ENTREVISTA COM MILO MANARA
POR OCASIÃO DO SEU 75º ANIVERSÁRIO
NA REVISTA CASEMATE
MANARA: A BANDA DESENHADA
ÚNICA PINTURA DO NOSSO TEMPO
NOUS VOGUONS SUR UN BATEAU IVRE
(NÓS VIAJAMOS NUM BARCO BÊBADO)
Casemate nº 132 de Janeiro de 2020
Por ocasião do lançamento de uma monografia impressionante e surpreendente, Milo Manara recebeu a Casemate mais uma vez. Ele fala sobre o seu início, as suas mulheres de papel, Fellini, Pratt, Caravaggio ... Mas também o destino do planeta, cuja superpopulação o aterroriza. E a arte moderna, à qual ele nega qualquer pretensão de representar o mundo de hoje.
Nove anos atrás, durante a exposição As Câmaras do Desejo, em Siena, você recusou-se a saber quais as obras que seriam exibidas – foram escolhidas pelos organizadores. A mesma coisa desta vez?
Milo Manara: Sim. Benoît Cousin, da Glénat Editions, e Claudio Curcio, meu agente, escolheram principalmente coisas quase desconhecidas em França. Muitas ilustrações, não muita banda desenhada. Eu descobri o livro-catálogo já impresso, bastante surpreso ao rever tantos desenhos, cinquenta anos depois. Cada um, como uma “madeleine de Proust”*, traz de volta uma lembrança esquecida. Revisitar a vida dessa maneira foi muito emocionante.
* “Madeleine de Proust” é uma expressão usada para descrever cheiros, gostos, sons ou qualquer sensação a lembrar a infância ou simplesmente a trazer ao presente memórias emocionais de muito tempo atrás.
Na exposição As Câmaras do Desejo, em Sienna, em Outubro de 2011
A Monografia lançada a 11 de Dezembro de 2019
Revê as suas primeiras criações?
Elas lembram-me o meu entusiasmo na época... e a minha falta de experiência. Eu aprendi o ofício praticando-o. Na minha escola artística não ensinavam banda desenhada. Mas eu tinha esperança. Quando comecei na BD, senti como se estivesse a mudar a minha vida.
Como embarcar numa jornada desconhecida com grande entusiasmo...
Juventude é entusiasmo! Na década de 1970, as histórias em BD reinventaram-se com a revista Métal Hurlant. Até então, a BD era quase só reservada a crianças, e de repente ela tornou-se adulta. Tive a oportunidade de começar a trabalhar nesse momento importante, quando havia um forte desejo de mudar as coisas.
A primeira história de Manara...
Sim. Eu leio de bom grado bandas desenhadas, especialmente francesas. E a Casemate mantém-me informado sobre o que está a acontecer neste ambiente. A minha consulta mensal da Casemate é um momento importante.
O que o fascina nessa história em banda desenhada francesa, que você descobriu na oficina do escultor espanhol Miguel Berrocal?
Estou convencido de que as artes plásticas perderam o seu papel social. Hoje, a distância entre sociedade, "vida real" e arte parece enorme para mim. Peça a qualquer pessoa para citar alguns pintores ou artistas modernos. Muito poucas serão capazes de responder.
Enquanto a BD me parece, pelo contrário, ter um papel social muito forte. Quando comecei, eu já tinha a certeza de que a BD permitia que os autores falassem sobre a sociedade, estivessem na sociedade. E para não andarem em círculos nesta torre de marfim, neste gueto em que estão confinadas todas as artes plásticas.
Vários desenhos inéditos prestam homenagem ao pintor Gustav Klimt.
Primeiro, admiro quase todos os pintores. Mas em Klimt, gosto do relacionamento com as mulheres, com o erotismo. Eu tenho a impressão de que a pintura e as belas artes realmente perderam o contacto com a vida real hoje.
Esse contacto era muito importante na época de Klimt, no final do século XIX, início do XX.
