terça-feira, 11 de junho de 2019

SOB O SIGNO DO PELICANO de Jorge Machado-Dias - Livro em fase de acabamentos...

Projecto de capa

SOB O SIGNO DO PELICANO 

Livro em fase de acabamentos...

Deixo aqui um pequeno excerto do livro que estou a escrever e que se encontra na fase de revisão e acabamentos, para eventuais leitores poderem deixar uma opinião ou... marimbarem-se completamente para o assunto.
Eventualmente criarei um blogue próprio sobre esta matéria...
Já agora, o logotipo da editora Vega que figura no projecto de capa, serve só mesmo para compor o ramalhete, uma vez que ainda não contactei qualquer editor para a edição.

OS CAPÍTULOS DO LIVRO

Introdução 
O Africano 
A Guerra da Beltraneja 
A Prata das Igrejas 
Toro 
O Raposo de França 
Um Tratado em Três Capítulos 
Nas Tercenas 

Rei Pelicano

As Cortes de Évora 
A Mina 
Conjuras 
Zaire 
Mitos 
Desvendar Mitos 
Ao Cabo das Tormentas 
Pelo Meridiano de Tordesilhas 
Peçonhas 
Relatos 
Epílogo 
Bibliografia de Apoio
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INTRODUÇÃO 

A escrita deste livro tem a sua génese num texto que escrevi em 1995, como argumento para uma banda desenhada, depois de ter lido a Crónica do Príncipe D. João, de Damião de Góis. Retomei o texto em finais de 2018, agora com a intenção de o publicar em livro, escrito sob a vaga inspiração estilística de Maurice Druon, na sua obra de sete volumes, Os Reis Malditos. Não se trata propriamente de uma crónica “histórica” do rei João II, embora a sua pessoa e os factos ocorridos, desde quando ainda era príncipe, sejam o motivo principal do texto.

Digamos que se trata de uma variação ou um divertimento sobre o tema do reinado do cognominado Príncipe Perfeito.

Optei, à maneira europeia, por omitir o tratamento habitual dado aos reis portugueses, não precedendo os seus nomes pelo pronome de tratamento Dom, que nem os castelhanos já usam muito e que me pareceu sempre um “castelhanismo” descontextualizado. Também prescindi de introduzir quaisquer maneirismos de linguagem "à século quinze", que se usam muito em obras, especialmente as romanceadas, que abordam esta época.

Também não utilizo o tratamento por Majestade, que muitos autores usam a torto e a direito, para todas as épocas. Este tratamento de estilo só foi usado no reino português a partir de Sebastião I, por influência da sua avó Catarina de Habsburgo, regente até à maioridade do rei e nascida no império austríaco, onde era usado aquele tratamento devido à influência francesa. No reino português o tratamento de estilo, até ao rei João III, era o de Sua Alteza Real, o Rei.

Para aligeirar o texto criei quatro personagens, – ou seja, dei nomes e rostos a quatro espiões de João II – como pivôs da história, com personalidades muito diferentes entre si. Estas personagens aparecem sempre para pontuar determinados relatos históricos, retirando a estes a gravitas habitual e inserindo-lhes um certo humor.

João II, quando ainda era príncipe, casou com a sua prima direita Leonor de Lencastre e tomou, da empresa (ou emblema) de sua mulher, o signo do pelicano, ave rompendo o peito para alimentar, com o seu sangue, os filhos que tem no ninho e adoptou, como divisa, a frase “Pola Lei e Pola Grei”. Daí o título deste livro.


O AFRICANO 

Na manhã de 20 de Agosto de 1471, os habitantes da cidade magrebina de Arzila depararam-se, perplexos, com o mar, em frente da cidade, repleto de velas brancas, que avançavam na sua direcção. Mal podiam acreditar no que viam. Era a armada de cerca de quatrocentos navios de Afonso V, rei dos portugueses, transportando o seu exército, com mais de trinta mil homens, que se aproximava para conquistar a cidade. O rei Afonso tivera informações de que o sheik de Arzila, Mullay Muhammad Said-el-Uttaci, se encontraria a cercar Fez, na guerra que mantinha contra o sultão. A cidade estaria, portanto, quase desguarnecida de homens de armas.

Afonso V preparara aquele exército para a Cruzada, proclamada pelo Papa Calisto III, após a queda de Constantinopla nas mãos dos turcos otomanos. Mas, devido ao malogro dessa iniciativa papal, o rei português dirigiu o seu exército para o Norte de África, contra a cidade de Arzila, a sul de Tânger. Esta última tornara-se mesmo uma obsessão para a coroa portuguesa, tendo sido a sua conquista tentada e fracassada por duas vezes, a primeira pelo infante Henrique, o Navegador e a segunda pelo próprio Afonso V.

