terça-feira, 15 de janeiro de 2013

BDpress #390: 'CHARLIE' E A FÁBRICA DE SÁTIRAS AO ISLÃO – ANA FILIPE SILVEIRA NO D.N. – VER EM KUENTRO2:



PROFETA MAOMÉ 

A mais recente publicação do jornal traz uma biografia em BD do fundador do islamismo. Por causa desta, o 'site' foi pirateado. Em novembro de 2011, a redação em Paris foi incendiada por ter lançado uma capa também com Maomé 

OPUS DEI 

Em Outubro de 2009 o jornal publicou uma reportagem sobre os dinheiros do organismo da Igreja Católica 
Opus Dei 

JUDAÍSMO 

Um especial do mês de novembro de 2011 que não deixou passar em branco o conflito entre Israel e a Palestina 

FIM DO MUNDO 

A profecia maia de que o mundo terminaria a 21 de dezembro de 2012 foi abordada pelo 'Charlie Hebdo'. 
"Já não era sem tempo", refere a publicação 

HOLLANDE 

No mês em que foi eleito Presidente da França, em Maio de 2012, o jornal mostrava François Hollande a triturar a cabeça de Sarkozy 

PAPA BENTO XVI 

"Este é o meu corpo", diz o chefe da Igreja Católica ao ser retratado com um preservativo no lugar da hóstia. A capa é de novembro de 2010 

SARKOZV 

A publicação assinalou três anos, em maio de 2010, de presidência de Nicolas Sarkozy, uma das figuras mais satirizadas nos últimos anos 

MICHAEL JACKSON 

"Finalmente branco". Foi assim, referindo-se às alterações do tom de pele do cantor norte-americano, que o jornal assinalou a sua morte 

Provocação. O jornal francês é perito em polémica. Desde o seu nascimento que a 'Charlie Hebdo' já brindou muçulmanos, judeus e cristãos com a sua sátira. E também não deixou escapar políticos e grandes acontecimentos internacionais. A mais recente edição, com uma biografia do profeta Maomé, voltou a inflamar a opinião pública 

'CHARLIE'
E A FÁBRICA DE SÁTIRAS AO ISLÃO 

Diário de Notícias, Sábado 5 de Janeiro de 2013 

Ana Filipe Silveira 

Coragem ou loucura? É esta a questão colocada sempre que o jornal semanal francês Charlie Hebdo chega às bancas. Isto é como quem diz todas as quartas-feiras. Desde o seu nascimento, há mais de 40 anos, que a publicação conhecida pela sua ironia e agressividade tem sido protagonista no caloroso debate que quer definir a fronteira entre a liberdade de expressão e a provocação ofensiva. É o caso da edição veiculada há três dias, composta por uma biografia em BD do profeta Maomé, que voltou a incendiar a opinião pública e teve consequências... esperadas. 


Apesar de o director e ilustrador Stéphane Charbonnier ter afirmado que este número, com a manchete "A Vida de Maomé", é um trabalho educativo feito a partir de uma investigação de um sociólogo franco-tunisino - "uma biografia autorizada pelo Islão, uma vez que foi editada por muçulmanos" -, o semanário não se livrou de, mais uma vez, ver invadida a sua página online por hackers, que sobrecarregaram o servidor e impediram os internautas de aceder à mesma. Mas este não foi o epílogo mais feroz dos que já envolveram o Charlie Hebdo.

Em Fevereiro de 2006, o jornal reproduziu caricaturas de Maomé publicadas no dinamarquês Jyllands-Posten. Organizações em França, onde vivem cerca de 4,5 milhões de muçulmanos, levaram a publicação a tribunal. O Charlie Hebdo saiu inocente do processo, que teve François Hollande como testemunha de defesa.

Já em Setembro de 2011 a revista publicou Maomé em poses pornográficas, em resposta aos protestos em países muçulmanos contra o filme norte-americano Innocence of Muslims, considerado insultuoso para o profeta. Nessa altura, além do site pirateado, Charbonnier recebeu ameaças de morte e tem desde então protecção policial.