A arte figurativa entrou na vida das pessoas. O meu trabalho é mostrar que através da banda desenhada sobrevive essa arte figurativa.
Os mesmos tributos a Klimt ou ao pintor checo Alphonse Mucha, querem um lugar entre o olhar que se leva de grandes pinturas e o que se leva da BD, uma tentativa de aproximá-los, na mesma apreensão da nossa sociedade, da nossa vida.
"O Beijo" de Gustav Klimt (1907) e Homenagem a Klimt, de Manara.
Sociedade apresentada através de certos desenhos, em especial Berlusconi... Fiz muito poucos desenhos satíricos. O último foi do Papa João Paulo II, no dia da sua canonização, em 2014. Daí a convocação de todo um quartel da polícia política... Penso o tempo todo na Charlie Hebdo e no meu grande amigo Georges Wolinski. Eu tenho muito respeito pelos desenhadores satíricos. Quando a Charlie pediu aos cartonistas internacionais que fizessem algo para homenagear os cartonistas mortos, eu fiz um desenho sobre Wolinski. Está neste livro.
Vamos voltar ao seu início. Porque começou a fazer banda desenhada para os “fumetti” – essas revistinhas populares baratas?
Essa era a única abertura para quem não estudou banda desenhada. Uma arte muito diferente da pintura. Os fumetti ensinaram-me o meu ofício, como a muitos outros, e deram-me a oportunidade de ganhar a vida. A cada quinzena, recebia um script que tinha que desenhar.
Também aprendi a contar histórias, mesmo que ainda não fosse esse o meu campo.
A aprendizagem foi difícil?
A parte mais difícil foi assimilar o desenho em preto e branco, apenas com tinta-da-china. Obviamente, a cor estava ausente desses fumetti de baixo preço. Os cinzentos também. Nos primeiros quatro ou cinco anos, aprendi a desenhar uma história em banda desenhada.
A lenda diz que, posteriormente, cada revista lançada devia ter uma história de Manara. Que ela lhe traria sorte. É verdade?
Sim, em meados da década de 1970, outra lenda afirmava que, para se tornar famoso, o nome e o sobrenome de uma personagem tinham que começar com a mesma inicial.
Como Mickey Mouse, Donald Duck na América, Martin Mystere, Dylan Dog na Itália. Eu era MM. Isso também foi considerado uma sorte.
Você fala sobre Mickey Mouse, a influência da Disney...
Com uma mãe professora, a banda desenhada era coisa quase proibida lá em casa.
Então descobri tudo isso através do cinema de animação. Disney encantou-me. E o Tintin, descoberto nos seus desenhos animados na TV, muito antes dos álbuns.
Sim, o meu fascínio pelo desenho em banda desenhada nasceu em frente da TV e não nos álbuns.
Porquê aquele semi-ataque cardíaco quando Fellini, um de seus mestres, com Pratt, lhe telefonou pela primeira vez?
Para comemorar o seu 65º aniversário, em 1985, um jornalista de TV italiano pediu um desenho a vários autores. Fiz uma história de três ou quatro páginas, sem saber que Fellini a veria. Ele não apenas a vê, mas também me telefona. Horror, eu não estava em casa quando Fellini, a minha estrela polar, me telefonou.
Sempre o coloquei ao nível de um Michelangelo, um Rafael. Perdi a oportunidade de falar com um génio! Felizmente, ele lembrou-se de me ligar de novo no dia seguinte e convidou-me para ir à Cinecittà, onde ele rodava E Lá Nave Vá ... Foi muito bom, disse-me que gostava muito de banda desenhada, tendo praticado esse género quando era muito jovem, conhecendo os maiores autores, americanos e franceses. E adorava Moebius.
Desde então, Fellini honrou-me com a sua amizade. Mais tarde, trabalharíamos juntos.
Como é que o cinema dele o influenciou a si e o “alimentou”?
