NONA ARTE
MEMÓRIAS DA BANDA DESENHADA
(LXXX – LXXXI)
O Louletano, 16, Novembro, 2005
José Ruy, sobejamente conhecido de há longa data pelos apreciadores de Histórias aos Quadradinhos, presenteia-nos, a partir de hoje, com memórias onde relata – melhor dizendo, confidencia – as suas vivências com o grande mestre da ilustração que foi Eduardo Teixeira Coelho. Revela-nos o seu lado humano, só possível pelo amplo convívio e camaradagem que existiu entre ambos nos tempos áureos do velho "Mosquito", inclusive como companheiros de longas horas em ateliers que nessa época partilharam. José Ruy será hoje, talvez, quem melhor o conheceu e com propriedade poderá falar do grande artista recentemente falecido. Desejamos a todos uma boa leitura, e ao autor dos textos o nosso obrigado. J.B.
O ARTISTA, O MESTRE,
O COMPANHEIRO, O AMIGO
Recordações de Tertúlia confidenciadas por José Ruy
Estas crónicas foram escritas há 24 anos, por sugestão do meu amigo Jorge Magalhães, que as publicou no "Mundo de Aventuras". Agora o José Batista, amigo e colega, achou interessante republicá-las nesta página. Balancei se deveria corrigir os tempos, pois o que em 1981 era presente ou distanciado cerca de uma vintena de anos, agora encontra-se a mais de meio século dos acontecimentos relatados.
Optei por não alterarem nada no texto, para que o caro leitor se situe na época, e viva como eu vivi, estas aventuras que mostram como a vida dos artistas não se desenrola de pantufas ao estirador, e como a carga de trabalho intenso necessita de escapes, mas com o discernimento e auto controlo para não cair no excesso. Instalem-se comodamente e iniciem a leitura.
José Ruy
EDUARDO TEIXEIRA COELHO sempre foi um observador atento da vida que o rodeia, investigando rigorosamente o porquê de todas as coisas.
Mas para uma melhor observação é necessário por vezes afastarmo-nos. Há o viver as coisas e há o observá-las. Talvez por isso se tenha criado a lenda da sua ausência de convívio, do seu feitio hermético, da sua teimosa modéstia em não assinar os desenhos.
A verdade é que o E. T. Coelho teve sempre um vivência tão intensa quanto humana. Mas não com toda a gente, claro. Nunca aguentou a mediocridade dos que se aproximam para dizer: –
Tem muito jeito. Diga lá como consegue essas coisas? – ou para pedir: – Faça aí um desenho... Olha que engraçado! Com a canhota...
Ou ainda dos que tentam imiscuir-se para beneficiarem do resultado do seu esforço.
Rcportemo-nos à década de quarenta... Eu era o mais novo da tertúlia. A desenhar desde que me conheço, com frenesim de passar ao papel tudo o que via, fui apresentado ao Coelho pelo amigo Cardoso Lopes, director do «Mosquito». E algo de comum se estabeleceu logo entre nós: a mesma vontade indómita de trabalhar, de conhecer, de conseguir, de melhorar o conseguido.
Aplicávamos então avidamente grande parte do tempo a desenhar e a estudar animais. Ele estudava a natureza; eu aprendia com ele a estudá-la. Vivemos juntos tantas situações dramáticas. Partilhámos acontecimentos de grande alegria e comicidade. Sim, o Eduardo Coelho tem um elevado sentido de humor, como poderão constatar através destas pequenas crónicas.
Na altura em que ele publicava no "Mosquito" a sua primeira banda desenhada «Os Guerreiros do Lago Verde», uma aventura passada entre a natureza selvagem africana, o nosso Jardim Zoológico recebeu exemplares de crocodilos, o que havia alguns anos não acontecia. O Coelho no dia seguinte de manhã lá estava caído a desenhá-los para logo os incluir na história. Os sáurios era pequenos, com pouco mais de metro e meio, e foram provisoriamente instalados no recinto destinado a hipopótamos bebés, pelo que as grades eram espaçadas.»»
Os Guerreiros do Lago Verde foram em Outubro de 1987 publicados na colecção Cadernos de Banda Desenhada, editada por Catherine Labey
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O Louletano, 22, Novembro, 2005
Os crocodilos estavam imóveis, de boca aberta, pois é assim que eles restabelecem o seu equilíbrio térmico.
Um jovem janota que os observava exibindo uns sapatos da moda, com sola muito alta, à «pipi», como se usava chamar na altura, meteu a perna por entre as grades e começou a tocar com a ponta do sapato na boca de um dos répteis. Este não se mexeu.
- Estão mortos! - disse.
Afoito, avançou mais com o sapatorro na boca do bicho. Nessa altura o Coelho avisou:
- Tenha cuidado.
O «pipi» olhou-o de soslaio e para evidenciar a sua valentia insistiu no gesto. Súbito o crocodilo fecha a mandíbula, e qual guilhotina corta a biqueira do sapato, deixando os dedos do pé à vista. O Eduardo Coelho que maldizia para si os gestos do «pipi» que lhe perrurbava os modelos, desatou à gargalhada, e o janota lá foi acabrunhado, com o sapato também a rir-se, de «boca» aberta.
O facto do artista ser ambidestro, motivou-lhe algumas situações pitorescas. A sua tendência natural é desenhar com a mão esquerda e escrever com a direita. Assim ao desenhar letras manuscritas, os rasgos fogem-lhe para o lado esquerdo, ao contrário do habitual, criando um cunho pessoal nos seus títulos e cabeçalhos.
Quando muitas vezes nos encontrávamos em situação de precisarmos terminar um trabalho durante toda a noite, para recebermos o dinheiro no dia seguinte... e podermos pagar o almoço, aproveitávamos o facto do Coelho trabalhar para despacharmos a obra mais depressa:
Começávamos a pintar a partir do meio para os lados, ele com a mão esquerda encarregava-se da parte direita e eu a parte esquerda. Assim conseguíamos trabalhar os dois ao mesmo tempo no mesmo painel sem nos acotovelarmos.
Aos primeiros alvores da manhã que iluminava o nosso atelier na Calçada do Sacramento, fechávamos a luz eléctrica, distendíamos os membros entorpecidos pela posição durante tantas horas sobre o cartaz, descíamos o Chiado até à Tendinha do Rossio que abria, para comer uma sandes de pão ainda quente e um copo.
Era durante estas longas noites de trabalho que nos entretínhamos a arquitectar inocentes partidas a pregar aos de fora da tertúlia. Quase sempre essas brincadeiras resultavam tal como as havíamos idealizado, e isso era o motivo para prolongadas e sãs gragalhadas. O nosso sentido de humor...
Um dia o Coelho tomou conhecimento com a obra de Pienaar, um sul-africano que passou a sua infância na selva estudando o comportamento dos animais no seu meio ambiente. Isso entra fundo na sua alma de artista, e faz surgir a banda desenhada «A Lei da Selva», esse poema de linhas jamais ultrapassado, e que publicou no «Mosquito».
Ayak
Apreciem por vós. Reparem na facilidade como em poucos traços ele nos dá a atitude, a expressão e o sentir de cada animal, como se os tivéssemos à nossa frente. Para se conseguir este rigor de verdade, foram precisos, a maior parte em condições difíceis ou mesmo impossíveis... Toda uma vida. E não chega.
O artista quando estuda do natural, não tem a preocupação de fazer «bonito». Os estudos têm de ser feitos em poucos segundos, esquemáticos, em papel inferior. Quantos destes «croquis» deitou E.T.C, para o lixo...
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