A obsessão pela cidade tangerina tinha também uma outra origem, que não era apenas a da sua conquista. Na primeira tentativa fracassada para conquistar Tânger, levada a cabo em 1437, sob o inepto comando de Henrique, o Navegador que, perante a derrota e sob o cerco das muito mais numerosas forças muçulmanas, negociou com estas uma retirada pouco honrosa dos sobreviventes portugueses. Os mouros exigiram um refém, até que a cidade de Ceuta lhes fosse devolvida e o infante, mais tarde conhecido como o Navegador, não se entregou ele próprio para esse efeito, mas o seu irmão mais novo, Fernando, como moeda de troca. Ao fim de seis anos, depois de ter sido transferido para Arzila e de seguida para Fez, o refém morreu, vítima dos maus tratos e do trabalho como escravo, sendo o seu corpo exposto, pendurado de cabeça para baixo nas portas da cidade. Os mouros recusaram sempre a entrega do corpo, ou sequer das suas ossadas, uma vez que os portugueses nunca devolveram Ceuta.

Afonso, que já tinha conquistado, no Magrebe, as cidades de Alcácer Ceguer e Anafé, decidiu-se, desta vez, por atacar Arzila, na tentativa de separar Tânger do resto do reino de Fez, fragilizando a sua defesa. È de notar que o infante Henrique, o Navegador, já com sessenta e seis anos – morreria dois anos depois – decidira participar na conquista de Alcácer Céguer, em 1458, ao lado do sobrinho. Mas antes da campanha contra esta cidade, o jovem rei teve a sua armada fundeada durante dois dias na baía de Tânger. Atacando por três vezes as muralhas tangerinas, sendo sempre rechaçado, desistiu então dos seus intentos, para grande desgosto do tio Henrique. O rei mandou os navios rumarem mais para nascente, com o objetivo de tentar a conquista de Alcácer-Ceguer, o que aconteceu com êxito.

Agora, em finais de Agosto de 1471, Afonso V chegava à vista de Arzila. Mas não se havia previsto que esta cidade possuísse um porto minúsculo, no meio de uma costa de mar pouco ou nada propícia a desembarques, ao contrário de Ceuta, conquistada cinquenta e seis anos antes, pelas tropas portuguesas de João I, ou mesmo de Tânger, cidades do Estreito de Gibraltar. Arzila ficava já virada ao Atlântico, com mar quase sempre muito encapelado e as praias cercadas por grandes recifes, onde rebentavam as ondas. Os espiões do rei, Pêro de Alcáçova e Vicente Simões, haviam sido enviados para estudarem a cidade e as suas defesas, mas... esqueceram-se de prestar atenção às condições do mar e aos escolhos nas praias, informações que teriam sido essenciais, devido ao necessário desembarque das tropas e dos meios bélicos.

O principe João, herdeiro do trono, que acompanhava o rei seu pai para se iniciar nas armas, disse logo que teria sido necessário um melhor estudo das condições de acostagem e assalto à cidade. O que o preocupava mais, nessa manhã, era a torre do castelejo, que dava para a praia do pequeno porto, onde alguns barcos acostaram dificilmente, iniciando a descarga dos homens e material bélico. Por sorte, parecia não haver qualquer peça de artilharia pesada nas muralhas.

O rei, completamente equipado para o combate, com cota de malha, armadura de aço envergada e capacete na cabeça, andava de um lado para outro, dando ordens no meio da praia. Passado pouco tempo já estava a transpirar por todos os poros.

– Cuidado com a pólvora! Não deixem cair os barris na água! – Gritava. – Esses dois aí, estão a olhar para onde? Ajudem na descarga das bombardas!

O príncipe, que ainda não estava equipado para o combate, ria-se daquela azáfama do pai e depois, mais sério, quando reparou nos habitantes da cidade, no cimo das muralhas, a verem o espectáculo do atabalhoado desembarque, e estranhando não haver qualquer reacção de homens armados, disse para um oficial que passava:

– Oh Diogo! Manda disparar os arcabuzes contra aquela gente!

Os disparos fizeram os habitantes fugir das ameias, mas por pouco tempo. Voltariam de seguida, agora em grande gritaria, lançando impropérios contra as tropas portuguesas.

Afonso não estava preocupado com nada daquilo, o que queria era assaltar Arzila ainda nessa mesma madrugada, para não dar tempo à organização da defesa, só que isso não aconteceu, devido às dificuldades com a descarga do armamento pesado. Já o príncipe, ainda com dezasseis anos, era um jovem com espírito organizativo notável e visão estratégica apurada e lastimava aquele desembarque mal preparado, que poderia dar maus resultados.

