
“na ilustração gosto do exercício de me imaginar com 4 ou 70 anos”.
António Jorge Gonçalves no Metro - A magnífica fotografia de Enric Vives-Rubio (Público, 2014)
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