terça-feira, 8 de janeiro de 2013

JOBAT NO LOULETANO — 9ª ARTE — MEMÓRIAS DA BANDA DESENHADA (LXXX e LXXXI) — JOSÉ RUY SOBRE EDUARDO TEIXEIRA COELHO




NONA ARTE 
MEMÓRIAS DA BANDA DESENHADA 
(LXXX – LXXXI)

O Louletano, 16, Novembro, 2005 

José Ruy, sobejamente conhecido de há longa data pelos apreci­adores de Histórias aos Quadradinhos, presenteia-nos, a partir de hoje, com memórias onde relata – melhor dizendo, confidencia – as suas vivências com o grande mestre da ilustração que foi Eduardo Teixeira Coelho. Revela-nos o seu lado humano, só possível pelo amplo convívio e camaradagem que existiu entre ambos nos tempos áureos do velho "Mosquito", inclusive como companheiros de longas horas em ateliers que nessa época partilharam. José Ruy será hoje, talvez, quem melhor o conheceu e com propriedade poderá falar do grande artista recentemente falecido. Desejamos a todos uma boa leitura, e ao autor dos textos o nosso obrigado. J.B.

O ARTISTA, O MESTRE,
O COMPANHEIRO, O AMIGO 

Recordações de Tertúlia confidenciadas por José Ruy

Estas crónicas foram escritas há 24 anos, por sugestão do meu amigo Jorge Magalhães, que as publicou no "Mundo de Aventuras". Agora o José Batista, amigo e colega, achou interessante republicá-las nesta página. Balancei se deveria corrigir os tempos, pois o que em 1981 era presente ou distan­ciado cerca de uma vintena de anos, agora encontra-se a mais de meio século dos acontecimentos relatados.

Optei por não alterarem nada no texto, para que o caro leitor se situe na época, e viva como eu vivi, estas aventuras que mostram como a vida dos artistas não se desenrola de pantu­fas ao estirador, e como a carga de trabalho intenso necessita de escapes, mas com o discernimento e auto controlo para não cair no excesso. Instalem-se comodamente e iniciem a leitura.

José Ruy

EDUARDO TEIXEIRA COELHO sempre foi um observador atento da vida que o rodeia, investigando rigorosamente o porquê de todas as coisas.

Mas para uma melhor observação é necessário por vezes afastarmo-nos. Há o viver as coisas e há o observá-las. Talvez por isso se tenha criado a lenda da sua ausência de convívio, do seu feitio hermético, da sua teimosa modéstia em não assinar os desenhos.

A verdade é que o E. T. Coelho teve sempre um vivência tão intensa quanto humana. Mas não com toda a gente, claro. Nunca aguentou a mediocridade dos que se aproximam para dizer: –

Tem muito jeito. Diga lá como consegue essas coisas? – ou para pedir: – Faça aí um desenho... Olha que engraçado! Com a canhota...

Ou ainda dos que tentam imiscuir-se para beneficiarem do resul­tado do seu esforço.

Rcportemo-nos à década de quarenta... Eu era o mais novo da tertúlia. A desenhar desde que me conheço, com frenesim de passar ao papel tudo o que via, fui apresentado ao Coelho pelo amigo Cardoso Lopes, director do «Mosquito». E algo de comum se estabeleceu logo entre nós: a mesma vontade indómita de trabalhar, de conhecer, de conseguir, de melhorar o conseguido.

Aplicávamos então avidamente grande parte do tempo a desenhar e a estudar animais. Ele estudava a natureza; eu aprendia com ele a estudá-la. Vivemos juntos tantas situações dramáticas. Partilhámos acontecimentos de grande alegria e comicidade. Sim, o Eduar­do Coelho tem um elevado sentido de humor, como poderão constatar através destas pequenas crónicas. 

Na altura em que ele publicava no "Mosquito" a sua primeira banda desenhada «Os Guerreiros do Lago Ver­de», uma aventura passada entre a natureza selvagem africana, o nosso Jardim Zoológico recebeu exemplares de crocodilos, o que havia alguns anos não acontecia. O Coelho no dia seguinte de manhã lá estava caído a dese­nhá-los para logo os incluir na história. Os sáurios era pequenos, com pouco mais de metro e meio, e foram provisoriamente instalados no recinto destinado a hipo­pótamos bebés, pelo que as grades eram espaçadas.»»

