Enquanto o conteúdo dos livros de banda desenhada se apropriou dos nossos filmes, a forma dos comics – brilhantemente disfarçados em novelas gráficas – infiltrou-se no que resta da nossa cultura literária.
A ERA DOURADA DO UNIVERSO MARVEL
PARTE 1
Um Ensaio de Art Spiegelman
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NOTA DO EDITOR DO KUENTRO2
O jornal Público publicou no passado domingo uma verdadeira “separata” sobre banda desenhada, nas suas páginas centrais – nada menos que oito páginas – sendo seis delas com um ensaio de Art Spiegelman sobre a Era Dourada do Universo Marvel e duas dedicadas ao novo álbum de Asterix, o qual, segundo se percebe, estará ainda a ser realizado e será editado pelas edições Asa ao mesmo tempo que a edição francesa. A matéria sobre o álbum de Asterix, Mistério na Aldeia à espera da Filha de Vercingetórix, republiquei-a no BDpress #512 com o respectivo recorte do artigo e imagens no passado dia 2. Segue-se agora o BDpress #513 com a matéria escrita por Spiegelman, dividida em duas partes, devido à sua extensão.
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BDpress #513 – Recorte de imprensa sobre BD matéria publicada no jornal Público – Domingo, 1 de Setembro de 2019 reproduzido aqui aqui no Kuentro em duas partes, devido à extensão da matéria.
Jerry Siegel e Joe Shuster (em cima) são os criadores de Super-Homem. O ex-director executivo da Marvel Entertainment, Isaac "lke" Perlmutter, é amigo de longa data de Donald Trump.
Nas incultas trevas do século XX, os livros de banda desenhada eram vistos como lixo sem nível literário, destinado a crianças e adultos pouco desenvolvidos intelectualmente – mal escritos, desenhados à pressa e pessimamente impressos. Martin Goodman, o fundador e editor daquilo que actualmente é conhecido como a Marvel Comics, em certa ocasião disse a Stan Lee que não valia a pena tentar fornecer qualidade literária às histórias, nem se preocupar com o aprofundamento das personagens: "Basta dar-lhes muita acção, e não uses muitas palavras. "É uma verdadeira maravilha [marvel, em inglês] que esta fórmula tenha conduzido a obras que se revelaram tão poderosas e duradouras.
O formato do livro de banda desenhada pode ser atribuído a Maxwell Gaines, um vendedor de publicações que em 1933 tentava descortinar uma forma de manter as impressoras de suplementos de jornais em funcionamento, fazendo reimpressões de colecções de tiras de banda desenhada de jornais populares num formato de meio tablóide. Experimentou colar um autocolante de dez cêntimos num punhado de panfletos grátis e percebeu que eles se vendiam rapidamente numa banca de jornais próxima.
Da esquerda para a direita: William Moulton Marston , HG Peter , Sheldon Mayer e Gaines
Rapidamente, a maior parte das famosas tiras começou a ser reunida em livros de banda desenhada por uma série de editoras – e eram necessários novos conteúdos, a preços reduzidos para novas edições. Este novo material era essencialmente composto por imitações de baixo nível das tiras de banda desenhada que já existiam nos jornais, ou histórias que se inspiravam nos livros "pulp", baratos e populares, de aventuras, policiais, de índios e cowboys ou na selva. Tal como Marshall McLuhan fez notar, cada meio de comunicação recupera o meio de comunicação que o antecede antes de encontrar a sua própria identidade.
Surgem então em cena Jerry Siegel, um escritor adolescente com grandes ambições, e Joe Shuster, outro jovem que tencionava ser artista – ambos judeus estudiosos socialmente inadequados, muitas décadas antes de esta combinação ser minimamente apelativa.
Sonhavam alcançar fama, fortuna e olhares de admiração por parte das raparigas que poderiam conseguir através de uma tira de banda desenhada distribuída em cadeias de jornais, e desenvolveram uma ideia acerca de um extraterrestre sobre-humano proveniente de um planeta moribundo e que iria lutar pela verdade, a justiça e os valores do programa New Deal do Presidente Franklin D. Roosevelt. As ideias dos dois jovens, eles próprios ainda mal saídos da infância, foram rejeitadas pelos distribuidores das bandas desenhadas nos jornais como sendo ingénuas, infantis e tecnicamente fracas, mas, por fim, Gaines adquiriu as 13 páginas das suas amostras do Super-Homem para a Action Comics, a dez dólares por página uma verba que englobava todos os direitos relativos à personagem. A criação de Siegel e Shuster tornou-se o modelo para um novo género que viria a definir o seu meio de comunicação, e as suas vidas tornaram-se o trágico paradigma para os criadores, espoliados dos grandes proventos que as suas personagens permitiram às editoras.
É geralmente consensual que o Super-Homem iniciou a era dourada da banda desenhada em junho de 1938, com a sua estreia na edição número 1 da Action Comics, publicada por aquela que hoje é conhecida como DC Comics. Siegel e Shuster tinham criado um novo arquétipo – ou talvez, mais exactamente, um novo estereótipo –, e em 1940, assim que o novo género demonstrou que conseguia levar milhões de miúdos a gastar milhões de moedas por mês, vagas de imitadores catapultaram hordas de heróis em quatro cores para os céus, todos em busca de ouro nesta época dourada.