Eu admirava a sua capacidade de misturar realidade e fantasia. Para Fellini, os sonhos eram fundamentais. Num grande caderno, ele escrevia os seus sonhos da noite anterior, todas as manhãs. Eu tentei integrar essa mistura na minha BD. Mas nunca falámos de cinema...
Como comentava ele os seus álbuns?
Não era muito comum falarmos sobre a BD de outros autores, mas apenas sobre os nossos projetos. E também não gosto muito de falar sobre os meus livros. De facto, nós falávamos sobre a vida em geral e da nossa admiração comum por Moebius.
Tem aqui dois desenhos de 1989: Manara visto por Fellini ...
Fellini disse que me viu como um jovem companheiro de escola. Representou-me como um estudante de Leonardo (Da Vinci), a desenhar mulheres nuas. Ou na escola, caricaturando um professor nu. Foi uma maneira de me tirar o “sarro”, digamos.
"Nada do que escrevo ou desenho deve ser levado muito a sério"... diz você.
Fellini repetiu várias vezes que deixou de fazer cinema em banda desenhada, mas que no final deu cinema dramático. E que eu, era exatamente o oposto: eu tento o tempo todo fazer BD séria, mas acabo por levar aos leitores nada de muito sério.
O que é que Pratt, muito presente nesta monografia, trouxe para si com Un été Indien e El Gaucho?
Não tenho orgulho em muitas coisas, mas desses dois álbuns com Hugo, sim, tenho muito. Eu sou o único desenhador para quem ele escreveu os argumentos, até porque eu estava muito mais perto de Pratt do que de Fellini. Com Federico, éramos familiares, mas para mim sempre havia o grande Fellini. Com Pratt, ele era um camarada, quase um irmão. Conheci-o muito cedo, no momento do meu primeiro fumetti.
Eu tinha ido a um festival na cidade de Lucca, expressamente para o conhecer. Vindo da mesma região italiana, Veneto, falando o mesmo dialeto, tornámos-nos amigos imediatamente. Veneziano, ele não tinha carta de condução ou carro. Eu tenho um há muitos anos. Atravessámos a Europa: Lisboa, Paris, Normandia, Bélgica ... Sempre para festivais. Eu era o motorista dele! Às vezes, ele pedia para ver as nossas pranchas antes da publicação, mas em geral só as descobria já em um álbum.
Milo Manara (à esquerda, com um raríssimo bigode), com Hugo Pratt (ao centro), em 1978
A mesma coisa com Fellini? Não, era exatamente o oposto! Eu estava a fazer uma cópia má? Ele ia corrigindo. Comecei novamente uma segunda, terceira, às vezes quarta vez ... Com Fellini, era a escola. Com Pratt, foi uma festa! Hugo nunca escreveu um storyboard, às vezes fazia alguns desenhos pequenos. Fellini fazia um storyboard para cada quadro. Tenho muita saudade desse tempo passado, que foi muito feliz.
Manara e Fellini
Intervista e E La Nave Va - filmes de Fellini - em serigrafias de Manara
Seguidor do desenho narrativo, ele realmente não gostava de desenho estético. Então, depois das minhas primeiras páginas de Verão Índio, ele – gentilmente, como sempre – sugeriu-me limpar os meus desenhos com pequenas pinceladas de Moebius. Pratt ajudou-me muito a encontrar o meu caminho. Estávamos sempre a conversar sobre desenho, as nossas histórias... e também sobre política. E muitos outros temas. Com Fellini também.
Explique-nos como um pontapé permitiu a HP e Giusepp Bergman ver a luz do dia.
A revista (A Suivre) tinha sido lançada e algumas pessoas da Casterman chegaram a Itália à procura de autores. E, antes do mais, de Pratt. Eles queriam também comprar-me uma história acabada. Tarde demais, a história que eu tinha terminado, Wolinski já a selecionara para a Charlie Mensuel. Eles perguntaram-me se tinha mais alguma coisa e, com um pontapé por baixo da mesa, Hugo fez-me entender que devia responder que sim. Então viria a desenhar, mas já em França, a História da França, para a Larousse. O meu trabalho, em “quadradinhos reais”, começaria após esse “pontapé de saída”, como se diz no futebol.
