Inauguramos hoje uma nova rubrica dominical no Kuentro2: Zé das Papas.
Apesar de já termos neste blogue uma vaga referência gastronómica, com a escassa rubrica "Kuentradas", onde publicamos experiências culinárias da nossa humilde lavra, queremos deixar aqui algo mais vetusto, porque talvez mais coloquial, constituído por textos publicados pelo nosso amigo João Reboredo na Gazeta das Caldas.
São textos que, sem pretensões demasiado eruditas, falam da culinária portuguesa, da sua história, dos seus ingredientes, das suas receitas mais conhecidas (mas nem por isso mais compreendidas), que nos proporcionam algum prazer em conhecer e, talvez, tentar confeccionar.
E para além do mais, a culinária/gastronomia vai sempre bem com a Banda Desenhada, não é?
Tudo isto sob o signo do Zé das Papas, essa peculiar versão do Zé Povinho, engendrado pela mente brilhante de Rafael Augusto Prostes Bordallo Pinheiro, o pai da banda desenhada portuguesa, nem mais...
O "Zé das Papas", de Rafael Bordallo Pinheiro
ZÉ DAS PAPAS
Gazeta das Caldas, 29 de Junho de 2012
À LAIA DE APRESENTAÇÃO
Tive o privilégio de ver a Gazeta aceitar o meu propósito de, aqui e ali, com a regularidade possível – quer para o espaço disponível do jornal , quer para os neurónios do escriba – iniciar colaboração despretenciosa sobre a culinária portuguesa, conceito que prefiro ao de gastronomia.
Julgo ter sido aqui nas Caldas que Rafael Bordallo Pinheiro criou o boneco “Zé das Papas”, em boa hora aproveitado como símbolo do Festival de Gastronomia de Santarém e que me proponho adoptar para as palavras que vou passar a escrever.
J. R.
Tudo começa na cozinha! J. R.
Como divisão própria para a transformação de matérias primas em alimentos, a cozinha remonta ao sec. V a.C. e tem carácter religioso, pois é naquele mesmo local que se presta culto aos deuses domésticos, os lares romanos.
É longa a evolução, mas os momentos fundamentais para a cozinha actual são, já no sec. XIX, os do aparecimento da bateria de cozinha, do forno e do fogão: a cozinha torna-se, para os grandes chefes, num verdadeiro laboratório! (e ainda hoje se mantém, veja-se, entre outros o exemplo do catalão Ferran Adriá e do seu EL Bulli).
As receitas do romano Apicius, a influência da igreja com as suas abadias e mosteiros e a imposição do jejum, a abertura ao Mediterrâneo, a criação das cidades e o desenvolvimento da burguesia, as festas da renascença e a influência italiana (até Leonardo da Vinci nos deixou apontamentos de cozinha), o aparecimento das especiarias, do café e do chá foram sendo, entre outros, pequenos passos que permitiram chegar-se onde se chegou.
Este caminhar civilizacional centrou-se na Europa, região onde, ao longo dos séculos, “tudo” se passou e de que a França é o centro geográfico.
E por cá?
Não se pense, contudo, que a cozinha portuguesa é parente menor!
Escreveu Oleboma (António Maria de Oliveira Belo, um engenheiro químico fundador, nos anos 30 do séc. passado, da Sociedade Portuguesa de Gastronomia) que “a cozinha portuguesa é saborosa, higiénica, substancial e muito característica. As matérias primas empregadas são culináriamente perfeitas. A condimentação é variada mas sem exageros”.
A cozinha portuguesa é, também ela, cozinha de fusão, fusão de todas as influências deixadas pelos que por cá habitaram e das que trouxemos, deste nosso fado de andarilhos do mundo.
João Reboredo
As Papas, de José Malhoa, pintado em 1898
Reconstituição de uma cozinha romana
Acepipes à moda da Roma antiga
Apresentação moderna do célebre prato romano Coda alla Vaccinara (rabo - cauda - de boi à moda dos trabalhadores dos matadouros - os vaccinara), que aproveitava aquelas partes do animal que os romanos "finos" não consumiam...
Ferran Adria
A cozinha do El Bulli
Prato de Adria... tentem adivinhar o que é.
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A CULINÁRIA PORTUGUESA
Gazeta das Caldas, 13 de Julho de 2012
Volto, hoje, ao tema “inaugural”, a culinária portuguesa para, solidamente apoiado em Fialho de Almeida, figura ímpar das nossas letras, que demonstrou grande apetite por temas gastronómicos e os tratou de forma saborosa, lembrar:
“O que é um prato nacional? Uma composição culinária rebelde à escrita dos manuais, característica, inconfundível, incapaz de exprimir em quantidades de ingredientes, fracções de tempo, e acção rápida ou lenta do frio, do calor, da água, do gelo, do uso da peneira, do passador da faca ou da colher.
Transmite-se por tradição: os estrangeiros não sabem confeccioná-lo, mesmo naturalizados, tendo chegado até nós por processos lentos, e contraprovas de biliões de experimentadores, sucessivamente interessados em o fixar na sua forma irrepreensível, resulta ser ele sempre uma coisa eminentemente sápida e sabida, isto o distingue dos pratos “compostos”, quero dizer daquelas mixórdias de comestíveis e temperos, doseados a poder de balança, exclusivamente cientificas, nada intuitivas e meramente inventadas, com que os cozinheiros literários enchem páginas e páginas dos seus tratados de cozinha, O prato nacional é como o romanceiro nacional, um produto do génio colectivo ninguém o inventou e inventaram-no todos; vem-se ao mundo chorando por ele, e quando se deixa a pátria, lá longe, antes do pai e da mãe, é a primeira coisa que lembra.”
Fialho de Almeida in Os Gatos
Lisboa, Livraria Clássica Editora – A. M. Teixeira & Cª. (Filhos), 1934, 4º. Vol. 6ª. ed, pp. 304/306
A culinária portuguesa continua a merecer nota muito positiva, mesmo para os chefes da nova geração. A basca Elena Arzak, recentemente eleita a melhor cozinheira do Mundo, pela publicação britânica ‘Restaurant Magazine’, elogia a gastronomia portuguesa, que considera como “uma das grandes cozinhas na actualidade e no futuro”.
A chefe basca lembrou que Portugal, país que teve muitas colónias, conta hoje com “uma cozinha popular muito rica e muito interessante, sobre a qual é importante evoluir e que vai constituir o futuro”. A cozinheira afirma que “o panorama gastronómico português é muito diversificado” e elogia em particular a qualidade dos vinhos e o bacalhau — peixe que goza de grande popularidade, também entre os bascos.
Mas será com Fialho de Almeida que iremos, em prosa futura, introduzir um tema muito glosado e dos mais versados da culinária portuguesa — a caldeirada, começando pela mais emblemática da época de Fialho, a do António da “Barbuda”, que reinou lá para os lados de Belém, nos então arrabaldes lisboetas.
João Reboredo
joaoreboredo@gmail.com
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