Contudo, a precipitação do desembarque, que durou três dias, levou à perda de várias barcas de transporte de homens, dos navios para a praia, e de cerca de duzentos soldados, afogados naquela confusão. As dificuldades reflectiram-se ainda mais na descarga dos cavalos e de equipamentos que não foram colocados logo em terra, como o palanque, uma estrutura defensiva circular de madeira, destinada a proteger os soldados nas manobras de assalto às muralhas e a maioria das peças de artilharia pesada, das quais apenas duas bombardas ficaram entretanto operacionais.

Temendo a possibilidade de qualquer reacção dos soldados do sheik, o príncipe João mandou três carracas colocarem-se um pouco mais a sul, em frente das muralhas que davam para o mar e dispararem os canhões contra o castelo, concentrando aí as atenções e o medo da população e dos homens de armas defensores do sítio.

As tropas portuguesas vinham pesadamente armadas, como era de esperar para o cerco e assalto a uma cidade muralhada, desde as pesadas e poderosas bombardas a outras peças mais ligeiras, como os canhões móveis, montados em reparos de madeira com rodas, até às individuais, como os arcabuzes, as bestas e obviamente as lanças, as longas espadas da época e os punhais.

Na madrugada do dia 23 iniciou-se finalmente o ataque por terra a Arzila, com o acampamento de cerco montado atabalhoadamente.

– Rebentem aquelas portas a tiro de bombardas! – Ordenou o rei, postado quase em frente das portas principais da cidade, mas a uma distância segura, para não levar qualquer tiro vindo do alto das muralhas.

– Mas, senhor, ainda só temos duas bombardas prontas a disparar e...

– Então disparem-nas! Aquilo é só madeirame!

Os dois tiros, quase em simultâneo das bombardas, estilhaçaram as enormes portas, por onde começaram logo a entrar os soldados portugueses. Uns disparavam os arcabuzes, que levavam depois algum tempo a recarregar, enquanto outros, de espadas em riste, golpeavam a torto e a direito os mouros que lhes faziam frente, embora a maioria dos habitantes fugisse em todas as direcções, como baratas tontas e em grande gritaria. Outros soldados disparavam com as bestas núvens de flechas assassinas, que caiam, sem qualquer ruído, sobre a população em fuga. Os sitiados pediram então, aflitivamente, a rendição. mas o rei gritava bem alto: “Não há rendições! Matem todos os que puderem!”

Não restava outra solução, à população da cidade, senão defender-se a qualquer custo. O ataque desenfreado e a recusa do rei em aceitar a rendição acabou por se tornar caro às tropas portuguesas, quer na malha urbana, onde se lutava rua a rua, quer nas portas do castelo, defendido pela população e pela pequena força militar do sheik.

Três homens destacaram-se quando mais soldados portugueses começaram a entrar na cidade pelas portas despedaçadas e pelos rombos na muralha de adobe, abertos também a tiros de bombarda. Contrastando com a maioria dos outros, dois desses homens usavam apenas protecções de cabedal endurecido e capacetes sem viseira. Perto deles estava um berbere de barba comprida, usando também um capacete sem viseira, mas com biqueira no cimo, vestindo djellaba branca, na verdade já mais castanha que outra coisa, botas de ponta revirada e protecções reforçadas nos braços, desferia golpes à esquerda e à direita com uma cimitarra de lâmina larga.

– Cutil!! Olha esse à tua esquerda!! Queres ficar sem cabeça?

– Não é um esturricado destes que me vai dar cabo do canastro, – disse Cutil, desferindo um golpe que levou a mão do atacante a saltar do pulso e o sangue a jorrar que nem uma torneira.

– Vamos para o castelo!! – gritou Pêro de Azeitão, aquele que tinha avisado Cutil.

Avançaram os três para o castelo, cujas portas já tinham sido derrubadas, abrindo caminho à espadeirada e levando atrás deles uma boa dezena de soldados do rei.

Álvaro Travassos, o Cutileiro, ou Cutil, como lhe chamavam, desferia os golpes agarrando na espada comprida com as duas mãos, ao alto, abrindo as cabeças que estavam ao seu alcance, enquanto Azeitão segurava um pequeno escudo redondo, de origem árabe e desferia os golpes com a espada na horizontal, rasgando peitos ou decepando pescoços. Por seu lado, o berbere Mulai Amhet era como calhava, desde que cortasse um braço, uma cabeça, ou esventrasse algum desgraçado que se lhe opusesse..

O rei Afonso e o príncipe João, dentro das pesadas armaduras de aço, que os faziam escorrer suor por todos os poros, distribuíam espadeiradas a torto e a direito por todos os mouros que lhes apareciam à frente. O príncipe João, demonstrava uma coragem pouco vulgar para a idade, mas que se poderia confundir com bravatas próprias de um jovem adolescente recém-casado.

