PARTE 2
Um Ensaio de Art Spiegelman
William Blake "Bill" Everett, colega de Burgos na Funnies, Inc., era um caso à parte neste meio. Para começar, não era judeu. Everett provinha de uma família tradicional instalada há 300 anos no estado do Massachusetts e era efectivamente um descendente directo do seu homónimo [o senador e governador do Massachusetts William Everett]. Alcançou o seu estatuto de outsider, que o empurrou para os comics, através de uma personalidade propensa aos vícios – aos 12 anos já era um ávido consumidor de bebidas alcoólicas e fumava três maços de cigarros por dia –, ou se calhar foi a sua sensibilidade de outsider que o levou para a bebida. Foi um dos mais talentosos desenhadores que já trabalharam em livros aos quadradinhos. Desenhava fluentemente, sentia-se à vontade em muitos géneros, e tinha um sentido de planificação da página que permitia que o olhar do leitor encontrasse pequenos tesouros visuais escondidos enquanto vogava sem esforço através do enredo. ·
O seu anti-herói alienado Namor, the Sub Mariner, foi o precursor de uma longa linhagem de personagens problemáticas que iriam povoar o universo Marvel algumas décadas depois. Nos anos 1940, o Sub-Mariner era único – em franco contraste com os tradicionais, pesadões e bem-intencionados vigilantes que residiam na vizinhança, menos complicada, da DC Comics. Nunca totalmente à vontade quer no oceano quer no ar, Namor era orgulhoso, arrogante e mais volátil do que o Tocha Humana, o seu oposto e complementar.
Mas a água e o fogo juntaram-se para obter um caldo primordial para a Marvel Comics.
No final de 1940, mais de um ano antes dos ataques a Pearl Harbor, enquanto os nazis atacavam Londres com a sua guerra-relâmpago, Simon, um empenhado freelancer que colaborava com a Funnies, Inc., foi contratado por Goodman para escrever, desenhar e editar para ele directamente. Simon mostrou-lhe o conceito visual para um novo super-herói que ele e Kirby tinham imaginado – um herói que se vestia com uma bandeira dos Estados Unidos, com bíceps gigantescos e músculos abdominais de aço que invadia o quartel-general dos nazis e derrubava Hitler com um soco nos queixos. Goodman começou a tremer, percebendo o impacto que este livro iria causar e permanecendo ansioso até o primeiro número de Capitão América, datado de Março de 1941, ter chegado às bancas. Goodman ficara aterrorizado com a hipótese de alguém assassinar Hitler antes de o livro ser publicado!
Ilustração de Simon
O início e o fim
As figuras hipercinéticas de Kirby, com músculos hipertrofiados, deixavam a anatomia nas covas. As suas personagens eram belicosas, sem sentido de humor, casmurras e iradas, como surgiam de painéis recortados em serra e planos gerais que ocupavam páginas duplas. A.sua arte lançou o caminho para as acções super-heróicas, não apenas durante os anos da guerra mas também sempre desde então.
Bem sei que Kirby foi um portentoso original enquanto criador de livros de banda desenhada, bem como um verdadeiro herói de guerra, mas confesso que existe uma área que me escapa no que toca ao género de super-heróis que cresceu a partir do modelo que ele criou. Mesmo com apenas 12 anos, os super-heróis eram a minha metadona – eu estava profundamente viciado em revistas satíricas como a Mad, e nas tiras de velhos jornais que encontrava nos arquivos da minha biblioteca municipal. Eu preferia material mais avançado, como o Pato Donald e a Luluzinha. Sabem, eu adoro o formato dos livros de banda desenhada – as páginas cheias de palavras e imagens misturadas a lutar umas com as outras, todas aquelas pequenas caixas que temos de comparar e meter em contraste para extrair a narrativa; e adoro as bizarras idiossincrasias da linguagem dos cartoons em todos ás seus sotaques.
Aqueles que acham que os super-heróis são o início e o fim da banda desenhada colocam a data do fim da idade dourada algures nos anos 1940, no pós-guerra, em que o interesse pelo género esmoreceu.
Os soldados desiludidos, que já não constituíam um público ávido e conquistado, talvez tenham percebido que não foi o Capitão América que venceu a guerra. Se calhar foram os russos! De qualquer forma, os soldados desmobilizados ou cresceram e abandonaram o hábito de ler livros de banda desenhada, ou viraram a sua atenção para outros géneros.
Popularizaram-se os livros sobre crimes, cowboys, romance, terror e temas relacionados com a guerra, muitas vezes com temas mais adultos – e mesmo sombrios e picantes –, destinados a leitores mais velhos.
