STAN LEE
O HOMEM QUE TINHA O PODER
DE APARECER EM TODO O LADO
BDpress #521 Recorte do artigo publicado no jornal Público de 07/12/2019
Stan Lee, argumentista, editor e, mais tarde, presidente da Marvel, fez de uma pequena editora um portento na indústria do entretenimento. Com muito talento, seu e dos que o rodeavam, mas também com doses avantajadas de excentricidade e extroversão, que o elevaram ao estatuto de figura pop. A sua história é contada no livro The Stan Lee Story, lançado na altura da sua morte, há um ano, e reeditado em 2019.
Por João Mestre
A figura jovial, confiante, apresenta-se de pose heróica, peito estendido, perante dois professores que lamentam a falta de interesse dos alunos. "Sou eu, o Stan Lee da Marvel Comics, mais conhecido como Speaker Man!" Vinheta seguinte, a promessa: "Sozinho consigo derrotar a ameaça de letargia e tédio." O cartaz, desenhado em tiras de BD, anunciava, algures no início dos anos 1970, a vinda do argumentista, editor e presidente da casa dos super-heróis à Marshall University, na Virgínia Ocidental, na qualidade de orador.
As palestras em universidades, a par das entrevistas, tinham-se tomado um veículo recorrente de angariação de público, numa altura em que a venda de comics estagnara e já não havia muito por onde crescer dentro do formato tradicional de negócio. A ideia partiu do homem que nunca torcia o nariz ao palco. Fosse diante de audiências de universitários, dos microfones da imprensa ou das câmaras de televisão, Stan Lee nunca se mostrou tímido ou reservado. Era o exacto oposto, na verdade: efusivo, carismático, dono de uma personalidade contagiante e de um aguçado espírito de sobrevivência, o tipo de pessoa a quem os americanos chamam "hustler''. Um fura-vidas. Daí a tomar-se uma figura pop, reconhecido tanto por fãs de banda desenhada como pelos leigos na matéria, foi apenas uma questão de tempo.
O estatuto de figura popular que Stan Lee adquiriu ao longo da vida - uma curva sempre ascendente até ao fim dos seus dias, impulsionada pelas repetidas aparições em filmes e programas televisivos - é um dos motores da história que o seu colega e sucessor Roy Thomas conta em The Stan Lee Story. Um volumoso volume de 624 páginas que a Taschen publicou em série limitada, pouco antes da morte do "Senhor Marvel", a 12 de Novembro de 2018 – e que, apesar do preço alto de 1250 euros, rapidamente esgotou. Entretanto, o livro foi relançado a uma fracção desse valor (150 euros), em Abril deste ano. Coincidência ou não, nesse mesmo mês chegava às salas de cinema o filme Vingadores: Endgame – e o derradeiro cameo de Lee, este em versão digitalmente rejuvenescida, gritando "Make Love, not war, man!" da janela do seu carro, ao passar diante de uma base militar.
Sobre o seu estilo despachado e expansivo, Roy Thomas comentou, numa entrevista recente ao New York Post, que era "cinquenta por cento invenção". Nem tudo seria fingido, nem tudo seria totalmente natural: "Ele queria projectar uma imagem, tinha queda natural para isso e foi trabalhando nesse sentido."
Palavras de alguém que trabalhou lado a lado com Lee por longos anos - e que voltou a tê-lo a espreitar por cima do ombro em The Stan Lee Story, escrito sob supervisão do biografado, ainda que, sublinha Thomas no epílogo, este pedisse apenas uma correcção após a leitura do manuscrito: "Ele queria que comic book [revista de banda desenhada] fosse escrito como uma palavra apenas, e não duas."
O autor assentiu.
Revistazecas de banda desenhada
Stanley Lieber nasceu em 1922, filho de emigrantes judeus da Roménia, na cidade que era a porta do sonho americano para quem fugia da Europa: Nova Iorque. A mesma cidade que, anos mais tarde, viria a ser também casa de super-heróis. A vida não era fácil para a família Lieber, e ainda mais complicada ficou na ressaca do crash bolsista de 1929. Tiveram de se mudar das imediações do Central Park para um apartamento mais pequeno, em Washington Heights, do qual, "ao olhar pela janela, só se via a parede de tijolo do prédio em frente".
