sábado, 25 de novembro de 2017

O REGRESSO DO URSO ENTREVISTA COM FERNANDO RELVAS no BD Jornal #27 em Maio de 2011


O REGRESSO DO URSO
GRANDE ENTREVISTA COM FERNANDO RELVAS
Publicada no BDjornal #27 em Maio de 2011

Na Croácia, viveste em Zagreb?

Na Croácia vivi na zona limitrofe de Zagreb, em Samobor, mais precisamente Lug Samoborski, zona saloia da capital, assim como Sintra está para Lisboa (em vários aspectos, distância, zona rural da capital invadida por gente da "grande" cidade e de outras partes, mentalidade do autóctone e as suas hortas, etc.), podes considerar Zagreb.

Foi mesmo por causa de Fado na Noite que regressaste a Portugal?

Não só. Houve razões pessoais e também muita vontade de eu e a Nina mudarmos de ares. O facto das oportunidades de trabalho na Croácia serem ainda piores do que em Portugal ajudou bastante. Aliás poderia, pelo menos teoricamente, ter participado no filme a partir de lá. Trabalha-se bem através da internet, contudo não seria muito prático, o trabalho de equipa é aqui muito importante.

Depois de uma vida inteira a realizares banda desenhada, ilustração, cartoon, publicidade, porquê agora um filme de animação? Como nasceu este projecto de Fado na Noite e em que consiste?

Chegar á animação não estava em princípio nos meus objectivos. Pelo menos até há poucos anos, até Humberto Santana, da Animanostra, me ter convidado para apresentar um projecto. Apresentei vários, nos anos seguintes, mas nunca consegui obter apoio. Fazer um guião para um filme em imagem real, isso sim, ainda pensei nisso em tempos. Mas nessa altura estava na moda dizer que ninguém percebia os meus argumentos. Más línguas, más línguas! Seja como fôr não aconteceu nessa altura e eu nunca mais pensei no assunto. Pelo menos até tu me fazeres esta pergunta.

O projecto do Fado na Noite nasceu de uma conversa por email entre mim e o Humberto. Discutimos temas e acabámos por nos decidir por uma das ideias dele, um filme sobre fado. Como estava longe e a única documentação de que dispunha, que se aproximava do tema, era relativa a marinheiros de meados do século XIX, foi essa a época em que situei a acção. O resto pesquisei na internet. Para quem está habituado a pesquisar sites em inglês para reunir documentação, tentar recolher elementos em sites oficiais portugueses é uma frustração. Mas a coisa lá foi, com alguma memória a ajudar, alguma coisa tirada de blogs e o cruzamento dos retalhos de informação disponíveis. Vim a verificar, já depois de voltar a Portugal, que a reconstituição dos ambientes nem sequer estava muito longe do provável, contudo ainda ando a desenterrar coisas, fazendo fotografias, filmando ruas antigas, visitando museus, consultando livros, enfim, aquele processo que eu nem sempre sei parar a tempo.

Estás a desenhar todo o filme, ou tens colaboradores? E quando pensas ter o filme terminado?

Sou apenas o autor do argumento e dos ambientes e personagens que vamos pôr em movimento. Tenho, do meu lado, um produtor experiente e bons colaboradores e ainda bem que os tenho, pois a minha experiência destas coisas ainda é limitada. Quanto a prazos, está previsto para os finais do ano que vem.

Recordo-me que nos encontrámos no Cais do Sodré, à saída dos cacilheiros, a dada altura de 2002, vinhas com a Nina Govedarica e anunciaste: casei-me, apresentaste-me Nina e remataste: olha, vou para a Croácia. Sabendo como estavam a correr as coisas no meio da edição de BD neste país, achei que fazias bem, ao menos para mudar de ares. Como é que se processou esta decisão, foi mesmo para mudar de ares, ou esperavas encontrar na Croácia, oportunidades diferentes que aqui não existiam?

Não tinha ilusões, se é isso que queres saber. Foi mais uma saída furiosa. Contudo, depois da partida, e da primeira vez que lá fomos, houve promessas que nunca se concretizaram. Nada a que eu já não fosse habituado de Portugal. Também não tive ilusões com o meu regresso, ainda por cima aterrámos, em Setembro, no meio da histeria da crise, com o governo cercado e a choraminguice generalizada, entre o frenesi e a sofreguidão dos políticos. E, a par disso, a lentidão e ineficácia com que tudo o mais se processa. Para quem vem de fora, é um quadro muito curioso, algo ridículo. Nos Balcãs o ambiente é igualmente anedótico, mas é mais crispado, aqui é mais uma angústia em banho maria.

Pelo que tenho lido, não saíste de Portugal directamente para a Croácia, houve um périplo até lá chegares, de onde terá saído a novela O Urso vai a Espanha, a tua primeira – e até agora única – experiência nesse género literário. Queres contar como foi esta viagem e como chegaste à novela?

O nosso destino era Málaga. A memória deve-te estar a pregar uma partida, pois o que eu te devo ter dito à beira dos cacilheiros foi que íamos para Espanha. Só meses mais tarde decidimos ir para a Croácia. Quanto ao Urso, já vinha esboçado de Portugal e a história acabou por ser escrita já na Croácia, apesar de se passar entre Lisboa e Málaga. Estava decidido a deixar a banda desenhada como forma de contar histórias e a começar a escrever, e o Urso foi um tímido ensaio. Foi a aposta nos blogues que me fez mudar novamente de direcção, porque a maior parte das histórias que comecei a escrever acabaram aproveitadas para banda desenhada quando foi necessário arranjar argumentos. Mas ainda não está posta de parte a decisão de começar a escrever, ainda há esboços por acabar. Aliás, O Urso vai a Espanha é bem mais um esboço que inclui a palavra fim do que uma novela acabada.