Eu coloco a data do final da era dourada em 1954. O pânico moral baseado na falsa assunção de que o meio era estritamente para miúdos e que estava a transformá-los em delinquentes juvenis levara a queimas de livros de banda desenhada em fogueiras e a audiências no Senado dos Estados Unidos que acabaram por obrigar muitas editoras a abandonar o negócio e a estropiar as restantes.
Super-heróis limpinhos conseguiram ressuscitar o meio moribundo em 1956 (actualmente considerado o ano do início da era prateada), mas o meio nunca recuperou a ubiquidade que tivera no seu apogeu – através de livros. Através dos filmes, conquistou o mundo!
De regresso à idade dourada, se se quisesse ver um tipo vestido com uma capa a sobrevoar um arranha-céus ou a transformar Nova Iorque em ruínas, os quadradinhos dos livros de banda desenhada eram a melhor maneira de o conseguir. No século XXI, graças ao milagre das imagens geradas por computador, muitos milhões de pessoas em todo o mundo que nunca leram um livro de banda desenhada ou ouviram falar de novelas gráficas dirigem-se aos complexos de salas de cinema para adorar as novas divindades que encarnam o ADN dos comics.
Salvadores míticos
Os jovens judeus criadores dos primeiros super-heróis inventaram salvadores míticos – quase divinos – seculares para lidar com as ameaçadoras alterações económicas que os envolviam na Grande Depressão e deram forma às suas premonições relativas à guerra mundial que se avizinhava. Os livros de banda desenhada permitiram que os seus leitores escapassem para um mundo de fantasia, ao projectarem-se nos heróis invulneráveis.
Auschwitz e Hiroxima fazem muito mais sentido como cataclismos em sombrios livros de banda desenhada do que como acontecimentos no nosso mundo real.
No nosso mundo actual e demasiado real, o pior vilão de Capitão América, o Caveira Vermelha, está vivo nos ecrãs, e um Caveira Laranja assombra a América. O fascismo internacional surgiu de novo em força (quão rapidamente os seres humanos esquecem – meninos e meninas, estudem a fundo estes comics da era dourada!) e as perturbações que se seguiram ao afundamento global da economia em 2008 contribuíram para nos trazer até um ponto em que o próprio planeta parece prestes a derreter.
O Caveira Laranja
De certa forma, o Armagedão parece plausível e estamos todos transformados em crianças indefesas receosas de forças mais poderosas do que conseguimos imaginar, procurando alívio e respostas em super-heróis a voar através de ecrãs na nossa capela dos sonhos.
Enquanto o conteúdo dos livros de banda desenhada se apropriou dos nossos filmes, a forma dos comics – brilhantemente disfarçados como novelas gráficas – infiltrou-se no que resta da nossa cultura literária. Quando a Folio Society, a venerável editora de livros ilustrados desde 1947, decidiu abalançar-se numa luxuosa compilação da era dourada da Marvel, convidou-me, enquanto autor de novelas gráficas e especialista em livros de banda desenhada, a escrever uma introdução para o livro. Talvez tenham pensado, erradamente, que eu poderia dar à iniciativa um mínimo de respeitabilidade.
Entreguei o ensaio no final de junho, sendo ele essencialmente o mesmo que surge neste artigo. Em tom de desculpa, um editor da Folio Society comunicou-me que a Marvel Comics (que obviamente era co-editora do livro) estava agora a tentar manter-se "apolítica", e não permitia que as suas publicações tomassem posições políticas. Pediram-me para alterar ou remover a frase onde refiro o Caveira Vermelha, caso contrário a introdução não seria publicada. Quando penso em mim, nomeadamente em comparação com alguns dos meus companheiros de profissão, não me considero especialmente activista a nível político, mas quando me pediram para retirar uma referência bastante inofensiva a um Caveira Laranja percebi que talvez tivesse sido irresponsável da minha parte brincar com a terrível ameaça existencial em que vivemos hoje, e retirei a minha introdução.
Uma notícia esclarecedora apareceu-me fortuitamente no meufeed esta semana. Fiquei a saber que o bilionário presidente e ex-director executivo da Marvel Entertainment, Isaac "Ike" Perlmutter, é amigo de longa data de Donald Trump, seu influente conselheiro oficioso e membro do clube de elite Mar-a-Lago, em Palm Beach, estado da Florida, que pertence ao Presidente. E Perlmutter e a sua esposa recentemente doaram cada 360.000 dólares (o máximo legalmente permitido) para o Trump Victory joint Fundraising Committee, para a campanha eleitoral do Caveira Laranja de 2020. Também tive de aprender, mais uma vez, que tudo mete política ... tal como o Capitão América a esmurrar Hitler no queixo.
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