Mas nesse ano as consequências foram mais além. Receando represálias, o Quai d'Orsay, Ministério de Relações Exteriores da França, reforçou o dispositivo de segurança de embaixadas e escolas francesas fora do país. Na Tunísia, as aulas foram mesmo suspensas nos dias seguintes à edição, cuja capa mostrava um judeu ortodoxo a empurrar uma cadeira de rodas na qual está sentado um homem de turbante. 


Dois meses depois a revista voltava à carga. Inspirados pela vitória do partido islamita Ennhada na Tunísía e pela proclamação da lei islâmica na Líbia, a capa da revista surge nas bancas com uma imagem de Maomé e a legenda "Cem chicotadas para quem não morrer de riso". Essa publicação, chamada "Charia Hebdo" [charia é o nome dado à lei islâmica] resultou num incêndio de origem criminosa que arrasou as instalações do jornal em Paris. À época, o director frisou que "não se admite poder -se falar de tudo em França menos do Islão", mas defendeu sempre a sua posição. Aliás, criar discussão é quase a razão de sobrevivência do Charlie Hebdo. Apesar das sátiras ao mundo muçulmano serem as mais comentadas, o jornal já brindou o judaísmo e o cristianismo com as suas brincadeiras, bem como não deixou escapar as principais figuras políticas francesas nem os grandes acontecimentos mundiais. Como a recente profecia do fim do mundo, a 21 de Dezembro, que gerou um "especial apocalipse", ou a morte de Míchael Jackson, que em Julho de 2009 teve direito a capa com o titulo "Finalmente branco". 

Exterior das instalações do Chralie Hebdo, depois da bomba incendiária...


Mesmo sabendo que provocam a ira, e indepentemente do "alvo" que escolhem, o objectivo do Charlie Hebdo é sempre o mesmo, "Se começamos a questionar o direito de caricaturar ou não Maomé, se é perigoso ou não fazê-lo, a questão seguinte será se poderemos representar os muçulmanos no jornal. Depois vamos perguntar se podemos mostrar seres humanos, e por aí em diante. No final, não mostraremos mais nada. Neste caso, a minoria de extremistas que agitam o mundo e a França terão vencido", justificou Stephane Charbonnier. E acrescentou: "Lamento pelas pessoas que se sentem chocadas quando leêm o jornal. Se assim é, que poupem 2,50 euros e não o leiam. É só isso que tenho a dizer", atirou.

Um jornal morreu!
Viva o jornal seguinte! 


NASCIMENTO Uma catástrofe numa discoteca e a morte de De Gaulle foram as causas do aparecimento do jornal mais corrosivo e provocador da imprensa francesa

No dia em que pela primeira vez foi publicado, em 1970, Charlie Hebdo trazia sob o título esta frase: "O jornal que vive da infelicidade dos outros". Os outros era o Hara-Kiri, o semanário satírico que acabava de ser proibido ... O Hara-Kiri classificava-se a si próprio como "Estúpido e Mau", e o Charlie Hebdo prometia ainda ser mais. A substituição de um por outro é um dos episódios mais famosos da cultura underground francesa, mãe e filha do Maio de 1968.

Tudo começou com uma, tragédia, em Novembro de 1970, numa discoteca em Saint Laurent du Pont, vilória dos arredores de Grenoble. Tinham morrido dezenas de jovens num incêndio, com as portas da discoteca fechadas para que ninguém fugisse sem pagar ... Todos os jornais franceses dedicaram as suas primeiras páginas à catástrofe e em quase todos, a manchete: "Baile Trágico em Saint Laurent du Pont: 146 mortos!" Nessa semana, na aldeia onde morava, Colombey-Ies-Deux Églises, morreu Charles De Gaulle, general e libertador, ex-Presidente e pai do regime de então em França. O Hara-Kiri saiu com uma só frase na primeira página: "Baile Trágico em Colombey: 1 morto!" O governo gaullista vingou-se e proibiu o semanário satírico. E foi assim, aproveitando a infelicidade do Hara-Kiri, que o Charlie Hebdo nasceu, fruto da mesma equipa e do mesmo espírito corrosivo.