Embora se perceba o porquê de fundo, houve alguma razão específica, determinante para pensares em deixar a banda desenhada como forma de contar histórias? 

Bem, escrever e desenhar sempre se misturaram um pouco, na minha adolescência. A ideia de escrever nunca me abandonou, é assim mais como o ramo da árvore que cresceu do lado da sombra, mas que não desiste de se mostrar. Acho que o teu “porquê de fundo” é a razão principal porque decidi dar mais atenção a esse ramo, a certa altura.

Com esta conversa acabei por me lembrar da resposta que o Pedro Massano deu numa entrevista recente, onde diz que a história que está a realizar será a última em BD e a partir daí vai sair definitivamente da “loucura da banda desenhada”. Já ouvi este tipo de frase muitas vezes e vi autores que o disseram, dar por si de regresso à BD. O que é que leva um tipo a fazer BD e depois nunca mais conseguir largá-la? A bd é uma espécie de virus?

Na minha opinião, e na das pessoas à minha volta, é o que sei fazer melhor. Há mesmo quem defenda que eu não deveria escrever sequer uma linha, e que deveria limitar-me a desenhar. Mas, claro está, nunca se saberá se seria melhor só a escrever, caso continue por este caminho. Para já, contar histórias sob forma de banda desenhada parece funcionar melhor. Ora, o que eu faço é contar histórias. O método que tiver maior saída é o que avança, o que se calhar é um erro, se calhar faço mal em não dizer a mim próprio para parar e mudar de rumo, antes que seja tarde. Mas a coisa está sempre presente... e um dia deixo mesmo os desenhos do lado da sombra. Quanto ao vício, é mesmo o de arrebanhar material para uma história e contá-la, nem que pareça não ter princípio, meio ou fim, a quem gosta de histórias simples.

Depois, talvez em 2004, dei com alguns blogues teus (não me lembro se dois ou três), até te fixares – mais ou menos – com The Hard Line (http://hardline-approach.blogspot.com) que já não existe, desde que passaste todo o material para o actual Urso do Relvas (htttp://urso-relvas.blogspot.com/), onde ias dando conta, online, do que estavas a fazer. Entre apontamentos de viagem, fotografias, desenhos, duas webcomic semanais, por fim livros. Portanto, estiveste cerca de dois anos (se as minhas contas estiverem certas) sem dar notícas. De repente desatas a publicar coisas na net. E, sobretudo, em inglês. Porquê vários blogues? Qual foi o teu objectivo, atingir outros públicos?

Em 2004, eu ainda não punha imagens na net. Iniciei alguns blogues, nomeadamente o Peixe Cru, que eram uma espécie de blocos de apontamentos e de treino para a escrita. Foi só em 2006, furioso, mais uma vez, depois de seis meses de contactos eternamente adiados com um jornal português, que me meti a fundo nas histórias desenhadas para internet, primeiro umas coisas curtas, algumas adaptadas do projecto que tinha apresentado ao jornal, de mistura com material avulso ao género dos blogues anteriores. Foi o Hard Line, cujo espaço agora apenas tem um link para o Urso do Relvas. Seguiu-se imediatamente o Chinese Master Spy, feito de propósito para as histórias de Miss Li, a menina Papalina, que agora estão também alojadas no Urso. E O Costa do Atum, ou apenas Costa, idem mesmo destino, e mais uma série de outros que nem eu me lembro já o que eram ou se chamavam. Resumindo, todas estas experiências se foram concentrando num único objectivo, criar um fundo de histórias e retalhos de ideias para histórias que pudessem simultaneamente servir como cartão de apresentação. Também convém dizer que os blogues acompanham as edições através da Lulu.com, uma coisa chama para a outra, apesar de não chamar o suficiente, digo eu. Claro que neste contexto, tendo também em conta que o meio utiliza o inglês como língua principal, ou uma das línguas principais, pelo menos das que eu consigo falar, e também por estar fora de Portugal a dar-me com pessoas que não falavam, exceptuando a minha mulher, português, dizia eu portanto, fazia todo o sentido escolher o inglês como língua. O que não foi uma decisão fácil, não por causa de qualquer prurido lusofonista, mas pela minha falta de confiança. Depois a coisa engrenou, com um erro aqui, outro acolá. Agora estou a tentar adaptar-me ao acordo ortográfico, não sei o que é mais difícil, se o inglês, se o acordo ortográfico.

No texto em que falas das mudanças que irás fazer em The World of Miss Li, referes o Urso, a hibernação do bicho. Depois o urso acorda zangado e desata a fazer coisas novas... Servirá esta referência como metáfora? Até porque há uma série de títulos, O Urso vai a Espanha, Jogando ao pau com os Ursos e agora o blogue Urso do Relvas... Será que consideras ter hibernado durante um tempo – o hiato de tempo “sem dar notícias”, de 2002 a 2004 – e, ao reacordar, partiste para a série de experimentações na banda desenhada que te levaram ao estilo de Li Moonface e Fado na Noite? 

Seria uma explicação engraçada, mas está longe de me ter passado pela cabeça. Por um lado, não considero que tenha estado a hibernar e depois, este Urso é um nanourso, um urso quântico, meu aliado na conceção e execução das histórias. Pode ir a qualquer lado, a vários lados e para além deles ao mesmo tempo, por vários tempos. E ao mesmo tempo o urso também sou eu, quantas vezes na minha vida não ouvi “És um urso”? Já estava na altura de o chamar à cena.

Quase todos os trabalhos que publicaste online – nos diversos blogues – têm características distintas do teu trabalho anterior, experimentaste desenho em fotografia (The Green Fish, Kiselo Zelje, Kiki In The Canal, Costa...), fotografias trabalhadas e legendadas (Kill The Past In The Future), duas séries semanais – os webcomics: os capítulos de Li Moonface (2008) e Kriks, The Perfect Worker (2009), ambos no blogue http://chinesemasterspy.blogspot.com – mas a experimentação que se revelou na mudança que me pareceu mais radical, foi o início da coloração em computador (excepto em Kriks), parece-me que a partir de Wireless Sex. O que te levou a esta mudança?