Por seu lado, Cutil, acompanhado de Azeitão e Mulai Amhet, conseguiram entrar no castelo, com os homens do rei que os seguiam e outros que lá chegaram depois. Os poucos defensores militares puseram-se em fuga, o objectivo agora era o paço do sheik. Para grande surpresa dos atacantes, só havia mulheres nas divisões apalaçadas, sendo Mulai Amhet quem descobriu as três esposas do skeik, a um canto de uma das salas, agarradas umas às outras, num molho de braços, pernas e cabeças, cujos rostos exprimiam um medo tremendo, de olhos esbugalhados, fitando o berbere e gritando palavras que nenhum português entendia. Já agora, Mulai Amhet também não.

– Eh! Cutil! O berbere descobriu as mulheres do sheik! – gritou Azeitão, fora da porta do harém.

– Até me admirava se não tivesse sido ele a descobri-las. Estes esturricados até lhes sentem o cheiro ao longe, eh, eh!

O Cutileiro veio logo em corrida, para ver o achado do berbere e foi imediatamente, escadas abaixo, avisar Afonso V da descoberta.

– Óptimo! - exclamou o rei levantando a viseira do capacete – Ficam sob a vossa protecção! Vão servir para um negócio que me ocorre agora. Não quero que lhes toquem nem com uma palha! – avisou, enquanto o rosto cheio se abria num sorriso manhoso e acariciando a barba rala com a mão enluvada.

Ao segundo dia de combates, o rei Afonso, resfolegando dentro da armadura e retirando por instantes o capacete, num breve momento de paragem do combate, para recuperar o ritmo respiratório, constatou que pouca gente já fazia frente à tropa portuguesa, apoiou-se no punho da espada espetada no chão e disse ao príncipe

- Parece-me que os defensores do sítio estão a diminuir! Será que matámos mais gente do que supúnhamos, ou conseguiram fugir da cidade?

Mas olhando fixamente o edifício da grande mesquita, que tinha as portas fechadas, disse de repente ao conde de Marialva, que se aproximava.

- Marialva, manda rebentar aquelas portas e, se estiver alguém lá dentro... mata-os a todos!

João Coutinho, 3º conde Marialva correu logo, também a resfolegar dentro da armadura, gritando aos soldados, que arrombassem as portas da mesquita. Assim que estas foram abaixo, descobriram que a nave do edifício estava apinhada de mouros ali refugiados. O conde ordenou ao corpo de infantaria que comandava:

- Acabem com essa gente toda!

A cena que se seguiu foi a de uma brutal carnificina, da qual poucos escaparam. O chão da mesquita ficou vermelho de sangue em pouco tempo. Mas o conde que, devido ao intenso calor que o atormentava, tinha retirado o capacete e a couraça de aço que lhe protegia o corpo, também não durou muito; logo de seguida, uma flecha perdida cravava-se-lhe no meio das costas, acabando com ele.

No dia seguinte, depois de removidos os corpos e limpo o chão do sangue vertido, o edifício da mesquita foi benzido e convertido em igreja, dedicada a São Bartolomeu e onde o rei Afonso armou então cavaleiro o seu filho, o príncipe João, junto ao corpo do conde de Marialva, que repousava em câmara ardente.

– Agora, meu filho, ides ver que, assim que a notícia deste massacre, que aqui fizémos, chegue aos ouvidos dos tangerinos, eles até nos oferecem a cidade numa bandeja.

– E o que fazemos às mulheres do sheik, senhor meu pai?

– Vamos fazer uma “proposta irrecusável” a esse senhor... depois verás.

A conquista de Arzila rendeu aos cofres do rei oitenta mil dobras de ouro e muitos cativos. A capitania da cidade foi entregue a Henrique de Menezes, o também capitão de Alcácer Ceguer.

Chegou então ao rei Afonso, a notícia de que, devido ao massacre de Arzila, a cidade de Tanger ficara quase deserta, com a fuga da população, em pânico, temendo o mesmo destino.

Rindo-se para o príncipe, dizendo: “Vês, meu filho, como acertei nesta aposta?” Afonso V não teve, então qualquer dúvida. Mandou levantar o cerco, reunir o exército e foi ocupar Tânger, depois de uma marcha de quatro dias, debaixo de um sol abrasador. Acabava-se assim o problema da conquista daquela cidade, para a coroa portuguesa.

Contudo, o sheik Mulley Muhammad fez chegar uma mensagem a Afonso V, pedindo-lhe que lhe entregasse as suas mulheres. O rei, sorrindo para o príncipe, mandou responder, que as devolveria, mas em troca das ossadas de Fernando, o infante santo. Não demoraram mais de três dias para que este “negócio” ficasse concluído, uma vez que o sheik já tinha conquistado Fez e era aí que estavam as ditas ossadas, tendo sido estas, mais tarde, transportadas para o Mosteiro da Batalha.

