sábado, 23 de fevereiro de 2019

AINDA A MORTE DE GERALDES LINO – O IMORTAL APAIXONADO – TEXTO DE NUNO SARAIVA

Foto de Jorge Machado-Dias
No 226º Encontro da Tertúlia BD de Lisboa, em 2 de Dezembro de 2003

AINDA A MORTE DE GERALDES LINO
TEXTO DE NUNO SARAIVA 

Republico aqui, com a devida autorização do autor o post que colocou na sua página do facebook 

O IMORTAL APAIXONADO 

Entramos na capela do do Cemitério do Alto de São João e as pernas tremem-nos. Tenho 16 anos, o Filipe Abranches tem 14, o Ricardo Tércio está com 10, o João Fazenda tem 11 acabados de fazer, o João Maio Pinto está mais velho que eu hoje, apareceu aqui com 30 anos. Neste momento sentimos ter todos a idade em que o conhecemos.
É toda uma espécie de família desunida, desigual, afastada no estilo e gosto, aqueles dos clássicos ou aqueles do Underground ou lá o que isso possa significar, que hoje encontra um significado num denominador comum: reconhecemos todos ser filhos e filhas da paixão de um só homem, o nosso querido Geraldes Lino. Por não lhe querermos falhar, estamos pela última vez a fazer-lhe companhia, estupidamente convencidos que o Lino nos está a ver e a responder-nos com um sorriso, inchado de satisfação e corado de vergonha.

Todos aqueles que começaram, desde os oitentas, a sonhar fazer BD e ver os seus primeiros trabalhos publicados, sentem uma dívida de gratidão para com o Lino. Soa mal chamar-lhe de padrinho, seria mais um parteiro que insistia em ajudar a parir novos autores, mesmo que a ferros, independentemente do estilo ou tendência artística. Se hoje temos uma panóplia de estilos no pensamento e engenho, muito se deve ao Lino defensor do contrário, do diferente, do reverso das coisas. Era daqueles que tanto podia aparecer num Grémio Literário como de seguida num encontro de fanzines LGBT.

Fundador do Clube Português de Banda Desenhada em 1976, franco conhecedor e presença assídua nos principais festivais internacionais de BD, um permanente viajante cuja vida de funcionário da TAP ajudava muito nesse sentido, pioneiro em Portugal na edição de fanzines, divulgador e organizador de eventos, o Lino nunca conseguia estar parado. Sempre pronto para opinar, discutir, construir e acima de tudo apoiar os mais jovens. Junto dos mais jovens, e por ele passaram gerações, os seus pequenos olhinhos transformavam-se em faróis luminosos cheios de alegria.

E nós aqui a chorar. Nós, passados os anos e já mulheres e homens feitos, sempre que tínhamos um livro para lançar, uma exposição a inaugurar ou uma conferencia para o debate das ideias, sabíamos que o Lino iria lá estar. O Lino nunca nos falhou, estivesse ele doente ou com impossíveis engarrafamentos de trânsito encontrava sempre uma maneira de conseguir estar presente, não apenas por “militância” mas porque sabia que o seu apoio era importante para nós. O Lino aparecia, intervinha sempre mesmo quando, em esforço, forçava as muito magoadas cordas vocais, (quase as perdia numa agitada conferencia no Forum Picoas nos finais dos oitentas) e depois fazia questão de se despedir de todos um-a-um. “-Então Lino, já vais? Vamos a uma jogatana no Snooker club?” “-ehpá, hoje não dá, tenho que acabar um texto para o meu blog... Quem é aquela garota contigo? Bonita pá! Ok, vamos lá."

Escondido atrás do seu grande bigode, um sorriso maroto ocultava um genuíno sedutor, parecia o Bertrand Morane do filme do Truffaut un homme qui aime les femmes, o Lino amava as mulheres tanto quanto as respeitava. E recebia delas um carinho desmedido de tão estranhas proporções que chegava a ser invejado por muitos. “-A menina também faz BD? Gosta de fanzines? Dá-me o seu contacto?". Eros em puro êxtase.

De baixa estatura e franzino, tinha colhões do volume de toda a colecção reunida do Cavaleiro Andante mais todas as séries do Mundo de Aventuras, resmas de coragem, defendia um amigo em qualquer ocasião. Alguns recordarão um episódio no Intercidades em que uma comitiva regressada de um Festival do Porto assiste a um agitado confronto entre dois colossos da BD e, carruagem repleta, é o Lino que salta a separar os amigos, vermelho que nem um tomate.

Despedimos-nos agora do Lino. O nosso imortal. O imortal apaixonado. Aquele que nunca morrerá porque não se matam as paixões. Mesmo combalidas, todos aqui sabem que as paixões voltam sempre a florescer.
E a paixão do Lino deve estar neste momento a nascer no peito de algum pequenote. Acreditamos.

Adeus e obrigado, Lino.
Nuno Saraiva

no Alto de São João, em Lisboa.

Última aparição pública de Geraldes Lino no 416º Enconto da Tertúlia BD de Lisboa, 
em 8 de Janeiro de 2019.

COMENTÁRIO DE JOSÉ RUY A ESTE TEXTO DE NUNO SARAIVA

Estimado amigo Nuno Saraiva, estou comovido com o que escreve sobre o saudoso Geraldes Lino, amigo do seu amigo, e amigo das causas da BD a que dedicou toda a vida. Foi-me impossível, como sabem, de estar presente nessa despedida; para nós dois, a despedida foi na sede do CPBD umas semanas atrás, quando foi visitar a exposição do centenário de ETCoelho, que muito admirava. Todos temos muito a recordar sobre a conduta e dedicação desta figura ímpar que marcou a nossa BD, em todos os escalões etários. O Geraldes Lino manteve sempre o espírito jovem e era entre os jovens que se sentia mais útil, ora aconselhando, ora ajudando mesmo. É com grande carinho que o vamos manter na nossa memória viva, pois assim ele continuará connosco. Obrigado, Nuno Saraiva pelo seu gesto, obrigado Machado Dias por dar este relevo no prestigiado «Kuentro». Profunda saudade, querido amigo Geraldes Lino, e um até já.
José Ruy

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