Stanley sonhava, segundo escreveu a dada altura, "ser um dia suficientemente rico para ter um apartamento com vista para a rua". São vários os retratos de um jovem Stanley que ilustram as páginas referentes à sua infância.
A família podia não ter posses para comprar uma câmara, mas a mãe lá arranjava maneira de pedir aos fotógrafos do bairro que lhe fotografassem o garoto. "Acho que ela queria que eu fosse actor", lê-se numa das legendas.
A verdade é que também ele quis ser actor.
De início, por causa de uma rapariga, mas acabou por se interessar pelo assunto. No entanto, não dava para ganhar a vida e ele precisava de fazer dinheiro, como explica no livro: "Não devia ter desistido, porque aquilo era fantástico, mas eu estava demasiado nas lonas." Uma amostra em ponto pequeno do que aí vinha: showmanship e pragmatismo.
A tal equação de 50/50 de Roy Thomas, uma vez mais. "Além disso", remata, "já não andava com a tal moça".
Também quis ser escritor. De literatura, não de banda desenhada. Daí nasceu a necessidade do pseudónimo Stan Lee, que viria a tornar-se o seu nome legal. "Eu sentia que um dia iria escrever o grande romance americano e não queria usar o meu nome real nestas revistazecas de banda desenhada", confessou a Thomas.
Mas Stan era ainda Stanley quando o futuro se começou a moldar na sua cabeça. Estudava no liceu De Witt Clinton, no Bronx, e calhou passar pelas aulas de Leon Ginsberg, o professor com quem descobriu o humor como forma de cativar uma audiência. Marcou-o também, pela eloquência, um estudante mais velho que vendia assinaturas do New York Times e fez uma apresentação para a sua turma. O paleio era o seu elemento. Se houvesse realmente uma BD do Speakerman, esta seria a génese do herói.
Falhas, traumas e dilemas
No De Witt Clinton – curiosamente, o mesmo liceu que frequentaram Bob Kane e Will Eisner, dois outros nomes gigantes da nona arte –, Stanley pertenceu a todos os clubes que havia: xadrez, direito, francês e, como não podia deixar de ser, o de debate. Fez também parte do jornal da escola, onde deixou a sua marca: no tecto da sala da redacção, escreveu em tinta vermelha "Stanley Lieber isgod". A timidez nunca fez o seu estilo.
Foi num destes textos que introduziu aquilo que viria a ser um dos traços distintivos do seu trabalho na Marvel. No número 7 da revista do Capitão América, o protagonista "fala" sobre os seus colegas Father Time, Hurricane e Headline Hunter. É o inicio da criação de um universo ficcional interligado, onde toda a gente se cruza e se conhece, e no qual Lee e os restantes criadores são como testemunhas das histórias que relatam.
Stanley tinha 17 anos quando aterrou na Marvel, então chamada Timely Comics, em 1940.
Antes escrevera obituários numa agência noticiosa, foi mandarete numa fábrica e estafeta numa loja de sanduíches. Na Timely, começou como assistente do editor Joe Simon, responsável por ir buscar almoços para a equipa, atestar os frascos de tinta dos desenhadores ou apagar os traços de lápis depois de as pranchas terem sido coloridas. Ao cabo de urna semana, pediu para ser promovido. Não teve sucesso, mas a sorte sorriu-lhe um par de anos mais tarde, quando Simon se vai embora e Stan, aos 19, se vê no posto de editor.
De volta a 1940, e mesmo sem a promoção imediata, não havia de tardar o seu primeiro trabalho de escrita – e o momento de sentir a necessidade de um pseudónimo. Foi na edição de Maio de 1941 de Captain America Comics que Stan se estreou, com uma história batida a duas páginas de texto corrido, uma formalidade exigida pelos correios norte americanos para a expedição postal de revistas. E para a qual os argumentistas seniores se estavam a borrifar. Stan agarrou a oportunidade com unhas e dentes.
Foi num destes textos que introduziu aquilo que viria a ser um dos traços distintivos do seu trabalho na Marvel. No número 7 da revista do Capitão América, o protagonista "fala" sobre os seus colegas Father Time, Hurricane e Headline Hunter. É o inicio da criação de um universo ficcional interligado, onde toda a gente se cruza e se conhece, e no qual Lee e os restantes criadores são como testemunhas das histórias que relatam.
