CHARLIE, UM JORNAL
CONTRA TODOS HÁ 45 ANOS
Nascido em 1970, o Charlie Hebdo responde a ameaças com renovadas provocações. Depois do atentado de 2011 que destruiu a redacção, a primeira página decretava que "o amor é mais forte do que o ódio"
Público, 8 Jan 2015
Alexandre Martins
Em Setembro de 2012, no auge das violentas manifestações no Médio Oriente e Norte de África contra o filme anti-islão A Inocência dos Muçulmanos, o jornal satírico Charlie Hebdo lança uma acha para a fogueira: na primeira página, um rabino empurra um mullah em cadeira de rodas, numa alusão a Amigos Improváveis, sucesso de bilheteira em França sobre a amizade entre um aristocrata tetraplégico e um jovem senegalês de um bairro problemático.
Mas "não brincar com isto" era a única coisa que não valia a pena pedir aos caricaturistas e redactores do Charlie Hebdo. Todos eles sabiam o que estava em jogo. Muitos, como o director Stéphane Charbonnier (Charb), Bernard Velhac (Tignous) ou os mais velhos Jean Cabut (Cabu) e Georges Wolinski, pagaram com a vida o preço de se manterem fiéis à ideia sintetizada um dia pelo humorista norte-americano George Carlin: "O dever de um humorista é descobrir onde se traça a linha, e ultrapassá-la deliberadamente."
Dias antes da edição que pôs na capa um rabino e um mullah, o Governo francês apelou à direcção do Charlie Hebdo que pensasse melhor sobre o assunto, com receio de que a violência das manifestações no Médio Oriente e Norte de África se alastrasse ao coração da Europa.
"No contexto actual", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, "e perante a transmissão deste vídeo absurdo [A Inocência dos Muçulmanos], há emoções fortes em muitos países muçulmanos. É mesmo sensato ou inteligente deitar gasolina na fogueira?"
A resposta do chefe de redacção, Gerard Biard, resumiu anos de confrontação com o poder político, de batalhas judiciais com celebridades, de lutas pelo que ele e os seus colegas no Charlie Hebdo entendiam ser a liberdade de expressão num Estado laico: "Somos um jornal que respeita a lei francesa. Se houver uma lei diferente em Cabul ou em Riad, não vamos sequer dar-nos ao trabalho de a respeitar."
O assunto foi tão sensível que o Governo francês proibiu um protesto marcado para 22 de Setembro desse ano, três dias depois de a revista ter saído para as bancas. Mais uma vez, a resposta do Charlie Hebdo mostrou que o negócio do jornal não era apenas a confrontação: "Porque é que proíbem essas pessoas de se expressarem?", perguntou o director. "Nós temos o direito de nos expressarmos e eles também têm o direito de se expressarem."
A gravidade do ataque de ontem uniu vozes de líderes políticos a milhões de tweets e posts nas redes sociais, sob o lema "Eu Sou Charlie", a frase que ocupa a quase totalidade do site do semanário (para além disso, só um link para uma página com a mesma frase escrita em sete línguas, a primeira das quais árabe). O Charlie Hebdo nunca teve uma relação fácil dentro de portas, numa França dividida entre a tradição da sátira e a reserva da vida privada.
O próprio nascimento do semanário, em 1970, das cinzas de outra dor de cabeça chamada Hara-Kiri, é um testemunho dessa fricção.
Os cartoonistas do Hara-Kiri juntaram as duas coisas e o que saiu foi um título que levou o Governo francês a interditar o semanário: "Bal tragique à Colombey: 1 mort" (Baile trágico em Colombey: 1 morto).
Caricaturas de Maomé
Depois de um interregno entre 1981 e 1992, por dificuldades financeiras, o Charlie Hebdo alcançou fama mundial ao republicar as caricaturas de Maomé feitas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 2006.
Cinco anos mais tarde, em 2011, a redacção da revista é destruída com uma bomba incendiária, depois de ter lançado uma edição com o nome Charla Hebdo (um trocadilho com a palavra "sharia", a lei islâmica), e apresentada como obra do próprio profeta Maomé.
Apesar de os momentos mais controversos - e trágicos - terem sido provocados por sátiras ao extremismo islâmico, o Charlie Hebdo nunca poupou nada nem ninguém. Uma semana depois de ter sido alvo de um atentado, em finais de 2011, a equipa do semanário respondeu com uma capa em que se vê um cartoonista a beijar um muçulmano na boca, debaixo do título "O amor é mais forte do que o ódio".
Charb, o director sem medo, disse então ao jornal Le Monde que não iria suavizar nem o seu discurso nem os seus desenhos: "É preciso continuar até que o islão seja tão banal como o catolicismo." Na mesma altura, Gerard Biard, chefe de redacção, explicou o que está nos genes do Charlie: "Somos contra as religiões quando entram nos domínios público e político. Não é suposto que uma pessoa se identifique através de uma religião, pelo menos num Estado laico."
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Nota: temos vindo a acompanhar a France24 e, ao que parece os assassinos foram já mortos pela polícia!!!
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