Duas semanas depois, na grande mesquita de Tânger, transformada também, obviamente, em igreja, o rei armou cavaleiros alguns homens que considerou merecedores de tal honra. Entre eles o seu antigo escudeiro Fernão Gomes, com quem, em 1469, Afonso V havia celebrado um contrato, para que mandasse descobrir terras e encontrar tratos – mercados –, ao longo da costa de África, continuando a azáfama exploratória daquela costa iniciada pelo infante Henrique, o Navegador. Antes da morte do infante, em 1460, os seus navios haviam chegado ao Cabo Verde e era a partir daí que Gomes iria retomar as viagens, paradas havia quase dez anos. O rei cedera também na altura do contrato, a este agora cavaleiro, um dos armazéns das Tercenas de Lisboa, junto à Casa de Ceuta, para construção dos navios que precisasse para tal empresa.

A bem dizer, ao rei não interessavam muito as explorações marítimas, se bem que soubesse que os lucros com o comércio, obtidos nessa faina, lhe permitiam equipar exércitos e construir navios para os transportar. Por isso tinha realizado uma espécie de hasta pública e quem apresentasse o valor mais alto que se dispunha a pagar à coroa, ficaria responsável pela continuação das viagens de descobrimento de terras e do usufruto de novos mercados. Fernão Gomes fora o vencedor dessa disputa, continuando assim a saga das expedições marítimas, para exploração da costa africana, que lhe renderiam uma tremenda fortuna.

Os navios de Fernão Gomes terminariam aquele contrato, ao atingirem o cabo que designaram de Santa Catarina – no actual Gabão –, já abaixo do Equador, a dois graus de Latitude Sul, após terem explorado todo o golfo da Guiné, onde descobriram um florescente e lucrativo comércio de resgate do ouro de aluvião, nas terras que denominaram como a Mina – no actual Gana. Gomes receberia, em 1474, por carta do rei, o apelido “da Mina”, com direito a escudo de Armas Novas, em fundo de prata e três cabeças de negros com colares ao pescoço e argolas de ouro nas orelhas.


A GUERRA DA BELTRANEJA

Seis anos antes da conquista de Arzila, em 5 de Junho de 1465, num local perto da cidade de Ávila, em Castela, reunia-se um grupo de grandes nobres castelhanos, sob a batuta de Juan Pacheco, marquês de Vilhena, secundado pelo arcebispo de Toledo, Alfonso Carrillo, pelos condes de Plasencia e de Benavente, mais outros cavaleiros, tendo como público algumas gentes do povo. Também se encontrava no local o infante Alfonso, meio irmão do rei Enrique IV, de Leão e Castela, e que não tinha sequer treze anos. Estes senhores depuseram o rei, em efígie, proclamando em seu lugar o infante, com o nome de Alfonso XII – não reconhecido pela historiografia castelhana, – que viria a morrer três anos mais tarde num acidente de cavalo. Essa cerimónia foi designada pelos seus detractores como “a farsa de Ávila”, devido ao facto de este rei, ali “entronizado”, se ter tornado um fantoche nas mãos do do marquês de Vilhena e não ter sido aceite pela maioria dos povos do reino.

Tudo isto aconteceu devido ao facto de Enrique IV, cognominado “o Impotente”, pela anterior esposa Branca de Navarra, ter casado, em segundas núpcias, com Joana de Portugal, irmã de Afonso V. Deste casamento nasceu outra Joana que, dada a impotência do rei, foi considerada filha adulterina da rainha, com Don Beltran de la Cueva, o valido do rei. Daí que Joana tenha sido apodada como “a Beltraneja”.

Mas o acontecimento de Ávila deu-se, sobretudo, porque este Beltran de la Cueva foi, em 1461, colocado pelo rei no Conselho Real, tirando o lugar a Juan Pacheco, o marquês de Vilhena, como homem de confiança (valido) de Enrique IV. Ao mesmo tempo, o seu irmão Gutierre foi nomeado bispo de Palência. Daí o grande ódio contra o rei, que passou a animar o marquês, levando-o a orquestrar toda a questão da “Beltraneja”, na tal Farsa de Ávila.

Para se perceber a questão dinástica de Castela, é preciso ir um pouco atrás na genealogia. O rei Juan II de Castela, que reinou entre 1406 e 1454 casou com Maria de Aragão, nascendo desse casamento o futuro Enrique IV, o Impotente, rei de Castela. Após a morte da rainha, Juan II casou, em segundas núpcias, com Isabel de Portugal, prima de Afonso V. Desse casamento nasceu Isabel, a futura rainha Católica.