Bem, tu não sabias que eu já usava o computador antes de iniciar os blogues porque eles não apareciam em lado nenhum. Comecei nos tempos do Inimigo a usar o computador apenas como auxiliar, mas pouco antes de partir já mais de metade do que fazia era em computador e foi com este que contei como instrumento de trabalho e escritório portátil. Inclusivé digitalizei quase todo o meu arquivo histórico antes de partir, com atelier e biblioteca na grande caixa zumbidora. Contudo nada dessa época viu a luz do dia, até começar a pôr material nos blogues, o que levou a que produzisse mais material visível. O que mudou com a minha partida de Portugal, foi ter começado a usar quase exclusivamente o computador. A fotografia veio por acréscimo, fotografia digital, ilustração digital, tudo se conjuga. Para a história The Chinese Master Spy / O Espião Chinês usei o esboço a lápis para apenas duas páginas, e talvez outras tantas para The Persian Ambassador / O Agente de Cambises, porque estava aborrecido por desenhar sempre em computador. De resto, o lápis foi remetido para o papel dos apontamentos. Kriks foi todo pensado e executado em computador, tirando a parte da Nina, que fornecia as ideias para as situações. Mais recentemente tentei usar o lápis para um outro projecto, Ro, aliás com blogue próprio mas estagnado, mas a experiência não foi longe e acabei por voltar ao digital. Em compensação, o filme de animação está a ser executado a lápis. Poder-me-ás perguntar, é mais difícil desenhar a lápis ou no computador? Dir-te-ei que não foi fácil reconduzir-me ao lápis, nos primeiros tempos...

É interessante o facto de dizeres que voltar ao lápis não foi fácil. No entanto conheço muitos jovens desenhadores que desenham indistintamente e sem qualquer dificuldade, em computador e a lápis – sem perderem a mão e com resultados espantosos. Será que o uso da máquina, a partir de uma certa idade, nos induz inconscientemente numa certa “preguiça”? Não sentes que perdes qualidades no traço? O desenho não perde expressão?

Ora bem, essa do lápis era no gozo... mas vamos lá à questão. Há diferenças, como não podia deixar de ser. Pelo menos a princípio, sobretudo se não se nasceu com os computadores, o desenho em computador é mais preso, a menos que seja trabalhado como técnica mista ou muito, mas mesmo muito cuidado, seguindo todas as regras da mecânica digital. Não é para mim, não tenho paciência. Depois, com muita teimosia e algumas dores nas costas, a coisa vai. Com a familiaridade com as ferramentas, ganha-se em espontaneidade. Mas será sempre diferente, o que não quer dizer que o resultado dum seja menos agradável que o do outro. É de esperar que, mudando dum tipo de ferramenta para um outro, que nunca se usou ou esteve sem ser usado durante muito tempo, se sinta uma certa falta de graça no gesto. Neste momento, como te disse, estou a desenhar a lápis, sem qualquer constrangimento, mas não perco uma oportunidade para meter o computador ao barulho. Quanto a essa suposta preguiça da idade... costuma chamar-se sabedoria, não é? E agora não me vás perguntar se estou a falar a sério!

Mais ou menos cinco anos depois de teres saído de Portugal, ou seja em 2007, apareceram livros teus na Lulu, (para quem não sabe, lulu.com, um site de auto-edição e vendas de livros online – em sistema print-on-demand). Refiro-me a Palmyra, que, segundo dizes na apresentação do livro, era para ter sido editado em Portugal em 2000, Li Moonface, Costa (1 e 2), Ink Flow – são estes os títulos que estão em catálogo no site – e ainda a surpreendente estreia no campo da novela O Urso Vai a Espanha, que terá alguma ligação com Palmyra. Porquê esta opção pela auto-edição no sistema print-on-demand e quais os resultados práticos, ou seja, as vendas são significativas?

Ah, lá significativas, lá isso elas são. Significa que, como dizem e muito bem, a venda por internet não funciona sem o apoio da comunicação de rua, por assim dizer. As vendas são menos que os downloads de borla feitos a partir do blogue. Também tenho algumas visitas num outro site, yudu.com, onde alguns desses livros podem ser lidos virando as páginas à maneira dos livros a sério e sem pagar um chavo, mas mesmo assim nada que se possa considerar mais do que simpático. Seja como fôr, é importante.

A opção é fácil de explicar, não havendo editores em atividade interessados em publicar, o autor tem que procurar outras soluções. Sem elas, e independentemente de haver ou não lucro monetário, eu não teria continuado a produzir.

Palmyra é uma história que terminaste em 1999 e era para ter sido publicada numa revista, entre 1999 e 2000, tendo sido o lançamento da história sucessivamente adiado pela revista, até que esta deixou de ser editada em 2002. De que revista se tratou e porquê o adiamento da publicação? Esta foi, ao que parece, a tua última tentativa de regressar à publicação em periódicos. Podemos pensar que desististe definitivamente de tentar publicar em jornais ou revistas, ou parece-te que não há condições para isso?

