O Público, no seu suplemento dos sábados, o Fugas, publicou no dia 19, oito páginas, com uma espécie de editorial de Sandra Silva Costa, sobre os grandes viajantes da banda desenhada. De Corto Maltese a Jonathan, passando por Tintin, Blake e Mortimer, etc... tivemos uma visão suigeneris sobre as viagens na BD e ainda o anúncio de uma nova colecção a públicar com o jornal: Rotas e Percursos da BD, a partir de Junho. Dada a extensão do material recortado, será aqui republicado em três partes, para quem não leu...
Sandra Silva Costa
O Tintin, claro: era jovem, tinha um cabelo engraçado e uma profissão que me parecia espectacular. Corria mundo — o que era ainda mais espectacular — e vivia as mais espectaculares aventuras, incluindo ir à lua. Acompanhei algumas destas façanhas através de álbuns que não eram meus, mas lembro-me muito bem do Tintin em versão cinco minutos que dava na RTP depois do Telejornal. Ouvíamos o sinal sonoro — “Les aventures de Tintin, d’après Hergé” — e morríamos para o mundo durante aqueles minutos, que nos pareciam sempre tãaaaaaaaao curtos.
Algures nos anos 90, O Independente fez uma daquelas colecções em fascículos com algumas aventuras do Tintin. Às vezes eu perdia O Independente, por isto ou por aquilo, mas quando começaram a sair os fascículos não perdi um único. (Chamem-me antiquada, jurássica ou coisas parecidas, mas confesso que já tenho saudades de uma bela colecção por fascículos — é mais ou menos a mesma coisa que estar à espera dos episódios semanais da Anatomia de Grey, que é um prazer que eu não dispenso).
Bom, os fascículos do Tintin: fui dar com eles no escritório lá de casa, já meio amarelecidos, ordenados cronologicamente dentro da capa dura, mas à solta. Pois: eu adorava as colecções de fascículos, mas muito raramente as mandava encadernar.
Já perceberam, portanto, que, não sendo eu uma fanática da BD, tenho um herói preferido. Claro que o Corto Maltese tem muito charme — e não dispensei a Fábula de Veneza numa recente incursão à cidade italiana — mas o Tintin há-de ser sempre o Tintin: foi ele que me levou ao país dos sovietes, ao Tibete, a Sidney e ao Templo do Sol. Tintin e Corto Maltese serão os heróis que mais dizem ao grande público. Mas Carlos Pessoa — ele sim, um aficionado e entendido em BD — andou a vasculhar os seus álbuns e apresenta-nos na edição de hoje sete grandes viajantes dos quadradinhos. São eles Blake e Mortimer, Johnny Hazard, Max Fridman, Cuto, Jonathan, Tintin e Corto Maltese. “A maior parte dos heróis dos quadradinhos são incansáveis caminhantes que atravessam os continentes enfrentando inimigos, desafi os e provações”, escreve Carlos Pessoa.
Esta semana, portanto, viajamos aos quadradinhos. E a partir de Junho, cortesia do PÚBLICO, isto é para levar à letra: a colecção Rotas e Percursos da BD vai-nos deixar descobrir as grandes cidades mundiais na companhia dos heróis das pranchas.
Não pode ser em fascículos? Não?
Pois...
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VIAGENS - DE CORTO A JONATHAN
BANDA DESENHADA - VOLTA AO MUNDO COM SETE GRANDES VIAJANTES
Os heróis da banda desenhada estão entre os grandes viajantes do nosso tempo. Encontram-se em toda a parte, enfrentando desafi os e derrotando inimigos. Alguns, mais contemplativos, mostram que a aventura é uma experiência subjectiva que remete o leitor para o território do sonho ou da magia.
Siga Carlos Pessoa nesta longa viagem com sete heróis da BD
A viagem é o húmus da aventura e a banda desenhada é uma boa ilustração disso. A maior parte dos heróis dos quadradinhos são incansáveis caminhantes que atravessam os continentes enfrentando inimigos, desafios e provações. Outros revelam-nos que a aventura também pode ser uma experiência subjectiva, remetendo o leitor para os territórios aparentemente mais difusos do sonho, da magia ou da utopia.
Quem diz heróis, diz os seus criadores. O italiano Hugo Pratt passou a vida a correr mundo e viveu longos anos na Argentina antes de se fixar na Suíça, passando diversos períodos em Paris mas sem nunca se esquecer da “sua” Veneza adorada. É, por isso, difícil estabelecer onde acabam as deambulações do artista e começam as do seu herói, Corto Maltese, que esteve fisicamente em todos os locais sensíveis do mundo do seu tempo. Todavia, Pratt só nos últimos anos de vida se atreveu a dizer, deixando perplexos muitos dos seus inúmeros admiradores, que a aventura é, antes de mais, uma experiência individual que remete o leitor para domínios pouco ou mesmo nada mapeados (caso de As Helvéticas e Mü).