Em 1468, Enrique IV, dando provas da sua volubilidade, aceitou um pacto com a sua meia-irmã Isabel, em como seria ela a sua sucessora. Isabel casaria em 1469 com Fernando de Aragão, sendo o casal, mais tarde, cognominado como “os reis Católicos”. Este pacto invalidava a sucessão de Joana, a Beltraneja, embora, mais tarde, o rei fizesse tábua rasa do pacto com a sua meia-irmã Isabel, deixando de se pronunciar sobre a questão sucessória até morrer.

Enrique IV morreu em Dezembro de 1474 e desencadeou-se então a guerra civil, que já andava latente, entre os partidários de Joana, a Beltraneja e os de Isabel, a Católica.

Afonso V estava a jantar com o príncipe João, no Paço de Santarém, quando lhe transmitiram as notícias de Castela ao ouvido. O rei levantou-se num repente, com grande estardalhaço de copos, garrafas e talheres a cairem no chão e quase gritou “Chamem o meu Alferes-Mor, para aprontar o exército! Estamos em guerra!” perante o espanto do príncipe que perguntou com toda a calma “Em guerra, senhor meu pai? Vamos conquistar outra cidade do Magrebe?”

- Não meu filho. Isto é mais grave! Marchamos para Castela! Está a acontecer o impensável: a minha prima Isabel quer roubar o trono de Castela à minha sobrinha Joana! Não posso permitir que isso aconteça!!

A verdade é que o rei estava parado à demasiado tempo no reino. Precisava de acção, do tumulto dos grandes combates, apesar de, desde o seu regresso do Magrebe, já ter percorrido o território do reino dezenas de vezes. Isso não o satisfazia. Tinha que ouvir o troar da artilharia e sentir o cheiro da pólvora, os disparos dos arcabuzes, o tropel dos cavalos, o choque das espadas, os gritos dos homens. Mas, sobretudo, a honra que o combate, uma vez ganho, lhe traria.

Vieram então à presença do rei, não só o Alferes Mor, Duarte de Almeida, mas também Vasco Chichorro, o capitão da cavalaria, a quem o rei, já acalmado, disse serenamente: “Meus senhores, preparem o exército. Vamos para a guerra!”

- Guerra contra quem, alteza? – Perguntou Chichorro.

- Contra a minha prima de Castela e o ranhoso do marido dela, o aragonês!

Ainda no verão de 1474, o rei Afonso V tinha recebido, no paço de Estremoz, o fidalgo castelhano don Juan de Guzmán, irmão do duque Juan Alonso Pérez de Guzmán y Suárez de Figueroa, duque de Medina Sidónia. Esta família dedicava-se ao comércio de tecidos, na região sevilhana do reino islâmico de Granada, tendo contactos no norte de África e na Itália, correndo mesmo o boato de que o duque seria o famoso e misterioso corsário mediterrânico, denominado “pirata castelhano”. A visita do fidalgo ao rei português teria talvez a ver com estes negócios, ou com uma qualquer questão política. Na sua companhia viajava um jovem português de vinte e quatro anos, de nome Pêro da Covilhã, natural da cidade que constava como seu apelido.

Pêro da Covilhã teria partido da sua terra, para Sevilha, aos dezoito anos, na companhia de um servidor de Juan de Guzmán, que fora àquela cidade tratar de negócios para o seu senhor. Covilhã acompanharia o fidalgo nas suas viagens a Granada, Almeria e norte de África, onde teria permanecido por quase um ano, entre Melila e Ourão, tendo aprendido a falar a língua árabe.

Afonso V terá ficado surpreendido com o facto de Covilhã se exprimir fluentemente em castelhano e árabe, propondo ao fidalgo sevilhano que lhe cedesse os serviços do rapaz. Pêro da Covilhã tornou-se assim “moço de esporas” do rei. Don Juan de Guzmán aproveitou o ensejo para se queixar da actividade dos corsários portugueses Pêro Coulão e Pêro de Ataíde, que pareciam ter um prazer especial em assaltar os navios da sua família, ao que o rei respondeu, com um sorriso e um encolher de ombros, como quem diz “Não tenho nada a ver com esse assunto, meu caro!”

Depois do fidalgo sevilhano se retirar e de Covilhã ter saído da sala na companhia de um escudeiro, que lhe ia indicar onde assentaria cama, o príncipe João, que assistira a toda a entrevista, disse ao pai: “Senhor meu pai, tereis de controlar melhor a actividade desses corsários, para não termos problemas mais graves!” ao que o rei encolheu de novo os ombros, respondendo “Meu filho, esses e outros nossos corsários são essenciais na defesa da costa do reino e não vos esqueçais, de que um quinto dos seus saques vem parar aos cofres da coroa!”