Os Guerreiros do Lago Verde foram em Outubro de 1987 publicados na colecção Cadernos de Banda Desenhada, editada por Catherine Labey

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O Louletano, 22, Novembro, 2005

Os crocodilos estavam imóveis, de boca aberta, pois é assim que eles restabelecem o seu equilíbrio térmico.

Um jovem janota que os observava exibindo uns sapatos da moda, com sola muito alta, à «pipi», como se usava chamar na altura, meteu a perna por entre as grades e começou a tocar com a ponta do sapato na boca de um dos répteis. Este não se mexeu.

- Estão mortos! - disse.

Afoito, avançou mais com o sapatorro na boca do bicho. Nessa altura o Coelho avisou:

- Tenha cuidado.

O «pipi» olhou-o de soslaio e para evidenciar a sua valentia insistiu no gesto. Súbito o crocodilo fecha a mandíbula, e qual guilho­tina corta a biqueira do sapato, deixando os dedos do pé à vista. O Eduardo Coelho que maldizia para si os gestos do «pipi» que lhe perrurbava os modelos, desatou à gargalhada, e o janota lá foi acabru­nhado, com o sapato também a rir-se, de «boca» aberta.

O facto do artista ser ambidestro, motivou-lhe algumas situações pitorescas. A sua tendência natural é desenhar com a mão esquerda e escrever com a direita. Assim ao desenhar letras manuscritas, os rasgos fogem-lhe para o lado esquerdo, ao contrário do habitual, criando um cunho pessoal nos seus títulos e cabeçalhos.

Quando muitas vezes nos encontrávamos em situação de precisarmos terminar um trabalho durante toda a noite, para receber­mos o dinheiro no dia seguinte... e podermos pagar o almoço, apro­veitávamos o facto do Coelho trabalhar para despacharmos a obra mais depressa:

Começávamos a pintar a partir do meio para os lados, ele com a mão esquerda encarregava-se da parte direita e eu a parte esquerda. Assim conseguíamos trabalhar os dois ao mesmo tempo no mesmo painel sem nos acotovelarmos.

Aos primeiros alvores da manhã que iluminava o nosso atelier na Calçada do Sacramento, fechávamos a luz eléctrica, distendíamos os membros entorpecidos pela posição durante tantas horas sobre o cartaz, descíamos o Chiado até à Tendinha do Rossio que abria, para comer uma sandes de pão ainda quente e um copo.

Era durante estas longas noites de trabalho que nos entretínhamos a arquitectar inocentes partidas a pregar aos de fora da tertúlia. Quase sempre essas brincadeiras resultavam tal como as havía­mos idealizado, e isso era o motivo para prolongadas e sãs gragalhadas. O nosso sentido de humor...

Um dia o Coelho tomou conhecimento com a obra de Pienaar, um sul-africano que passou a sua infância na selva estudando o comportamento dos animais no seu meio ambiente. Isso entra fundo na sua alma de artista, e faz surgir a banda desenhada «A Lei da Selva», esse poema de linhas jamais ultra­passado, e que publicou no «Mosquito». 



Já radicado em Florença, Eduardo Coelho pensou retomar esse tema tão seu predi­lecto. E eis que surge a série a que deu o nome de Ayak

Ayak

Apreciem por vós. Reparem na facili­dade como em poucos traços ele nos dá a atitude, a expressão e o sentir de cada animal, como se os tivéssemos à nossa fren­te. Para se conseguir este rigor de verdade, foram precisos, a maior parte em condições difíceis ou mesmo impossíveis... Toda uma vida. E não chega.

O artista quando estuda do natural, não tem a preocupação de fazer «bonito». Os estu­dos têm de ser feitos em poucos segundos, esquemáticos, em papel inferior. Quantos destes «croquis» deitou E.T.C, para o lixo...

(Continua...)

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7 e 8

Baseado no conto de Eça de Queiroz 
Desenhos de Eduardo Teixeira Coelho


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