Essa pergunta traz-me coisas aborrecidas à memória. Em 1999 eu estava num periodo bastante mau da minha vida e tenho pouca vontade em revisitá-lo. Também não tenho prazer nenhum em apontar o dedo a um editor em particular, porque iriam sobrar muitos mais a quem o poderia fazer. Nunca desisti de publicar em periódicos. Aliás isso não faria sentido. Como pode um autor, neste país onde o consumo de livros de banda desenhada é minúsculo, desistir de publicar em periódicos, ainda que estes manifestem o desrespeito pelos compromissos que é usual neste país? Já na Croácia tentei fazer contactos com jornais portugueses, que me permitissem publicar crónicas de viagem, e que por sua vez me permitissem viajar para as fazer, tinha em vista um périplo pelos Balcãs e uma ida à Mongólia, mas nada daí resultou. Também percebi que, dos exemplos de crónicas apresentadas, a que maior curiosidade despertou foi a única que se passava em Lisboa. Estará esta terra a abraçar a pequenez de só olhar para si própria, pergunto eu com indisfarçável ironia?

Falemos um pouco de Miss Li, a menina Papalina - Li Moonface. Parece ser a história a que te dedicaste mais, depois de Palmyra. A primeira parte da historia aparece em Agosto de 2008, no blogue com o mesmo nome do título - The Chinese Master Spy - e em Dezembro desse ano, no mesmo blogue, a segunda parte - The Persian Ambassador. Depois, surge o livro Li Moonface editado online na Lulu.com, salvo erro em 2010. Como é que aparece a ideia para estas histórias? 

Esta Papalina tem uma história complicada. De início não era chinesa e era apenas a personagem que narrava o seu encontro com a misteriosa figura de Adass Polo, que é o nome duma espécie de arroz de lentilhas na culinária persa, a figura central dum conto que se chamava, tal como a versão em português desta história, O Agente de Cambises. Estava o conto em banho maria, quando decidi criar a figura de miss Li, para lançar um webcomic semanal. Mas também não foi esse o princípio da figura que tem as características de Li, chinesa alta e atlética, discreta mas teimosa. Ela é a Ken de O Urso Vai a Espanha, e antes disso já fazia parte dos meus cadernos de apontamentos. Como vinha fresquinho de ler And the Rain My Drink, de Han Suyin, deixei-me levar pelo ambiente do livro e atribui a Li o segundo nome de Moonface. Depois decidi espessar ainda mais a personagem e dei-lhe também a alcunha de Papalina. Aí, o destino do agente de Cambises ficou traçado, seria a história seguinte de miss Li. Como era uma história com longas tiradas filosóficas do agente, teve que levar cortes bárbaros no texto para este caber numa banda desenhada, contudo ainda sobrou muito do texto original.

Papaline, singular papalina, são aqueles peixinhos fritos que se podem ver ao longo da segunda história. Muito apreciados em Zagreb, onde se vendem em casas de comida barata. Sentado numa dessas tascas, acompanhando papaline com um copo de tinto, ouvindo o tilintar dos elétricos na rua, e usando de alguma imaginação, quase me podia sentir em Lisboa. Foi talvez por isso que fiz duma dessas casas o cenário da segunda história. Pouco tempo depois disso, a casa que se pode ver aí, com peixes em stencil sobre os espelhos e clientes tão residentes que por vezes parecia que lá iam dormir a sesta, fechou.

O agente, ou embaixador, de Cambises, o velho Cambises da história persa, apresentava-se, na história original, a Papalina como um caixeiro viajante, com passaporte etíope, mestre de tráficos diversos e, entre outras coisas, como tendo liderado uma embaixada que infelizmente não aparecerá no WikiLeaks, pois teria tido lugar na Antiguidade. E mais não conto, para não estragar a história. Basta apenas dizer que a ideia original fui buscá-la diretamente a Heródoto.

As duas histórias foram sendo publicadas semanalmente, ao longo de 2008, entre Fevereiro e Dezembro, com o início a coincidir com o ano novo chinês. A primeira foi posta em livro na Lulu.com em 2009, mais tarde retirada e, em conjunto com a segunda história, posta em livro em Maio de 2010.

Depois de Li Moonface aparece The World of Miss Li, que parece decorrer num ambiente um pouco diferente – a própria Miss Li não parece a mesma... Qual é a relação entre as duas histórias?

Pois é diferente, sim senhor. A tradução do título completo seria O Mundo de Miss Li Está Sempre Um Pouco Adiante do Nosso, portanto também adiante do mundo de Papalina. Ora Miss Li é filha duma chinesa e de um europeu, assassinados, ao que parece, numa guerra entre máfias internacionais. Podemos sempre conjecturar se Miss Li, que vive num futuro não muito longínquo, não será filha de Papalina.

As histórias de Li Moonface, também chamada Papalina, referem-se a mundos em extinção, em que aparecem bairros populares herdeiros dos bairros não planificados do século passado, em Zagreb, em que aparece uma tasca que, ironicamente, fecharia as portas pouco depois de eu acabar a história, que envolve novos ricos saídos da guerra que compram títulos académicos e ainda funcionam na lógica do compadrio rural, coisa que transposta para a sociedade atual dá a esta uma consistência mafiosa, que por sua vez terá tendência para se transformar em algo diferente.

O mundo de Miss Li não é mais saudável que o de Papalina, pois os grandes clãs regionais conseguem inserir-se nas principais áreas de poder europeias, aliás a sobrevivência da Europa vai depender de um deles, o cada vez mais poderoso clã Brusconu, mas é diferente. O bairro popular em que começa a história de Papalina e a de Miss Li é o mesmo, mas por aí se ficam as semelhanças. De seguida, Li parte para a maior ilha flutuante do mundo, de visita ao Mediterrâneo, onde se reunem figuras importantes da política, da economia e da ciência do mundo inteiro.

Claro que, nesse ponto, algo dramático acontece, pois foi para isso mesmo que os estive a juntar.