Em 18 de Maio desse ano nascera Afonso, filho do príncipe João e de Leonor de Lencastre, sua mulher. O rei incita-o para que vá a Lisboa ver o filho, mas João responde-lhe: “Ora, meu pai, estão lá as amas para velarem por ele, as cuvilheiras para lhe mudarem as fraldas, a ama de leite para o amamentar e a mãe para o confortar. Não faço lá falta nenhuma e, além do mais, as crianças acabadas de nascer dão-me um bocadinho a volta ao estômago”.

Em Abril de 1475, o rei AfonsoV, designou o príncipe João como regente do reino, num cerimonial aparatoso, que serviu para legitimar publicamente o exercício do poder pelo filho. De seguida reuniu a sua hoste e, no final de Maio, partiu para Castela, com cerca de cinco mil e seiscentos cavaleiros e catorze mil peões, para defender os direitos da sobrinha ao trono de Castela.

Acompanhavam-no o marechal do reino, D. Francisco Coutinho, o capitão da cavalaria do rei, Vasco Martins de Sousa Chichorro, Lopo de Albuquerque, o capitão da vanguarda real, o conde de Loulé, Henrique de Maneses, Afonso de Vasconcelos, conde de Penela e o conde de Monsanto, mais alguns nobres “menores”. A hoste do rei, ao que parece, marchou em perfeita ordem, acompanhado pela carriagem de apoio. Na dianteira seguia o adail-mor, Diogo de Barros, com alguns ginetes como batedores do terreno.

A 25 de Maio, a hoste saiu de Alegrete e entrou em Castela, dirigindo-se para norte.

O novo moço de esporas do rei, Pêro da Covilhã, montado numa pileca que tinha descoberto nas cavalariças da corte, seguia logo atrás do cavalo real que, conforme o costume do rei, trotava pomposamente ajaezado. As bandeiras reais e dos fidalgos envolvidos drapejavam sem grande convicção na aragem que se levantava de vez em quando, empurrando nuvens de poeira. Tudo aquilo, armaduras, bandeiras, flâmulas, lanças a apontar o céu, brilhos dos metais, a elegância e porte dos cavalos, atraia a atenção da população por onde passava a hoste, que evoluia pela Estremadura Castelhana acima.

– Que resposta pensais que nos darão os “do outro lado”, senhor? Perguntava o marechal ao rei, cavalgando a seu lado.

– Ora, Coutinho, vão dar-nos guerra! Mas defenderei a minha sobrinha, filha da minha irmã, com todas as minhas forças. Caso-me até com ela, como já está combinado e assumiremos o título de reis de Leão e Castela! Não é uma boa jogada?

– O aragonês não vai virar a cara à luta, meu senhor!

– Claro que não vai e conto com isso. Depois de o derrotar em batalha, poderei até assumir o trono de Aragão... fico por rei de todas Espanhas, hem?

O marechal do reino ria-se interiormente daquela pretensão, se bem que mantivesse o mesmo semblante grave de sempre, quando falava com o rei.

A hoste real marchava distribuída pelos diversos esquadrões, ou “batalhas”, como lhes chamavam na altura, dirigindo-se a Plasencia, onde Joana, a Beltraneja, aguardava o noivo, seu tio. Por outro lado, Fernando de Aragão reunia, com alguma dificulade uma hoste, um bocado à pressa, uma vez que não tinha contado que Afonso invadisse Castela. Por outro lado, a maioria dos nobres do reino da Galiza optou por se colocar ao lado de Afonso V.

Depois de casarem em Plasência, o tio e a sobinha Joana de Trastâmara, a Beltraneja, dirigiram-se para Toro, pernoitando em Arévalo. Contudo, o casamento não foi consumado, por se aguardar a dispensa do papa Sisto VI, que era necessaria devido ao grau de consanguinidade que unia os nubentes. Mas a dispensa papal nunca viria a ser concedida.

Entretanto, Fernando de Aragão conseguiu reunir a sua hoste, mesmo assim, ao que se sabe, muito mais poderosa que a do rei português e dirigiu-se também para Toro. Afonso V deixou a Beltraneja em Zamora, à guarda de Lopo de Almeida e foi ao encontro do inimigo.

Mas o rei de Aragão, na sua marcha para Toro, sabendo que Burgos era favorável à Beltraneja, entretanto proclamada rainha, pôs cerco a essa cidade.

Com as tropas estacionadas em Arévalo, o rei português, esperou a evolução do cerco de Burgos pelo inimigo. Contudo Afonso V, mesmo parado, sofreu importantes baixas temporárias, devido a uma intoxicação colectiva de parte dos seus homens que, à boa maneira portuguesa, resolveram aproveitar aquela paragem para se dedicarem a uma actividade muito pouco conveniente para um exército em campanha: a chinchada! Apanharam e comeram tanta fruta, ainda verde, que o resultado foi um diarreia colectiva.

