Ípsilon, Sexta-feira, 24 de Agosto de 2012
CREPÚSCULOS
UM PEQUENO E PRECIOSO LIVRO DEDICADO AOS DESEJOS, ÀS FANTASIAS E ÀS PAIXÕES QUE FICARAM POR CUMPRIR
Por José Marmeleira
SOBREVIDA
Carlos Pinheiro e Nuno Sousa
Edição Imprensa Canalha
Em Sobrevida, de Carlos Pinheiro e Nuno Sousa, são vários os elementos que indiciam um grau de parentesco com o Diário Rasgado de [arco Mendes (objecto de crítica nestas páginas há pouco mais de um mês): uma relação semelhante com o quotidiano ou os espaços urbanos enquanto topografias de experiências, memórias e imagens; uma atenção dirigida ao presente; ou o desenho sustentado numa sobriedade eficaz e no movimento enérgico do traço. Não são afinidades inesperadas, se tivermos em conta que os três autores têm partilhado lugares (a cidade do Porto), contextos expositivos e publicações (é o caso recente do fanzine Buraco, ao lado de Miguel Carneiro, Jucifer ou Bruno Borges).
Para lá da inscrição num universo (e numa comunidade), Carlos Pinheiro e Nuno Sousa constroem desde 2004 um trabalho colaborativo autónomo. Nesse ano, fundaram o colectivo Senhorio e têm publicado na condição de dupla, partilhando o mesmo suporte material sobretudo com trabalhos individuais, num processo aberto a contaminações recíprocas. Sobrevida, feito de duas histórias e concebido a meias, ilustra esta metodologia.
A Noite, de Carlos Pinheiro, é uma banda desenhada muda. Não hã diálogos em balões ou legendas, apenas uma série de frases que pontuam pranchas. A primeira vinheta ocupa a quase totalidade de uma página e mostra-nos um bando de gatos vadios diante de uma casa, prólogo ambíguo que ressoará nas acções das personagens. Depois de um jantar, homens e mulheres inventam e entregam-se a um jogo: acordam de um sono fingido, mascaram-se, saem à rua, partem montras, dançam, acendem fogueiras. A densidade do desenho envolve o carnaval nocturno numa atmosfera onírica. Jogo de facto ou sonho? Se existe uma resposta, ela encontra-se num limbo, que o autor amplia com a narração na primeira pessoa do plural ("Fantasiados saímos à rua", "Podemos fazer o que queremos", "Cansados voltamos para casa") e o epílogo melancólico. Mascarados, fantasmas ou revolucionários, as personagens de Carlos Pinheiro são projecções crepusculares de desejos, fantasias, paixões que ficaram na noite, por cumprir.
O desenho a lápis de cor com que Nuno Sousa compõe O Dia é mais realista. Permite identificar um quotidiano, com as suas ruas, os seus cafés, quartos, janelas, enquanto o carácter de esboço confere uma vibração fluida e indeterminada às cenas e aos lugares - vibração a que poderíamos chamar de memória. Começa por compor uma digressão silenciosa que nos introduz a um dos espaços da narrativa: uma casa e a paisagem à volta. O narrador (que nunca vemos) quebra depois o silêncio e ficamos a saber várias coisas: que não tem emprego, que vai ficando em casa dos pais, que o solitário gato da família "viveu mais oito meses até morrer durante a noite à porta da entrada". Aos poucos, conhecemos também o estado de espírito do pai reformado ("Não tenho vontade", "É aborrecido, isto"). É ele que encerra O Dia com planos nebulosos, quase abstractos, da paisagem urbana. Como o falecido gato, também olha pela janela, à espera. Numa leitura fácil, O Dia parece lidar com o envelhecimento, o absurdo da passagem do tempo ("Não existem pessoas de verdade", desaba o narrador numa das suas deambulações). E com efeito não se furta a esses confrontos. Mas é como uma extensão nem por isso mais luminosa, mas não menos.
Pode ler também o texto que Pedro Moura publicou sobre Sobrevida, no seu blogue LerBD, de onde retirámos as imagens que ilustram este post.
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