O Mundo de Miss Li começou a sair no Urso do Relvas no dia a seguir a ter chegado a Portugal, com páginas que tinha deixado prontas. Ainda tentei dar-lhes sequência, mas a pressão de outros compromissos e a história estar a seguir um rumo que não me agradou, levou-me a interrompê-la e a repensar tudo de novo. Uma parte daquilo que se pode ver no blog vai ser eliminado e a história regressa ao núcleo e ao título inicial, O Arrulhar das Fúrias. É, ainda assim, uma história mais complexa que as duas de Papalina e é herdeira duma outra que saiu no seu próprio blog, The World Seen From a Head, intitulada The Duoh Report, que há-de, um dia em que tenha vagar, ser revista e passada a livro. O blog já não existe, portanto não posso dizer às pessoas para irem lá ver, este meu mau feitio de arrumar as gavetas regularmente!

Dê as voltas que der à história, a sua continuação está dependente da sua viabilidade económica o que quererá dizer, para os pessimistas, que o futuro é sombrio. Para mim é mais uma na lista de espera. Como sempre, a primeira que tiver oportunidade para ter sequência é a que salta para a frente.

Durante vinte anos (de 1974 a 1994), foram publicadas histórias tuas em fanzines, revistas e jornais – fanzines O Estripador e O Gorgulho, Gazeta da Semana, revista Fungagá, revista Tintin, jornal Se7e, revistas Sábado e LXComics, jornal O Inimigo, etc... – depois, entre 1993 e 1999 foram editados cinco álbuns – três originais e dois de compilações de histórias publicadas em periódicos – e ainda o CD-rom O Rei dos Búzios. O que te parece realmente importante na edição de banda desenhada, as histórias em continuação nas revistas ou jornais, ou a edição em livro?

Tudo, claro. Tudo conta. A escolha do formato depende do gosto do artista e do freguês. Mas, publique-se! Acontece que a maioria dos editores têm aquela coisa do pânico agarrada aos fundilhos das calças há já bastantes anos. Se têm tantos cuidados, como é que a situação continua a piorar? Há sempre uma crise económica ou um político para culpar. Mas servem-lhes os cuidados para quê, então? Se a venda de livros não chega, os editores de periódicos que se cheguem à frente. Se nem uns nem outros arriscam, ou arriscam pouco, o resultado será pobre. Mas todos eles serão importantes, caso consigam funcionar para além dos limites dos seus escritórios.

Actualmente, só vejo um autor, o Nuno Saraiva, a conseguir publicar regularmente em jornais e revistas, sendo que os livros editados com trabalhos dele, são compilações de histórias editadas nos periódicos. Colocando a pergunta anterior por outro prisma: será que são os autores mais novos que já não estão para aí virados, querendo é fazer livros, ou são os periódicos que não estão interessados?

Perguntas-me a mim, que ando arredado destas coisas há anos? Posso tentar adivinhar. Toda a gente gosta de se ver em livro, nesta tenho poucas hipóteses de falhar. Mas à falta de livro, um periódico também serve, sobretudo porque, quando paga, o periódico paga, enquanto o livro há-de pagar, se pagar. No caso de algum periódico especial, este passa à frente do livro em prestígio. Os fanzines e edições limitadas são um caso à parte, há muita paixão envolvida. E, para acabar este rol de banalidades, pergunto, que diferença faz que os livros dum autor sejam compilações de trabalhos publicados na imprensa? Quanto a mim, a questão é de oportunidade e, nesta questão da oportunidade, a imprensa sempre paga melhor que o livro e ajuda a manter o autor visível. Como a imaginação de quem escolhe os autores é por norma preguiçosa, o autor mais visível é requisitado mais vezes e torna-se ainda mais visível. Já lá estive e podes crer que nem por isso me sentia muito confortável. Mas isso coloca em definitivo a publicação em periódico como a mais vantajosa. Se há autores que não gostam dessa opção, enfim, quem sabe, até pode ser uma medida saudável. Quanto aos periódicos, para eles é sempre a crise. A crise é uma espécie de banha em que já há muitos anos tudo se frita, neste país.

Não é possível contabilizar quantos autores de banda desenhada existem neste país, mas vemos que estão sempre a aparecer novos autores. Por um lado, quase já não existem os fanzines tradicionais, optando os novos autores por publicações mais elaboradas, servindo-se da impressão digital, o que leva a que, não existindo publicação de BD em periódicos, vão aparecendo efémeras revistas com pequenas tiragens, auto-edições, edições de pequenos editores, etc... Por outro lado, são cada vez mais os autores portugueses a conseguir trabalho no mercado americano. Como é que vês, nesta altura, a edição de BD neste país e o que te parece que será o futuro?

Neste país? Qual? A América? Vou já para lá! Ah, sim, aqui em Portugal! Futuro? Bem, a sorte é que futuro há sempre, desde que se esteja vivo, senão imagina o que seria. E havendo futuro há sempre esperança que ele seja bom, não é? Imagina que ao longo dos anos 80 e 90 a edição teria apostado em criar condições para manter os autores existentes à vista dos leitores, nos jornais, nos escaparates, discretamente mas com determinação. Imagina tu que belo espaço não teriam agora os novos autores onde assentar os seus talentos! Uma camada de leitores vasta, de gostos diversificados. Mas as coisas foram por outros caminhos, apertou-se a vida dos autores com táticas labregas que permitiram a editores, seja de livros ou direcções de jornais e revistas, movimentar-se sem constrangimentos éticos, seguindo apenas a grande luminária que arvoravam no alto das suas cabeças. É certo que se gastou muito dinheiro em festivais, agora todos internacionais, e começaram a editar-se livros e catálogos, alguns deles luxuosos. Criou-se, num determinado momento, a sensação de que tudo estava a ir bem. Por certo que muita gente se deixou entusiasmar com a fantástica situação que vivia a banda desenhada em Portugal, desprezando a busca de profissionalização e saboreando alguns fugazes momentos de glória. Ou seja, muita prata sobre a mesa e nenhuma comida no prato. Cresceu o número de autores mas não o de leitores, e temos hoje mais autores do que conseguimos mastigar, ou sequer apreciar.