O humor do Hara-Kiri e do Charlie Hebdo foi sempre assim, provocador, não poupando nem os seus.

Quando o mais cáustico dos seus desenhadores, Reiser, morreu, os colegas levaram uma coroa ao enterro. E esta dizia: "Não se esqueçam, o jornal já está nos quiosques". 

 
  

 ENTREVISTA: JOSÉ BANDEIRA 
Cartoonista e ilustrador, autor da série 'Cravo & Ferradura' do DN 

A provocação permanente feita pelo semanário 'Charlie Hebdo' é para José Bandeira um aviso para questões que estão por resolver. O cartoonista admite haver limites na sátira, mas também diz que, por vezes, é bom ultrapassá-los.


"É preciso arriscar quando há problemas para resolver"

O Charlie Hebdo publicou na quarta-feira mais uma sátira religiosa, isto depois de as suas instalações já terem sido incendiadas e o diretor andar com proteção policiaI. Chama-se a isto coragem ou loucura?

A coragem é um bocadinho loucura. O que se passa com o Charlie Hebdo é que quando se diz que não é permitido representar o profeta Maomé, e alguém o faz e ainda por cima em contexto humorístico, há provocação, mas esta serve também para avisar "eu estou a provocar agora para que amanhã não venham vocês a sofrer as consequências desta mordaça".

Há limite para a sátira?

Os limites existem, mas são auto impostos em cada momento. Os que existem às duas da manhã num canal de televisão por cabo, por exemplo, não são os mesmos que são impostos às duas da tarde num canal generalista. Depois, mesmo existindo limites, isso não quer dizer que é mau ultrapassá-los. De vez em quando há que ir até à zona de ninguém. É preciso arriscar quando há problemas para resolver, para as pessoas olharem para essa zona.

Este semanário francês também faz cartoons políticos, mas são os religiosos que geram mais polémica. A religião exalta sempre maís os ânimos do que a política?

É uma reação epidérmica. O que se passa é que há casos de pessoas que não sabem ler desenhos sobre a religião e que os interpretam literalmente. Em Portugal aconteceu com o cartoon do António [Moreira Antunes] do Papa João Paulo II com um preservativo enfiado no nariz. Alguns católicos viram apenas um preservativo no nariz do Papa. Isto é uma interpretação fraca do que estava ali e a maioria das pessoas  nem se preocupa em ir mais além. No caso do jornal francês, a verdade é que o mundo muçulmano está em polvorosa e não será exactamente por causa de cartoons. Isso é uma desculpa. Tal como aconteceu com o dinamarquês Jyllands-Posten [2006], foi uma desculpa. Podia ter sido com uma peça de teatro, com  uma obra de arte contemporânea. Quanto mais enraizadas as pessoas têm as suas convicções religiosas de uma forma dogmática mais elas reagem a estas coisas.

O José autocensura-se nos seus cartoons?

Não, mas isso é algo que também se aprende. A maior parte dos maus excessos, e digo maus porque também existem os bons, cometem-se pela falta de experiência. O que me acontece é que há pessoas, políticos, para as quais já não tenho paciência e sobre as quais já nem tenho vontade de fazer nada. Mas não me censuro por medo nem penso se eles vão sentir-se com isto ou aquilo.

Já alguma vez foi ameaçado por ter satirizado uma figura?

Sempre a posteriori, nunca diretamente comigo. Sei que em uma ou outra ocasião leitores telefonaram para o DN e para os outros jornais com os quais trabalhei e queixaram-se. Depois o diretor ligava a dizer-me. Mas isto acontece com pessoas pouco inteligentes, que não percebem linguagem metafórica.







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