Perante isto, o rei não sabia muito bem o que fazer. Mas alguns dias depois, lá se decidiu a avançar sobre o inimigo que cercava Burgos. No entanto recebeu a notícia de que o conde de Benavente, Rodrigo Alonso Pimentel, com quatrocentos homens de armas, atacava a pequena vila de Beltanás, que se declarara partidária da Beltraneja. O rei decidiu então investir contra as tropas do conde, dividindo a sua hoste em duas partes, para se fazer um ataque “em tenaz”. Uma parte dirigida por ele próprio e a outra por Lopo de Albuquerque, seu camareiro-mor e conde de Penamacor.

No entanto a união das duas partes da tropa portuguesa não foi bem sucedida, tendo a força do rei chegado muito atrasada ao ponto de encontro, permitindo que as forças do conde de Penamacor fossem desbaratadas pelo conde de Benavente. Mas a chegada das forças do rei apanhou o conde castelhano desprevenido, obrigando-o a retirar.

O sucesso militar de Beltanás, deixou Afonso V muito motivado a marchar para o descerco de Burgos. Alguém o aconselhou a não o fazer, devido ao número superior das forças reunidas pelo aragonês e assim, a tropa portuguesa voltou para Arévalo. Sem saber muito bem o que fazer, o rei decidiu que o inverno seria passado pela sua hoste em Zamora, para onde se dirigiram depois de, pelo caminho, terem conquistado a minúscula vila de Cantalapiedra.

Entretanto, os castelhanos responderam às acções do rei dos portugueses e Franscisco de Solis, mestre da Ordem de Alcântara, entrando em Portugal pela fronteira de Elvas, foi cercar a vila portuguesa de Ouguela.



Enquanto o rei Afonso não se decidia a acometer contra o cerco de Fernando, o Aragonês a Burgos, num outeiro perto de Elvas, Álvaro Travassos, o Cutileiro, ou Cutil, para os amigos, vestindo uma farpela azul escura já muito suja e coçada, andava de um lado para o outro, com a mão esquerda atrás das costas, prendendo a enorme capa de cor indefinida, talvez azul, ou talvez castanha, enquanto gesticulava com a direita. Calçava umas botas de cor também indefinida devido à quantidade de lamas e poeiras mal escovadas que as cobriam.

– Onde é que se meteu aquele sacana berbere? Estamos aqui há horas e estou a ver lá em baixo uma poeirada dos diabos, com tipos a cavalo a irem para norte em grande velocidade. E o filho da puta não aparece.

– Tem lá calma, Cutil, o homem sabe o que está a fazer. Se não voltou já, é porque não pôde. – Respondeu calmamente Pêro de Azeitão, sentado num afloramento de pedras.

Cutileiro era um homem grande e de vez em quando coçava uma pequena cicatriz que tinha na face direita, resultado da investida mais audaciosa de um mouro, durante a conquista de Arzila. A cada passada que dava levantava-se uma pequena núvem de poeira. Usava um chapéu de abas largas, completamente fora das modas daquele tempo. Era um “tipo à antiga”, que não gostava de modernices.

– Se calha foi apanhado... mas não me custa nada pensar que aqueles tipos, vindos de onde me parece que vêm, são os cabrões dos castelhanos do Solis.

– Mas não viste de onde vieram... – Respondeu-lhe Azeitão.

– Ora, ora, aposto uma caneca de tintol em como saíram de Badajoz!

De repente chegou um cavaleiro a galope, no meio de grande poeirada – não só no Verão, mas até no Inverno, o Alentejo era uma terra muito poeirenta. O homem tinha pele trigueira, cabelos negros compridos e desgrenhados vestindo uma djellaba tão suja que mais parecia côr “de burro quando foge”. Desmontou antes de deixar o cavalo parar e dirijiu-se a Cutileiro num português um bocado trapalhão com algumas palavras árabes pelo meio.

– Senhor, eram cavaleiros com a estrela... humm... uma estrela verde no ombro...

– Hummm! Verde? Estrela verde? Humm... Não é uma estrela, imbecil, é uma cruz! Os cavaleiros da Ordem de Alcântara! Bem disse que era o Solis! Para onde vai essa gente, entrando assim pelo Reino adentro?

– Pela direcção que levava a poeirada que levantavam, parece-me que vão para norte direitinhos. O melhor será irmos atrás deles, a ver o que vão fazer! – Disse Pêro de Azeitão levantando-se e dando um estridente assobio, com a ajuda dos dedos.

Apareceram então, vindos detrás do mato, dois soldados com cavalos pela rédea. Montaram todos e partiram a galope, seguindo ao longe a núvem de poeira que levantavam os cavaleiros de Francisco de Solis.

Ao fim de uma hora e tal de marcha perceberam que os castelhanos cercavam o pequeno castelo de Ouguela e partiram para Estremoz a avisar o príncipe João.

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(Continua...)

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