sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

BDpress #453: QUEM TEM MEDO DE "CHARLIE"?

QUEM TEM MEDO DE "CHARLIE"?

Caríssimos amigos, agora que está a decorrer o Festival de Angoulême – e como não podia deixar de ser – sob o signo “Je Suis Charlie” e que vai atribuir um Prémio para a Liberdade de Imprensa, não podemos deixar de falar de “Charlie Hebdo”, continuando a republicar em “BDpress – recortes de imprensa” aquilo que de relevante se vem escrevendo nos nossos jornais sobre o tema. Hoje é um excelente texto de Pedro Mexia, na nova revista E do Expresso, exactamente sobre o significado da Liberdade de Imprensa, amanhã será um texto de José Marmeleiro, publicado no jornal Público sobre toda esta questão: “Charlie” e a liberdade total de dizermos – e publicarmos – o que pensamos. Tenham paciência, mas o crime contra o “Charlie Hebdo” foi gravíssimo (mais que não seja foram 12 pessoas mortas) e temos que continuar a falar sobre tudo isto. Inclusivamente publicaremos, um dia destes um texto sobre os problemas que estão por detrás destas movimentações criminosas jihadistas, que têm a ver mais com um défice da civilização islâmica do que da religião...

Revista E do Expresso, 24 Janeiro 2015-01-30
Pedro Mexia

UMA VERDADEIRA LIBERDADE DE IMPRENSA, OU LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM GERAL, É UMA LIBERDADE SEM "MAS"

Quando surgiu o "Je suis Charlie", imediatamente após a matança dos jornalistas em Paris, era fácil entender que esse sílogan significava "eu defendo a liberdade de expressão". Milhões de pessoas de todas as ideologias fizeram sua essa frase, tanto nas manifestações como online. E não havia milhões de pessoas que lessem ou conhecessem o "Charlie Hebdo". O "Charlie" é um jornal satírico de esquerda libertária e soixante-huitard, violentamente hostil ao bom senso e ao bom gosto, às autoridades e à deferência, às instituições e às religiões. As manchetes e os cartoons do "Charlie" pertencem a uma tradição iconoclasta ou desbragada, que em França vem da poesia dos goliardos, de Rabelais, da literatura de cordel, do caricaturista Daumier, das afrontas surrealistas e situacionistas ou das canções de Brassens e Gainsbourg. Herdeiro do "Hara-Kiri", o jornal "bete et méchant" proibido por Pompidou, o "Charlie" ofende todos os quadrantes, embora tenha especial gosto num anticlericalismo ecuménico, que também é uma tradição gaulesa.

Quase toda a gente percebeu que "ser Charlie" é invocar o direito a escrever, desenhar e publicar aquilo que se queira, com as excepções de difamação ou de injúria previstas na lei penal. Não significa, de todo, concordar com a linha editorial do "Charlie". Mas houve quem se fingisse desentendido, quem fizesse fine bouche, quem censurasse a "amálgama", a "hipocrisia" ou o "sentimentalismo". E houve quem garantisse que a liberdade de expressão tem limites, um dos quais é a ofensa às religiões.

Há quatro décadas, em 1976, um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem desfez esta última mistificação: "(...) a liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou ideias acolhidas com fervor ou consideradas inofensivas, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma qualquer fracção da população. Assim exige o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não há sociedade democrática". É uma formulação de uma clareza meridiana e de uma intransigência total, que alegraria Benjamin Constant, liberal oitocentista que sustentou que sem uma verdadeira liberdade de imprensa as outras liberdades ficam severamente diminuídas.

Uma verdadeira liberdade de imprensa, ou liberdade de expressão em geral, é uma liberdade sem "mas", uma liberdade que inclui, e que inclui forçosamente, a insensatez e o mau-gosto, a invectiva e a blasfémia, o asco e o gozo. Uma liberdade onde os ofendidos podem contestar, protestar, ou recorrer aos tribunais. Mas uma liberdade a que se responde em liberdade. Victor Navasky, director emérito da revista progressista "The Nation", e autor de "The Art of Controversy: Politicai Cartoons and Their Enduring Power" (2013), explicou há dias que um cartoon é de certo modo "irrespondível", e que isso assusta os intolerantes. E "The Economist" sublinhou em editorial que "mesmo quando uma imagem ou opinião é imprudente ou de mau-gosto, não deve ser proibida, excepto se incite directamente à violência".

A crítica às religiões, ainda que violenta, é uma liberdade à qual as pessoas religiosas (como é o meu caso) têm de se conformar, se for demasiado pedir-lhes que a aceitem. E o mesmo vale para os multiculturalistas, que só respeitam as religiões "dos outros". Ou para quaisquer outras convicções, respeitáveis mas criticáveis. Lembrou "The Economist" que há um mundo de diferença e séculos de pensamento «político liberal entre ficarmos ofendidos e eliminarmos quem ofendeu». Dizer "eu sou Charlie" é defender essa diferença.


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