quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

CENTENÁRIO DE EDUARDO TEIXEIRA COELHO II

O KUENTRO NO CENTENÁRIO 
DE EDUARDO TEIXEIRA COELHO 
(4-jan-1919 – 2019)

Depois do post anterior, de dia 16, com o Programa do Clube Português de Banda Desenhada para o Centenário do autor, o Kuentro prossegue, com o inicio de uma série de matérias, associando-se a esta iniciativa para comemoração da data.

Eduardo Teixeira Coelho
Óleo de Gilda Teixeira Coelho

ETCOELHO 
A ARTE PARA ALÉM DA VIDA

Por José Ruy 
no BDjornal #22 (Jan-Fev 2008)

A pedido do meu amigo Jorge Machado-Dias – e os seus pedidos são irrecusáveis para mim –, estou a apresentar as impressões colhidas do meu encontro no último ateliê de Eduardo Teixeira Coelho, com as suas derradeiras obras. Considero uma honra e um privilégio ter sido escolhido para esse efeito, acompanhando a Drª Cristina Gouveia, Directora do Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem (CNBDI), a Itália, e sublinho o acolhimento afectuoso da filha do artista, Cristina Teixeira Coelho e de Giulio Benuzzi. O título que dou a estas linhas foi inspirado no que o Arqº. Leonardo De Sá e o Dr. António Dias de Deus deram à monografia E. T. Coelho: A Vida e a Obra, e a cujos autores solicitei a devida autorização. Fico honrado também pela disponibilidade do Leonardo De Sá em rever tão amavelmente este artigo. Impõe-se assinalar que algumas imagens reproduzidas junto a este artigo são fotogramas extraídos de um vídeo que realizei no estúdio de E. T. Coelho, e por isso com fraca definição. Ficam aqui como documento.


É sabida a minha admiração pela Arte de Eduardo Teixeira Coelho, desde que a luz dos seus desenhos iluminou as capas e as páginas do jornal O Mosquito. Toda a minha geração, ou uma grande parte dela, apreciou o seu traço, as suas composições, os cabeçalhos ilustrados das novelas e o movimento que sempre soube dar às figuras, tanto humanas como de animais. Eu, que garatujava uns rabiscos desde que me lembro, acabei por ser encaminhado até ao Grande Mestre para receber indicações de como fazer esse trabalho que me fascinava: as Histórias em Quadrinhos (expressão brasileira mas que prefiro à designação de Histórias em Quadradinhos, por se tratarem realmente de pequenos quadros em sequência).

Não foram apenas indicações o que recebi de Eduardo Teixeira Coelho, foi um abrir de caminhos até aí invisíveis para mim. Eram muitos os colegas da Escola António Arroyo (na grafia da época) que sonhavam, como eu, vir a colaborar n'O Mosquito e conhecer o ETC. Poucos o conseguiram. Nós, os que frequentávamos na Escola o curso de Litografia (Artes Gráficas), tínhamos o privilégio de visitar pontualmente a mítica redacção desse jornal infanto-juvenil, ver os originais das fantásticas ilustrações criadas ao dobro do formato da publicação e ensaiar um desenhito numa chapa de zinco Offset, que permitia a cada um ficar com uma prova tirada no prelo, para recordação.

Também o Mestre João Rodrigues Alves, grande amigo do Artista, proporcionava a ida de E. T. Coelho à sala de aula na saudosa Escola. Dizia-me há pouco o meu amigo e colega José ·Baptista, que desenvolveu parte da sua obra de Ilustração e Histórias em Quadrinhos sob o pseudónimo de «Jobat», que ainda hoje recorda com emoção uma dessas visitas, em que o ETC desenhou rapidamente uns cavalos que pareciam saltar do papel, deixando esbugalhados os olhos da rapaziada.

E por magia do destino, talvez pelo facto de eu cumprir à risca os ensinamentos do virtuoso Artista e dedicar todas as horas possíveis à prática do desenho do natural, fui bafejado com a sua amizade firme e duradoura, chegando a partilhar os seus ateliês e até mais tarde ser também seu associado em vários que tivemos em Lisboa.

Quando se esgotaram as condições em Portugal para que E. T. Coelho pudesse desenvolver a sua Arte, o Artista procuro além-fronteiras o seu espaço, «a ver como era» como ele próprio afirmava. E por lá ficou, abrilhantando as publicações onde colaborou quase por toda a Europa. O seu estúdio volante resumia-se a uma simples prancheta de madeira, formato A1, que já usava em Portugal, enegrecida pela grafite e pingos de tinta-da-china, onde desenhava, mesmo num canto do quarto de hotel quando da sua peregrinação por diversos países.

Por vezes demorava-se num sítio e então alugava casa por uns tempos. De onde quer que estivesse, a sua colaboração para o jornal francês Vaillant nunca falhava, enviada pelo correio.

Foi portanto com grande emoção que penetrei no seu derradeiro ateliê em Bagno a Ripoli, na Toscânia, num reencontro, como se ainda estivesse a partilhar a sua presença e o seu conselho, como aconteceu desde que o conheci.

Eduardo Teixeira Coelho sempre se fez acompanhar por gatos, primeiro siameses e depois da raça que calhava, quando minúsculos ainda, os recolhia do abandono do mundo agreste onde iriam sossobrar. É o caso do enorme e terno gato preto manchado de branco, como pintura, que levara para casa, ainda cabendo numa mão, dentro de um bolso para o aquecer. E é comovente ver esse seu amigo dedicado, cheirar e deitar-se ainda sobre os pertences do Artista, como a chamá-lo à vida para ser afagado.