Por um lado, abre-se o caminho para a exploração das vidas pessoais das personagens.
Nas mãos de Stan Lee e do naipe de artistas em seu redor (nomeadamente, os ilustradores Jack Kirby e Steve Ditko), adquirem uma tridimensionalidade que faltava nos heróis de outras editoras: apesar dos superpoderes, eles não deixam de ser pessoas com falhas, traumas e dilemas. Por outro lado, abre-se urna porta para a interacção e a cumplicidade com o público - que mais tarde vem a resultar numa secção fixa com cartas de fãs, historietas para dar a conhecer a equipa, notícias do meio e mexericos. Tudo escrito com o espírito hiperbólico e espirituoso de Stan Lee, que lhe acrescentou ainda urna coluna de opinião onde, entre a dissecação das histórias publicadas ou a introdução de novas personagens, abordava temas quentes como racismo, xenofobia, machismo ou tolerância religiosa.
"Uma história sem mensagem, por subliminar que seja, é como um homem sem alma", escreveu numa dessas crónicas.
Ouro e prata
Deste modo se foram escavando dois dos alicerces mais sólidos do sucesso que a editora viria a atingir nas três décadas seguintes, naquelas que ficaram conhecidas como a era de ouro (1938-1956) e a era de prata (1956-1970) da BD americana: a complexidade humana das personagens e o espírito de comunidade com os leitores. Seria essa combinação, misturada com o empreendedorismo de Stan Lee, que viria a destacar a Marvel da concorrência e a alimentar a sua meteórica ascensão, de criadora de urna forma de arte relativamente marginal a portento da indústria do entretenimento, hoje detentora de um volume de facturação invejável até para os parâmetros de Hollywood: só em receitas de bilheteira, os 22 filmes que compõem a série Marvel Cinematic Universe (iniciada em 2008) totalizam mais de 20 mil milhões de dólares. Isto sem contabilizar os dez filmes que vieram antes, as séries de Netflix ou os filmes de animação. Tudo junto, perto de 60 títulos e, em todos eles, uma cara de Stan Lee a espreitar algures ao fundo: estreou-se como membro do júri no telefilme O Julgamento do Incrível Hulk (1989) e depois disso foi vendedor de cachorros quentes (em X-Men, 2000), carteiro (Quarteto Fantástico, 2005), mestre-de-cerimónias de um clube de strip (Deadpool, 2016). Em Big Hera 6 (2014) é o misterioso pai de urna das personagens, em No Universo Aranha (2018) tem uma loja de fatos de Carnaval (e diz-se amigo do Homem-Aranha) e até em Teen Titans (2018), um filme da concorrente DC, ele faz o que pode para aparecer diante da câmara. Fez ainda biscates em séries como Big Bang Theory, Heroes, Os Marretinhas e foi reincidente em Os Simpsons. E apresentou pelo menos dois programas televisivos: um concurso de super-heróis em formato reality show (Who Want to Be a Superhero?) e a série documental Os Super-Humanos de Stan Lee, sobre pessoas reais com capacidades extraordinárias.
O seu perfil no site IMDB é longo e fastidioso de reproduzir até à exaustão.
Os cameos, contudo, não começaram no ecrã. Bem antes disso, já na era de prata da BD, Lee e a sua pandilha se inseriam ocasionalmente nas histórias. Em 1969, apresenta-se como Srnilin' Stan, ao fazer a introdução de uma história da revista Chamber of Darkness. No número 79 de Daredevil, surge metido na sua vida, na companhia de Joan Lee, sua mulher, quando se cruza com o "homem sem medo". E em 1965, numa história especial do Quarteto Fantástico, ele e Jack Kirby tentam furar o casamento de Mr. Fantastic e Invisible Girl (uma vez mais, pessoas com superpoderes e vidas normais), acabando expulsos. Quadradinho a quadradinho, Stan Lee tornava-se uma companhia habitual, um amigalhaço com quem os fãs sentiam uma relação de diálogo.
Stanley Lieber pode não ter chegado a escrever o "grande romance americano". Mas, na sua longa carreira ao serviço da banda desenhada, criou, co-criou e ajudou a trazer à ribalta dezenas de personagens que marcaram e continuam a marcar a cultura popular. Entre elas, Stan Lee, o homem que tinha o poder de aparecer em todo o lado.
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