quinta-feira, 13 de setembro de 2012

BDpress #372: SOBRE FUNHOME - UMA TRAGICOMÉDIA FAMILIAR DE ALISON BECHDEL – EDITADO PELA CONTRAPONTO – NO EXPRESSO



FUNHOME
UMA TRAGICOMÉDIA FAMILIAR  
ALISON BECHDEL 

  Expresso, 08 de setembro de 2012  

JOGOS DE ÍCARO 

Nesta novela gráfica em que expõe a vida da sua família, Alison Bechdel criou uma brilhante 'odisseia' livresca sobre a perda, o luto e um difícil amor filial 

Texto José Mário Silva 

Publicada em 2006, após sete anos de um minucioso trabalho de escrita e ilustração, a "tragicomédia familiar" de Alison Bechdel integra-se num subgénero das novelas gráficas: o que faz da autobiografia um exercício de investigação sobre o lugar do autor no mundo. Exemplos maiores são o monumental "Blankets", de Craig Thompson (Biblioteca de Alice, 2011), e "Persépolis", a obra-prima de Marjane Satrapi (Contraponto, 2012). Em qualquer destes casos, o relato' da própria vida e das suas incidências, muito focadas na transição problemática para a idade adulta, permitia uma visão panorâmica de realidades sociais concretas. Thompson mergulha-nos na asfixiante atmosfera religiosa da América profunda (Wisconsin), difícil para um adolescente em crise de fé; enquanto Satrapi traça um memorável fresco da sociedade iraniana na década de 80, quando o fundamentalismo islâmico instaurou a sua lei (posta em causa pela rebeldia da jovem Marjane, num registo que oscila entre o humor corrosivo e a denúncia crua dos factos). Ao narrarem os seus processos dê crescimento e libertação, tanto Thompson como Satrapi - descrevem um movimento centrífugo (Craig perde o primeiro amor e sai de casa dos pais; Marjane instala-se na Europa, falha a adaptação, regressa à pátria, desilude-se, e parte de vez para França). Pelo contrário, o movimento descrito por Alison Bechdel em "Fun Home" é centrípeto, virado para dentro, fixando-se na procura de um sentido para a relação complexa entre a autora e o pai.

A cena inicial determina desde logo os termos desta relação. Deitada num tapete da sala, Bruce Bechdel sustém o peso da filha pequena com os pés, uma acrobacia a que se convencionou chamar "jogos de Ícaro". Ao equilíbrio precário e desconfortável, Alison contrapõe a alegria pelo "raro contacto físico" e estabelece a primeira de muitas inversões simbólicas que atravessam o livro: ao replicarem o mito de Dédalo e Ícaro, "não fui eu mas sim o meu pai quem se despenhou do céu". .Esta queda consubstancia-se num acontecimento trágico: a morte de Bruce, atropelado por um camião. Sem ter elementos que o provem: Alison suspeita de suicídio. Havia duas semanas que a mãe lhe pedira o divórcio. E meses antes fora ela a fazer o coming out, anunciando por carta a sua homossexualidade. Um anúncio ofuscado pela revelação de que o pai sempre fora gay, mantendo relações secretas com alunos e outros rapazes. Enquanto ela afirma a sua identidade, mesmo antes de experimentar o sexo com mulheres, Bruce mostra-se incapaz de sair do armário - e Alison vê na tensão entre estas duas atitudes, tão díspares, um gatilho possível para o gesto fatal.

De certa forma, é em volta deste nó, desta dúvida, que o livro se organiza. Tanto a mãe como os irmãos ficam em segundo plano, são figuras apagadas, difusas, dando todo o espaço a Bruce e às suas idiossincrasias. Professor de inglês que herda uma agência funerária, obcecado pela decoração da casa vitoriana, ele cultiva uma "fria distância estética" que o desliga emocionalmente da família ("tratava os móveis como se fossem filhos, e os filhos como se fossem móveis"), passando o tempo a ler, tal como Alison. É aliás nesse .território comum, o da leitura, que a verdadeira comunicação entre os dois se dá, quer pela troca direta de livros, forma de expressar o que nos. diálogos. fica só implícito, quer pelo recurso a elaboradas referências Iiterárias (Camus, Wallace Stevens, Proust, Scott Fitzgerald ou Joyce) que Se entranham na estrutura do relato, iluminando-o.

Bechdel consegue uma coisa rara: o equilíbrio perfeito entre o texto - poderoso, de grande força evocativa, embora por vezes demasiado denso - e um trabalho gráfico que parece linear, mas na verdade é bastante complexo (repare-se na atenção maníaca aos detalhes, nos muitos planos que cabem numa mesma prancha, na integração orgânica de elementos reais: mapas, diários, fotografias), Sendo excelente o trabalho do tradutor, lamenta-se apenas que a aguada verde-cinza do original, com a sua "qualidade sombria e elegíaca" (nas palavras da autora), se tenha perdido pelo caminho.

FUNHOME - UMA TRAGICOMÉDIA FAMILIAR 
Alison Bechdel 
Contraponto, 2012, trad. Duarte Sousa 
Tavares, 239 págs. €16.60




 Páginas da edição brasileira.

Alison Bechdel 

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