E foram muitos os desenhos em que esses felinos serviram de modelo: enroscados em si, ronronando, saltando na tentativa de apanhar um pássaro, espreguiçando-se ou olhando atentos o movimento da mão que os desenhava. Sempre que Teixeira Coelho me escrevia fazia uma referência aos seus bichanos. Falava-me de uma gata branca com uma cauda felpuda e malhada. Um dia enviou-me o seu retrato... em desenho, claro.




Eduardo Teixeira Coelho amava todos os seres vivos. Não era capaz de matar uma aranha nem uma formiga e muito menos uma mosca. Eram, para ele, seres com direito à vida.

A sua segunda filha, Cristina Teixeira Coelho, recorda com ternura quando em Florença, na «Festa dos Grilos», cuja tradição mandava as pessoas adquirirem pequeninas gaiolas com esse insecto ortóptero, que cantava alegrando a casa com a sua tristeza de estar preso. ETC ia com a esposa e filha comprar quantas gaiolas comportava o carro. Depois, chegado ao campo, abria as pequenas prisões para os libertar evolvendo-os ao seu ambiente natural. Era uma alegria para os três e logicamente também para os grilos.

O seu ateliê estava instalado na Colina de Ripoli, numa casa onde chegou a morar Galileu Galilei, hoje sabiamente transformada turisticamente por Giulio Benuzzi e a filha do Artista. Mais acima, perto, uma casa habitada por Miguel Angelo. Estava destinado que E. T. Coelho também ali trabalhasse.

Da janela aberta sobre um modesto mas cuidado jardim, por entre as árvores desfolhadas e os vasos envoltos em plástico transparente para proteger as plantas e flores do frio deste Inverno, na linha do horizonte observa-se Florença, a bela, onde ETC também teve mais de um ateliê.


E foi em Florença que nos voltámos a encontrar depois da sua partida de Portugal, ainda no século passado. Reatámos então, num longo serão, as conversas intermináveis em que costumávamos mergulhar até de madrugada.

No interior aquecido do ateliê em Ripoli, a velha prancheta repousa no tampo da mesade trabalho e sobre ela a caixa de aparos «A. Sommerville & Cº.» da Birmincham, marca que usava já em Portugal, e que eu também ainda utilizo, as canetas e os apetrechos para as gravuras em madeira e linóleo, tudo parecendo esperar a todo o momento uma ordem para entrar em acção. Placas de linóleo ainda virgem espreitam as goivas arrumadas na caixa de madeira. Outras, com desenhos bem sulcados na sua superfície, mostram vestígios das provas a que foram submetidas. Uma catedral, uma figura em contraluz ou um retrato de alguma figura célebre da Renascença.

Gravura em linóleo

Muitos quadros sobre as Armas Brancas e Armaduras da Itália, do século XII ao século XV, fruto de elaborada pesquisa durante dezenas de anos, pendem das grossas paredes. Este material teve uma honrosa exposição na Igreja de San Domenico, em 2005. Eduardo Teixeira Coelho dedicou-a à memória de sua amada esposa e também distinta Artista, Gilda Reindl Teixeira Coelho.

O desenhador empenhou-se dedicadamente a este evento. Escreveu-me a dar nota de ter rejeitado outros locais anteriormente disponibilizados, por não terem os requisitos necessários. Por fim conseguiu aquele espaço nobre e a exposição foi um êxito. O curioso é que o Artista falava sempre das suas Histórias em Quadrinhos, como os seus «bonecos», mas quando se referia ao trabalho das Armas e Armaduras, com vários e valiosos livros publicados, os seus olhos brilhavam de modo especial. Era uma paixão. E poderíamos pensar que menosprezava as suas bandas desenhadas. Puro engano.


Capa do Catálogo da exposição na igreja de San Domenico, em 2005.

Numa carta que me enviou em Março de 2005, pouco antes de falecer, pediu-me para procurar em Portugal uma história sua que não chegara a ser publicada e lhe enviasse os originais. Era passada na época do Rei Artur.

A carta de Março de 2005 - frente e verso

Explicava-me que planeava voltar a apresentar a exposição das Armas, mas desta vez com uma inovação. Palavras suas: «A ideia é mostrar ao público o que são histórias de BD, mas só a preto e branco é pobre e daí pensar completar com cinzento. É uma ideia fixa que tenho e que espero possa servir para qualquer coisa ... Creio que exposições sejam úteis para interessar o público. Veremos o que sai daqui!»

Fica aqui bem claro que ele pretendia sensibilizar o público específico que afluía a admirar o seu trabalho das Armas, para o campo das Histórias Ilustradas. E não deixa dúvidas da sua intenção em expor os originais das Histórias em Quadrinhos, reconhecendo a sua importância para a divulgação das mesmas. Ainda bem que o CNBDI tem nos seus arquivos na Amadora grande parte da sua Obra, bem preservada, promovendo mostras para admiração das novas gerações. Estou certo de que o meu grande Amigo ficará feliz, onde estiver, sempre que alguém observe o seu talentoso trabalho.

Em 2005, Cristina Teixeira Coelho ofereceu à Autarquia da Amadora um valioso quadro pintado a óleo por sua mãe, Gilda Teixeira Coelho, representando ETC a desenhar na sua banca de trabalho. É uma preciosidade que a Amadora se orgulha de possuir.

Continua ...


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