Já que falas neles e obviamente ainda não conheces o Festival de Beja que, no entender de muita gente (o meu incluído), só não tem já mais visitantes que o da Amadora porque... é em Beja, o que te pareceu o Festival da Amadora de 2010, depois de nove anos de ausência?

Agora é que tu me apanhaste! Com uma exposição marcada para Beja e outra, uns meses depois, para a Amadora, é claro que não posso dar largas ao meu mau feitio em relação aos festivais. A minha relação com os festivais tem-se regulado por questões que nada têm a ver com a dimensão do seu naipe de convidados ou das suas salas de exposição. O mundo dos festivais e o mundo dos colecionadores, no meu caso, não se identificam totalmente com o mundo do autor. Convivo e divirto-me, ou não, nos festivais, e também não sou imune ao mundo do colecionismo, se bem que não de banda desenhada. Coleciono, se te interessa, material para histórias, ao ponto de, muitas vezes, perder a história de vista durante demasiado tempo. Mas, como os festivais também servem designíos profissionais, tenho entrado em conflito com algumas organizações por motivos de atitude, que ás vezes apenas reflecte defeitos comuns neste país. Mesmo assim, estou sempre á espera que da próxima vez vá ser melhor.

E já agora, faço-te uma pergunta que andei a fazer a muita gente nos últimos tempos: na tua opinião, para que serve um Festival de Banda Desenhada, em termos práticos?

Serve para misturar e mostrar. Estava a ver que não perguntavas, pois, por aquilo que tenho dito, pode ter ficado a ideia que acho os festivais uma coisa inútil, e isso não é verdade. Bem pelo contrário, os festivais são feiras, onde as pessoas trocam ideias e produtos, onde se misturam gostos e influências culturais. E é festa, não há feira sem festa. Desprezar estes princípios básicos é matar um festival. E, como te disse, há o lado profissional. Os festivais são úteis por diversas razões, e todos temos interesse em que um festival seja uma coisa viva.

A talhe de foice: O que é que se faz, na Croácia, em termos de banda desenhada? E depois, gostava que comparasses (não é para rir) o mercado português de BD com o do resto da Europa...

Não faço ideia qual seja a situação da banda desenhada no resto da Europa. Nos Balcãs, pelo que sei, é péssima. A Croácia tem bons artistas gráficos e alguns bons autores de banda desenhada, mas os gostos populares são mesmo muito clássicos. Também têm os seus artistas de sucesso que trabalham para editoras americanas. Enfim, toca a todos.

Já em 1999 tinhas optado por editar banda desenhada num meio não-tradicional, O Rei dos Búzios, em CD-Rom. Para quem leu as pranchas que foram publicadas na revista Sábado, ler a história no suporte CD-Rom, não é bem a mesma coisa do que nas páginas impressas. Para já, gostava que referisses a história (penso que rocambolesca) da colaboração com a Sábado. Depois, que dissertasses um pouco sobre se a edição digital, não já em CD-Rom, claro, mas em edição electrónica – ebooks, será mesmo esse o futuro?

A história não é rocambolesca, é apenas um episódio típico do modo de agir dos editores portugueses daqueles finais dos anos 80 e toda a década seguinte. A história foi interrompida sem qualquer tipo de justificação. Houve mais casos. Houve tantos que eu me passei, uns anos depois, e optei pela via legal. Um deles meteu advogado e um outro chegou a julgamento, devido à teimosia e arrogância do director do jornal em questão, que bem se arrependeu. Só que dessa vez, nesse caso que referes, até o autor eles se esqueceram de notificar! Um ponto a favor, contudo. Pagavam a tempo e horas, o que era raro. E boa parte da culpa por esta situação é dos autores, que aceitaram tudo sem mais que um resmungo à parte, e às vezes nem isso.

Quanto à edição em CD, essa, como dizes, não será o futuro. Para além de ter os dias contados, nunca foi uma opção muito confortável. Edição em ebook espero bem que sim, já desde as histórias de Miss Li que ando a pensar nisso. Até agora já vi duas pessoas, sempre mulheres, a usarem um leitor de ebook, no comboio de Sintra. Lá chegaremos. Mas em português? Custa-me a crer. Não sei qual o nível de vendas desse tipo de material em Portugal, mas, ainda que os preços baixem, há outra questão que me parece ser um indicador pessimista. Visitando os sites portugueses de museus e bibliotecas, festivais e outras atividades culturais, geralmente pobres e confusos, fico com a impressão de que aqui se trata a informação como se fosse um tesouro que convém esconder. Ora esta atitude não me parece augurar nada de bom para a difusão destas novas formas de leitura, que se arriscam a ser adotadas apenas por uma minoria e por snobismo e não por uma autêntica compreensão do meio. Mas, enfim, talvez venhamos a ser salvos pelo acordo ortográfico.

Pode parecer piada, mas até é provável que possamos vir, um dia, a ser salvos pelo acordo ortográfico, uma vez que, pelo menos os brasileiros e os angolanos, estarão “sedentos” (não sei porquê, mas a expressão é deles) de “cultura portuguesa”. Parece-te possível e desejável, um eventual intercâmbio “lusófono”, digamos assim? 

Não era piada. O futuro da língua portuguesa passa, neste momento, por aí. E por outras coisas, também. Passa por uma mudança de atitude dos portugueses, mas para isso vamos ter que ter muita paciência. Se se desse mais valor ao trabalho sério, ao respeito pelos compromissos, e menos à aparência, aparência de cultura, aparência de trabalho, aparência de respeito pelos compromissos, aparência de vítima, aparência de gente douta ou gente rica, talvez tudo começasse a funcionar de maneira diferente. E depois há caminhos que vêm ter connosco, outros que temos que fazer para lá. Teremos nós a humildade de tratar os dois de igual maneira, sem arrogância? Já se viu que os portugueses não têm capacidade para crescer, desde que isolados neste canto quinto à beira mar espraiado. Não é doença, nem sequer um grande defeito, é apenas uma maneira de fazer as coisas que muito nos atrapalha.