A ingenuidade juvenil do Super-Homem era, segundo parecia, uma qualidade escolhida, e não uma anomalia – convidava os jovens para um novo tipo de história, especialmente dedicada aos mais novos, cujas fantasias eram ainda mais desprovidas de lógica do que os livros "pulp", apresentando imagens esquemáticas em cores primárias e secundárias que conseguiam transformar cada página numa cortina de teatro pronta a ser levantada e revelar novas imagens apelativas e... muita acção.
Goodman, que fora inovador no lançamento de alguns dos mais provocantes "pulps", foi um dos primeiros a cavalgar a onda dos super-heróis, conseguindo imediatamente um enorme impacto com o primeiro número da Marvel Comics, em Outubro de 1939.
(À primeira edição de 80 mil livros seguiu-se uma segunda edição de mais 800 mil exemplares.)
Os conteúdos eram fornecidos pela Funnies, lnc., uma empresa de livros de banda desenhada que podia produzir obras completas, desde a ideia inicial até à arte final, para editoras em início de actividade que queriam ter poucas despesas. Estas "lojas" tinham algo em comum com as oficinas de roupas e alfaiates, onde muitos dos membros das famílias dos artistas trabalhavam. Muitas vezes feitas como um trabalho colectivo e em contra-relógio com muitas mãos (argumentistas, desenhadores, coloristas e letristas) a abordar as páginas originais quase simultaneamente, isto era mais uma pequena indústria do que uma forma de arte.
Recrutaram jovens sem experiência, velhos profissionais já muito desgastados e até mesmo – quando se iniciou a Segunda Guerra Mundial e se alistaram muitos dos homens novos que respondiam à crescente procura de livros banda desenhada – mulheres, pessoas de cor e outros forasteiros. (Já agora, estes intrusos tinham de fornecer os estereótipos racistas e sexistas que há muito eram uma pedra fundamental de todo este meio.)
Identidades secretas
Aqui chegados, poderá ser importante notar que (e não devido a orgulho étnico, mas sim porque poderá lançar alguma luz sobre a crueza e os temas específicos dos primeiros comics) os pioneiros por trás deste meio em embrião baseado em Nova Iorque eram essencialmente judeus e de outras minorias étnicas. Não eram apenas Siegel e Shuster, mas também toda uma geração de imigrantes recentes e os seus filhos – ou seja, os mais vulneráveis aos danos da Grande Depressão – que estavam especialmente cientes do crescimento do violento anti-semitismo na Alemanha. Criaram um Ubermenschen [super- homem nietzschiano] que iria lutar por uma nação que iria, pelo menos em princípio, acolher "os exaustos, os pobres, as mas as amontoadas que aspiram a respirar livremente ... ".
Refiramos apenas alguns desses judeus seculares que, como Clark Kent, adoptaram identidades secretas: Gaines nascera Max Ginzberg; os pais de Goodman tinham imigrado de Vilnius, na Lituânia; Jack Kirby (de verdadeiro nome Jacob Kurtzberg), a força por detrás da criação do Capitão América, juntamente com Joe Simon, nasceu nos bairros degradados do Lower East Side de Nova Iorque, e Stan Lee, que se tornou o símbolo da Marvel Comics, era primo da esposa de Goodman – numa demonstração de nepotismo, foi contratado com 17 anos para paquete no escritório, sendo o seu nome verdadeiro Stanley Lieber. Apesar de não serem bem recebidos nos altos níveis da edição e da publicidade, conseguiram descobrir e ocupar o seu nicho nos estratos inferiores do ramo.
Os inexperientes artistas plásticos nestas fábricas de livros aos quadradinhos descobriram as possibilidades de uma nova forma de arte sob a pressão de prazos inadiáveis. Aprofundaram os seus talentos copiando-se uns aos outros ou roubando descarada e directamente dos mestres das tiras de aventura publicadas nos jornais: Alex Raymond (Flash Gordon, Agente Secreto X-9), Hal Foster (Tarzan, Príncipe Valente) e Milton Caniff (Terry e os Piratas). Por outro lado, Carl Burgos (nascido Max Finkelstein), que criou a história principal do número 1 da Marvel Comics, o Tocha Humana, afirmou orgulhosamente: "Se quisessem Raymond ou Caniff, podiam ler Raymond ou Caniff. Já os desenhos miseráveis eram todos meus." Desenhador e argumentista, o seu rudimentar talento para desenhar era apoiado por uma intuitiva capacidade para contar histórias de forma visual, e foram aplicados a uma personagem muito inspirada: o Tocha Humana. A personagem – um raio antropomórfico de chamas vermelhas e amarelas – tinha uma intensidade gráfica que se infiltrava nos olhos dos leitores e personificou a energia pura e violenta dos livros de banda desenhada iniciais antes de estes terem sido domesticados.
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