Pranchas de História da França
Lembre-se disto, Moebius também fez um Surfista Prateado. Parece quase obrigatório para um autor de banda desenhada experimentar os comics americanos pelo menos uma vez. Porque a BD, ou os comics, nasceram na América, com os super-heróis. Temos que respeitar isso. A grande diferença é que nós europeus temos que fingir acreditar nesses super-heróis, enquanto os americanos estão convencidos de que eles existem mesmo! Vê-se no desenho deles...
Não acreditando, você divertiu-se?
Os grandes escritores da DC Comics, como Neil Gaiman, ou o escritor da Marvel, Chris Claremont, foram excelentes. A Marvel confiou-me uma história de quatro super-heroínas que, desde o início, perdem os seus poderes. Sem dúvida, para me fazerem sentir à vontade, permitiram-me desenhar como sempre fiz. Apreciei a gentileza deles.
Às vezes arrependo-me. Mas seria pena. Devo muito às minhas heroínas, graças às quais continuo identificável, nas livrarias, no meio de tantas publicações maravilhosas!
Brigitte Bardot aparece várias vezes. Para si, é o símbolo da feminilidade?
Essa bomba atómica, explodindo, mudou a imaginação coletiva das pessoas da minha geração. Eu entendi que o meu destino estava na banda desenhada ao descobrir a Barbarella de Forest. E Brigitte Bardot. As duas primordiais na minha imaginação! Barbarella, era Brigitte Bardot na BD.
Mas é Jane Fonda quem interpreta Barbarella no cinema!
Sim, mas a atriz perfeita para esse papel era Brigitte Bardot. Forest confirmou-me isso anos depois: o seu modelo para Barbarella era Bardot.
Descobriu outras atrizes, Kristen Stewart por exemplo, que desenhou para a revista Lui. Muito trabalho de comissionamento, incluindo o storyboard de um anúncio da Chanel ...
Para Luc Besson. Ele convidou-me para ir Roma numa digressão que ia fazer. Costumo selecionar as propostas – sem nunca as procurar – o que me permite experimentar outras coisas, para sair do meu pequeno dia a dia habitual.
Eu gosto de misturas, contaminação entre assuntos muito diferentes. Trabalho e vida, especialmente após uma certa idade, tornam-se a mesma coisa.
Há dez anos, você estava a trabalhar numa série de desenhos animados dedicada à proteção ambiental.
Comecei a falar sobre poluição no meu primeiro Bergman, nos anos 70. Hoje, todos estão cientes de que há problemas! Enormes. A diferença em termos económicos entre riqueza e pobreza, por exemplo, parece-me incompreensível – uma loucura, sem justificação económica ou política. Sinto como se estivesse a bordo de um barco de bêbados. Ninguém realmente resolve o problema da superlotação. Nós somos quase oito bilhões! A humanidade tornou-se um perigo para o planeta. E continuamos a multiplicar-nos!
Cultura e arte têm um papel a desempenhar nesse drama?
Sim. A política não tem a capacidade de gerir a humanidade, de carregá-la nas suas mãos. Então, eu só confio na cultura, a única hipótese de salvar a humanidade. A cultura vem antes da política, é o que nos ajuda a formar a nossa consciência política. No meu pequeno trabalho, eu tento. Sem pretender mudar o mundo. Já é bastante difícil ajudar alguém a começar a pensar de maneira um pouco diferente.
A arte pode fazer as pessoas perceberem a beleza do que poderíamos perder?
É exatamente isso. Beleza. Platão pensou isso. Mas também Dostoievski. Unicamente a beleza pode salvar o mundo.
Entrevista conduzida por Sohia Déchamps
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Os meus livros de Manara:
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