sábado, 27 de outubro de 2018

de Manuele Fior

BDpress #493 – Recorte do artigo publicado no suplemento Ipsilon, do jornal Público
em 19 de Outubro de 2018


A ARQUITECTURA, A MEMÓRIA, O MEDO, O EROTISMO E TUDO O QUE UM AUTOR NODE FAZER COM ISTO

Texto de Lucinda Canelas

Manuele Fior está em cada uma das três personagens principais deste Cinco Mil Quilómetros por Segundo, mas a história delas não é a sua. Para este arquitecto que desenha com um enorme poder de síntese e uma capacidade rara para nos fazer acreditar no que cria, a BD pode ser também uma maneira de exorcizar medos e de lidar com o desejo.

Se há coisa que um autor deve evitar fazer através dos seus livros é psicanálise, defende Manuele Fior, o italiano (de Cesena) a quem se deve Cinco Mil Quilómetros por Segundo.

Mesmo quando é dificil resistir a essa tentação. Dito isto, e porque um autor é sempre em primeiro lugar uma pessoa carregada de histórias, esteja a escrever, a desenhar ou as duas coisas (como aqui), não tem como fugir às suas memórias, ao que viveu ou sonhou viver. É em parte por isso que este álbum, que em 2010 e 2011 ganhou os prémios principais de Angoulême e Lucca, os mais importantes festivais de banda desenhada do mundo, nos pode deixar com a sensação de estar a folhear um livro que foi feito com recurso às notas de um diário, ainda que fragmentário. Um diário escrito numa época particularmente difícil da vida de alguém.

Cinco Mil Quilómetros por Segundo, um dos mais recentes títulos da Biblioteca de Alice, a colecção em que as Edições Devir têm vindo a arrumar as novelas gráficas que publicam, não é uma obra autobiográfica, mas está definitivamente ancorada na experiência do seu autor e num tempo que, “felizmente", diz ter deixado para trás. "Comecei por mim, pela situação que estava a viver naquele momento", explica ao Ipsilon Manuele Fior, arquitecto de formação e responsável pelo texto e pelo desenho deste álbum que expõe um triângulo amoroso que começa na adolescência e termina 20 anos mais tarde, encontrando dois dos seus protagonistas pelo meio em geografias bem diferentes da original.

"[Este livro] foi definitivamente uma tentativa de pôr as coisas em cima da mesa e de olhar para elas com clareza. Foi pelo menos uma maneira de as confrontar e de deixar que se desenvolvessem de forma a criar uma narrativa. Serviu para exorcizar medos e, como sou muito supersticioso, para lançar um feitiço sobre as minhas personagens, e não sobre mim mesmo."

Nicola e Piero são dois amigos que se deixam encantar por Lucia quando ela, ainda adolescente, passa a morar perto deles. A história, que começa e acaba na mesma rua e no mesmo tempo, vai dando conta das mudanças na relação entre esses três amigos, dos encontros e desencontros que ditam as suas vidas. Nicola permanece em Itália; Lucia chega a viver na Noruega, que deixa para trás depois de um desaire amoroso; e Piero instala-se no Egipto como arqueólogo. O primeiro nunca parte, a segunda volta a casa aparentemente contrariada, e o último vai adiando o regresso.

Os cinco mil quilómetros do título são os que separam Piero de Lucia quando ambos conversam ao telefone, ele no Egipto e ela na Noruega. A relação entre ambos falhou. O que é que dela ficou? Por que razão é tarde demais quando voltam a cruzar-se? A que se deve a melancolia que parece atravessar as páginas deste Cinco Mil Quilómetros por Segundo?


"A melancolia é um daqueles ingredientes que se podem encontrar noutros livros meus. Tal como a nostalgia, é algo que faz parte da minha natureza", reconhece o autor. "Não é que goste particularmente destes sentimentos, mas são profundamente meus."