Um dos teus livros publicados em Lulu.com, Ink Flow, composto por cinco histórias sem palavras e com desenhos/pinturas a preto, a meu ver fascinantes. Dizes na apresentação do livro, no blogue, que as histórias fazem parte de uma série de pequenos cadernos costurados à mão, todos eles pertencentes a coleccionadores particulares. Gostaria que escrevesses um pouco sobre Ink Flow: como aparece e se desenvolve esta ideia? Ao que parece não foi uma edição para venda ao público: trata-se cadernos de originais?

Os desenhos são feitos com uma caneta de aparo Rotring, trabalhada às avessas e aguada, sobre cadernos pequenos, cosidos à mão, de papel Canson mi-teintes, sem esboço nem rede para o texto. Todos eles pertencem, como dizes, a particulares. Levaram um arranjo, tanto no texto como na ordem dos desenhos, para a versão em inglês que se pode ver na internet. Alguns desenhos tinham o texto escrito em cima, portanto também levaram Photoshop. Comecei a fazer estes cadernos ainda nos anos 90, quando a vida me parecia correr mal por todos os lados, com a ideia expressa de os vender. Foi uma iniciativa puramente comercial, que me deu mesmo muito gozo fazer. Durante um tempo sobrevivi graças a estes cadernos, e não me estou a referir à sobrevivência económica.

Alguns dos teus trabalhos publicados em periódicos, desde o Tintin (para não falar dos anteriores) até a O Inimigo, foram editados em livro – L123 e Karlos Starkiller. Outros ficaram por aí, nas páginas agora amarelecidas das publicações. Não tenho nada contra compilações de histórias publicadas em periódicos – essa é, aliás a filosofia da pré-publicação em revistas de BD. Por um lado: foi difícil editar esses álbuns – como se passaram as coisas? Por outro: Ninguém se interessou em editar as outras tuas histórias em livro? 

Tentei, desde o Tintin e passando pelo Se7e, que os respetivos editores publicassem as minhas histórias em livro. O Espião Acácio teve contrato assinado, e o Karlos Starkiller do Se7e esteve pronto para ser publicado em livro uma década antes da edição da Baleia Azul, o que teria feito muito mais sentido, visto tratar de assuntos de atualidade. Quando chegou a febre da edição em livro, já eu não estava a trabalhar para a imprensa, o que limitou não só a minha produtividade como a visibilidade. A atitude dos editores também mudou. O grosso do publicado na imprensa, que eu em muitos casos não classificaria de pré-publicação, continua, como dizes, nas hemerotecas. Algumas histórias foram publicadas mais tarde em livro, no final dos anos noventa, penso que com a intenção de preencher um buraco, mas não tiveram sequência.

Nenhum dos teus livros editados até 1999 se encontra já no mercado. Verias com bons olhos a reedição deles, ou estarás mais interessado em apresentar ao público as histórias que entretanto realizaste nos últimos 10 anos – mesmo estando os livros editados online e à disposição na Lulu.com?

Estou interessado em ver tudo cá fora! É claro que estou mais interessado nos trabalhos mais recentes, mais interessado em prossegui-los, em divulgá-los e em publicá-los. Mas uma história não faz sentido fechada num gavetão. O facto de ter livros no sistema de print-on-demand não impede a edição tradicional em livro. Aliás, as duas funcionam melhor juntas.

Já que falamos em periódicos, parece que as revistas de banda desenhada deixaram, definitivamente, de interessar ao público em Portugal. Pelo menos as últimas tentativas não deram grandes resultados de vendas e tiveram que suspender a publicação. Falo de “LX Comics”, “Selecções BD”,”Comix-Devir”, “HL Comix”, etc... Qual é a tua opinião sobre esta falta de interesse do público português pelas revistas a partir de certa altura – talvez desde os anos 1980?

Penso que cada caso tem uma história diferente. Também, como já disse, penso que se fizeram as apostas erradas, durante os anos 90. Em vez de se fazer um trabalho de edição regular e paciente, criando leitores, optou-se por encher o olho com coisas vistosas, ainda que não houvesse leitores suficientes para manter esse ritmo. Há que substituir as revistas por apps. Ou estou a exagerar?

Depois do teu período crítico dos anos 90, colaboraste com a Fanny Denayer na Witloof/Dr.Kartoon. Porquê e como é que foi essa experiência? 

De trabalhos avulsos para complementar o orçamento, posso dizer que essa não foi a primeira vez, se bem que fosse a vez em que sujei menos as mãos. Mas tenho que reconhecer que, todas as vezes que o fiz, dei mostras da minha inabilidade para fazer outro trabalho que não fosse ligado às histórias e ao desenho. Dessa vez, a parte que fiz melhor foi a escrever textos para a newsletter da casa. Trabalhar na livraria foi engraçado, li muita banda desenhada, coisa que desde os meus 20 anos faço muito pouco, e tive uma experiência curiosa, no dia 11 de Setembro de 2001. A Fanny instalou uma televisão no primeiro andar, para seguir as notícias sobre as torres gémeas, e eu fui lá espreitar. Ao descer, junto às escadas, estava um escaparate cheio de homens-aranha a cavalgar as torres gémeas, em capas de revista, pois o filme estava para sair. De súbito, todo aquele estendal de arranha céus começou a abanar debaixo dos pés dos homens- aranha, dentro das suas capas de revista. Esfreguei mentalmente os olhos e fui para o meu posto, muito sossegado, lançando de soslaio olhares desconfiados na direcção do escaparate. Ainda hoje há-de ser difícil convencerem-me que foi tudo apenas uma partida do meu cérebro.