Já a demanda do suíço Cosey (nome artístico de Bernard Cosandey) parece trilhar caminhos mais “fiáveis” ou, em todo o caso, reconhecíveis. O seu “alter-ego” Jonathan é um falso contemplativo que encontrou nos píncaros dos Himalaias – mas também, ocasionalmente, na Birmânia, Nepal, Índia ou Estados Unidos – um espaço próprio de existência individual, a que não são alheios os desafios políticos e ideológicos do seu tempo. O mesmo poderia dizer-se de Max Fridman, o espião francês criado pelo italiano Vittorio Giardino, que troca regularmente o conforto burguês da sua residência suíça pelos perigosos jogos da conspiração política internacional, seja em Budapeste, Istambul ou na sangrenta guerra civil espanhola.
Não consta que Edgar Pierre Jacobs ou Hergé, os dois famosos autores da banda desenhada franco-belga, tenham sido grandes viajantes. Em contrapartida, é lendária a sua obsessiva preocupação documental – porventura mais constante e consistente ao longo de todas as aventuras de Blake e Mortimer do que nas de Tintin. O resultado, a todos os títulos brilhante, é o que se reconhece nas bandas desenhadas que têm preenchido o imaginário de gerações sucessivas de leitores.
Os dois últimos heróis, cada um à sua maneira representativos de uma cultura de viagem e aventura, são sobretudo homens de acção, entendida esta como motor de uma narrativa concebida para fruição de leitores de todas as idades.
Cuto surge e cresce nos anos 1930 num país, Espanha, arrasado por uma guerra civil, onde o acesso à informação e ao conhecimento era muito difícil. Não surpreende, por isso, que seja mais difusa a caracterização e identificação dos espaços físicos da narração, que cedem o passo ao livre desenvolvimento do enredo, não raras vezes pouco convincente ou até inverosímil.
Johnny Hazard é o herói típico americano, instrumento activo da política externa do seu país num contexto de guerra fria – está onde o “comunismo internacional” deve ser combatido e é este o guião escrupulosamente seguido. Encontramo-lo em todo o lado, mas o que nos é dado a ver dos locais de acção raramente escapa ao estereótipo ou à caricatura. No quadro da BD clássica norteamericana, isso não parecia ser importante; além disso, o ritmo de trabalho imposto aos artistas deixava pouco espaço para preocupações documentais consistentes. Neste caso, as histórias ressentem-se disso, mas sem perder o fulgor presente no impulso criador inicial.
CORTO MALTESE GLOBE TROTTER DO SÉCULO XX
Apesar destas lacunas e dúvidas, Corto Maltese é uma das mais consistentes criações de banda desenhada. Herói mediterrânico, com um incrível sentido de humor e fleumático quanto baste, é acima de tudo um observador profundamente apaixonado pela condição humana em tudo o que ela tem de belo e também de horrível.
Falar de Corto é falar de Pratt, sendo difícil dizer onde acaba a história de um e começa a do outro. A quem lhe perguntou se o herói era ele próprio, Pratt limitou-se a responder que têm em comum o gosto pela aventura – “como Ulisses, é um marinheiro que vai de aventura em aventura” – e que “a sua criação foi uma intuição”. Neste sentido, a biografia de Corto Maltese cruza-se com a do seu criador e, por vezes, ambas quase se confundem, num exercício responsável pela marca imorredoura que a série deixou na banda desenhada mundial.
Corto, o marinheiro nascido em Malta em 10 de Julho de 1887, de mãe cigana de Sevilha e pai marinheiro oriundo da Cornualha, imprime a sua discreta mas inconfundível assinatura em todas as geografias conhecidas do planeta.
A aparição primordial tem algo de simultaneamente profético e redentor, pois surge atado de pés e mãos, numa representação crucifi cada, algures na imensidão do Pacífico – talvez porque nasceu como um mero personagem secundário numa história inteiramente centrada na figura da bela Pandora...
Esteve no conflito russo-nipónico nos primeiros anos do século XX, trilhou a floresta amazónica e foi visto na costa ocidental da América do Sul. Durante a Primeira Guerra Mundial passou pela Europa e pela África Oriental, enfrentou os rigores da Sibéria e procurou os tesouros de Samarcanda. Atravessa meio mundo para procurar velhos amigos na Argentina depois de uma nova incursão pela Veneza dos seus sonhos e mitos e antes de mergulhar, na Suíça, nos mistérios alquímicos. Termina a sua saga conhecida nas Caraíbas em demanda do mítico continente perdido de Mü. Graças a este percurso grandioso, o herói viria a impor-se ao reconhecimento do mundo, tornando-se numa das mais importantes criações da banda desenhada do século XX.