Manuele Fior não tem dificuldades em aceitar que alguns dos seus leitores olhem para esta novela gráfica como uma obra negra, desencantada, mas garante que o que quis foi criar uma narrativa “realista". “Isto não quer dizer que esteja feliz com o que acontece às minhas personagens... Elas lutam, magoam-se, são enganadas, e podemos dizer que desta história ninguém sai vencedor... Mas isto é a realidade. [É importante mostrá-la], sobretudo num mercado (o dos comics) dominado por heróis e pessoas que sabem sempre qual é a coisa certa a fazer." Nicola, Piero e Lucia não sabem.

Nicola só reaparece quase no fim; Piero e Lucia recorrem constantemente à memória, olhando mais para trás do que para a frente, mostrando mais do que uma vez que lhes é dificil lidar com o presente. E, apesar destes regressos ao passado que vão fazendo cortes na história para a poder contar, Cinco Mil Quilómetros por Segundo é, muito mais do que uma obra sobre o que aconteceu, um livro que nos põe a pensar no que podia ter acontecido. Talvez a sua melancolia venha, precisamente, desta constante sensação de perda daquilo que, na realidade, nunca existiu e que Fior é capaz de criar no leitor, evitando desenhar cenas que, à partida, qualquer um consideraria fulcrais à narrativa.

A arguitectura é 50% da história


"As minhas histórias são, de certa maneira, a interpretação de uma imagem inicial, de uma visão que, devo dizer, é sempre muito clara quando começo. Em Cinco Mil Quilómetros... essa imagem foi a fachada amarela de um edificio." A sua formação de base faz com que o autor italiano confie muito no poder da arquitectura. É ela que, regra geral, é responsável por cerca de 50% do que acontece nos seus álbuns. "Quando temos um bom cenário arquitectónico, temos uma boa parte da história. Não precisa de ser uma coisa construída, pode ser apenas uma paisagem, desde que a conheçamos bem. Quando as personagens são postas num cenário assim, elas já sabem praticamente o que fazer", diz Fior conhece bem os cenários do seu Cinco Mil Quilómetros por Segundo – "vivi quase todas as experiências de trabalho das três personagens" – e, desta vez, fez questão de não recorrer ao material documental de que dispõe (milhares de fotografias que tirou no Egipto, por exemplo) para criar os ambientes. "Quando estamos só a usar a nossa memória para desenhar, trabalhamos de maneira diferente. As coisas parecem distorcidas mas estranhamente conhecíveis, mesmo que faltem muitos detalhes", explica este autor que tem feito ilustração para várias publicações (os jornais La Repubblica e Le Monde, e as revistas Vanily Fair, The New Yorker e Rolling Stone) e tem já várias novelas gráficas no curriculo, com destaque para La Signorina Else (2009) e L'Intervista (2013).

Quando trabalha nos seus álbuns, este italiano está permanentemente atento a cada quadradinho que desenha, mas também ao aspecto geral da prancha. Nenhum tem primazia sobre o outro. Para que funcione, cada pormenor é essencial, explica, mas também o "ritmo" da página.

Cinco Mil Quilómetros por Segundo está organizado cronologicamente, embora Fior tenha decidido fazer o epilogo em versão flashback. É aí que Lucia e Piero voltam a ser jovens, depois de termos assistido ao seu reencontro desencantado numa noite de chuva, passados 20 anos.

O sexo une estes dois momentos distantes no tempo: no primeiro, ele acontece fora das páginas, e o leitor é convocado a imaginá-lo como um instante de descoberta e, de certa forma, de confiança no que há-de vir; no segundo, acontece na casa de banho de um bar e não podia ser mais desiludido, desalentado. "Eu agarro-me a uma maneira muito freudiana de pensar, a que diz que uma obra de arte é muitas vezes a sublimação de um impulso erótico. E isto parece-me tão evidente que nem sequer tenho de me perguntar 'porquê'. Eu sei que, se seguir o erotismo ou o medo, nada do que daí resultar pode ser inútil ou extravagante."






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