Já falámos acima, do desenho e pintura em computador. De resto já passaste por quase tudo, desde o preto e branco, aguarela (em Çufo, por exemplo), lápis de cor (O Rei dos Búzios), etc... em qual das técnicas te sentes mais confortável e porquê?

Çufo não era bem aguarela, era Ecoline, uma tinta de água transparente e ferramenta que usei e que se usava muito, na altura, até à exaustão. A entrada em cena dos computadores livrou-me de trabalhar noites inteiras a encarar filas de vinte e mais frascos abertos de misturas já feitas e um garrafão de água. A partir de certa altura comecei a adicionar lápis de cera, que usei para algumas histórias do Se7e, para O Rei dos Búzios e para vários trabalhos de ilustração. Nessa altura usava ora um, ora outro processo, ou misturava os dois. Isto em relação à cor. Em relação ao preto e branco, a lista é mais longa. Dava-me, com as ferramentas e técnicas, bem umas vezes, mal outras, sobretudo quando começava a estar cansado, mas de maneira muito democrática, tocava a todos um pouco.

Sobre o teu modo de trabalho: Quando pensas numa história, como é que inicias o processo e quais as etapas que percorres (escrita, planificação, esboço, tinta da china, etc...)?

Falas-me de coisas que eu nem sei que existiam, planificação, esboço, enfim, sei que existiam mas nunca as usei muito. É tudo muito confuso, planificação, a haver, será quanto muito um esquema dos personagens e situações, que invariavelmente será desrespeitado ao correr da história, quanto ao desenho hás-de concordar que depende muito da ferramenta, e já agora da disposição do momento, e a escrita tanto pode ser quase inexistente como pode assumir a forma de capítulos inteiros de uma novela. As ideias tanto podem ser procuradas por mim, como encontradas ao virar da esquina. Também junto documentação aparentemente sem objectivo, na esperança que germine e saia daí uma história. Tirando isso, considero-me uma pessoa muito organizada, basta olhar para a arrumação do meu computador, às vezes até parece que não tenho lá nada.

Durante a pesquisa para a tua bio-bibliografia deparei com situações em que misturas e remontas as tuas histórias, ou vais buscar personagens de uma história, introduzindo-a noutra. Estou a lembrar-me de Karlos Starkiller, ele próprio recuperado de Sangue Violeta para uma história em que é o protagonista, mas a história Testos Torres contra Cara Dread, conheceu uma versão no Quadrado, diferente da que está no álbum e que se calhar era diferente da que saiu n’O Inimigo... Costumas fazer esta espécie de “remix” com as histórias? Ou constróis mesmo histórias com bocados de outras, que tenham sido ou não publicados?

Sabes que sempre me deixa um pouco espantado e curioso, quando um autor diz que escreve uma história e que para ele a história acabou e que não volta a olhar para ela. Acho uma declaração radical, corajosa, porque arrisca-se a não ser verdadeira.

Há, claro, histórias e pequenas intervenções narrativas, e então de cartoon e ilustração nem se fala, das quais só me volto a lembrar, ou a situar, quando tenho que fazer um esforço para, por exemplo, reunir material para uma exposição ou organizar um portfolio, ou algo no género. E, a maior parte das vezes, detesto fazê-lo, pois as coisas devem seguir o seu rumo, assentando o que há para assentar e mexendo o que há para mexer. Não tenho nada contra o trabalho arqueológico, bem pelo contrário, só que, quando me diz diretamente respeito, me sinto desconfortável. Mas faço frequentemente, como tu dizes, remisturas, diria mesmo "roupa velha", com as situações, mas sobretudo personagens das histórias.

Passou-me frequentemente pela cabeça a ideia que trabalho as histórias do mesmo modo que cozinho. E quanto mais o trabalho da história se aproxima do meu método culinário, mais gozo me dá. Nalguns casos poder-se-á comparar a um jantar com a família ou os amigos, noutros mais como uma semana de acampamento. A evolução e os sucessivos aproveitamentos de Karlos Starkiller serão talvez como churrascadas numa casa de campo, enquanto o Marreco, que passou da fase d' O Atraente Estranho para Marrequinho, Chez Marreco, e até apaixonado em Eutanásia, e sei lá quantas mais, será mais típico dum período de férias à beira mar, a dormir debaixo das estrelas, cozinhando o melhor possível com o que há. Quando o Atraente Estranho chegou à fase de Chez Marreco penso que eu já tinha ganho experiência e assumido a analogia culinária. O Marreco abriu, então, um restaurante.

Nunca paraste de contar histórias em banda desenhada desde Chico, na Gazeta da Semana em 1974 – excepto no lapso de tempo de que já falámos acima. Como foi o início, antes de Chico? Como é que te interessaste pela BD e começaste a fazê-la?

O Chico foi criado de propósito para a Gazeta da Semana e é de 1976, eu sei, durante muito tempo fiz o mesmo erro, mas fui confirmar ao site do Centro de Documentação 25 de Abril e é mesmo 1976. Houve fanzines antes disso, nomeadamente O Estripador, que nunca passou do número zero. Quanto ao começo, não sei ao certo, perde-se no tempo. Sei que, tinha eu sete anos de idade, engoli um lápis com sete centímetros e meio, quando estava a desenhar barcos em papel de cartucho. Estava sentado na cama, morávamos então em Campolide. Ainda hoje me lembro. Mais, não sei.

Jorge Machado-Dias, Março-Abril de 2011

 
 
 
 
 
 
 

Pode ver-se a versão da BIO BIBLIOGRAFIA DE RELVAS - também do BDjornal #27 que publiquei AQUI no Kuentro em Maio de 2014, por alturas da exposição 
RELVAS E A REVISTA TINTIN, no CNBDI

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