O QUE LER
Toda a obra da série. Infelizmente, não está disponível nenhuma edição completa em língua portuguesa.
1. A Juventude de Corto Maltese
2. A Balada do Mar Salgado
3. Sob o Signo do Capricórnio
4. Corto Maltese na Amazónia
5. As Célticas
6. As Etiópicas
7. Corto Maltese na Sibéria
8. Fábula de Veneza
9. A Casa Dourada de Samarcanda
10. Tango
11. As Helvéticas
12. Mü
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TINTIN - HERÓI NA TERRA E NA LUA
As aventuras de Tintin começam num dia de Janeiro de 1929, quando apanha em Bruxelas o comboio para Moscovo. É, na altura, um jovem e desconhecido repórter ao serviço de um jornal católico belga. A viagem ao País dos Sovietes é uma frontal denúncia da “Rússia soviética” que termina com uma recepção apoteótica no regresso à Bélgica. Assim começava a carreira exemplar do herói fundador da moderna banda desenhada europeia.
Tintin é um jornalista que quase nunca é visto a escrever qualquer notícia ou artigo. De facto, ele nasceu para correr mundo e viver as aventuras às quais deve, passados mais de 80 anos, a sua própria imortalidade. Desde o primeiro instante está a seu lado Milu, um cão inteligente com qualidades que estão muito para além da sua mera condição animal – realista, corajoso e preocupado com o seu conforto, mas também combativo e bastante guloso. E encontra-se rodeado ao longo das aventuras por uma vastíssima lista de personagens, de onde se destaca o truculento Haddock, o distraído Tournesol, a inefável Castafiore e os indescritíveis Dupond e Dupont, entre tantos outros.
Depois de viajar para a União Soviética, o herói de Hergé deslocase ao Congo, à época uma colónia belga, e depois à América. E nunca mais pára ao longo de outras duas dezenas de aventuras através do Médio e Extremo Oriente, Balcãs, América do Sul, Ásia e mesmo... a Lua.
Sabemos, pelas palavras de Hergé a um admirador, como surgiu Tintin: “A ‘ideia’ da personagem e do tipo de aventuras que ele ia viver ocorreu-me, creio, em cinco minutos, no momento de esboçar pela primeira vez a silhueta desse herói: isso quer dizer que ele não tinha habitado os meus verdes anos, nem mesmo em sonhos.” A seguir vem a interpretação pessoal do acto criador: “É possível que eu me tenha imaginado, em criança, na pele de uma espécie de Tintin: nisso, mas apenas nisso, haveria uma cristalização de um sonho, sonho que é um pouco o de todas as crianças e não pertença em exclusivo do futuro Hergé.”
O contexto sócio-histórico em que nasce Tintin é mais fácil de enunciar. O padre Norbert Wallez, director do jornal belga Le Vingtième Siècle, encomenda ao seu jovem colaborador – Hergé tem então 22 anos e manifesta uma admiração pelo eclesiástico que se manteria pela vida fora – uma história que tivesse um adolescente e um cão. A ideia era transmitir valores católicos aos leitores, que se pretendiam educar no culto da virtude e do espírito missionário. O envio do jovem repórter à Rússia soviética, um reino “demoníaco” onde imperava a pobreza, a fome, o terror e a repressão, era uma solução que se adequava às mil maravilhas ao desejo do director padre.
Tintin revela-se inicialmente uma criatura dura, mesmo cruel e implacável. Mas com o passar dos anos e das histórias, conhece uma subtil metamorfose, dando lugar a um herói mais generoso e compassivo, disponível para defender os fracos e oprimidos.
Antes de Tintin, Hergé dera vida às aventuras de Totor, um escuteiro chefe de patrulha de quem o jovem repórter foi imaginado como um “irmão” mais pequeno. O autor veste-o com um fato de golfe apenas porque era uma indumentária que ele próprio gostava de utilizar com frequência. O resto é a expressão natural de um desejo de diferenciação das demais personagens conhecidas. Assim surge o topete, que se tornou numa imagem de marca do herói para sempre.
O QUE LER
1. Tintin no País dos Sovietes
2. Tintin no Congo
3. Tintin na América
4. Os Charutos do Faraó
5. O Lótus Azul
6. A Orelha Quebrada
7. A Ilha Negra
8. O Ceptro de Ottokar
9. O Caranguejo das Tenazes de Ouro
10. A Estrela Misteriosa
11. O Segredo do Licorne
12. O Tesouro de Rackham o Terrível
13. As 7 Bolas de Cristal
14. O Templo do Sol
15. Tintin no País do Ouro Negro
16. Rumo à Lua
17. Explorando a Lua
18. O Caso Tournesol
19. Carvão no Porão
20. Tintin no Tibete
21. As Jóias da Castafiore
22. Voo 714 para Sydney
23. Tintin e os Pícaros
24. Tintin e o Alph-Art
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