Salteadores, de Abi Feijó
A ANIMAÇÃO PORTUGUESA
CHEGA A HOLLYWOOD
MAS ANDA DESANIMADA
Cultura, Público, 2 Fevereiro 2013
Cinema de animação
Kali, o Pequeno Vampiro, de Regina Pessoa, está hoje na gala da animação em Los Angeles, e vai depois ao festival de Clermont-Ferrand. Mas os tempos são de crise generalizada nas artes dos desenhos animados em Portugal.
Sérgio C. Andrade
Regina Pessoa (n. Cantanhede, 1969) não vai poder acompanhar hoje [2 de Fevereiro], no Royce Hall de Los Angeles, a exibição do seu Kali, o Pequeno Vampiro, um dos oito nomeados, na categoria de curta-metragem, para a 40.a edição dos Annie Awards, os principais prémios da indústria do cinema de animação de Hollywood. E confessa-se "um bocado triste" pela ausência, motivada pela falta de apoios para a viagem. Não tanto porque acredite que tenha hipóteses de vencer a estatueta-praxinoscópio - "estar nomeada já é muito bom para o meu trabalho", disse a realizadora, que vê na produção dos Estúdios Walt Disney Paperman, de John Kahrs, o previsível vencedor nesta categoria -, mas pela experiência que tal viagem acrescentaria à sua vida.
"Estes prémios são normalmente uma forma de Hollywood valorizar a sua própria indústria", diz Regina Pessoa, que, com o seu último filme - e depois de já ter estado na pré-corrida para os Óscares com o anterior, História Trágica com Final Feliz (2005) -, meteu, assim, uma lança portuguesa na terra da animação.
História Trágica com Final Feliz - capa do livro.
Kali, o Pequeno Vampiro
O mediatismo conquistado pelo filme - estreado no IndieLisboa do ano passado, e já premiado nos importantes festivais de Hiroxima e de Chicago - contrasta com o quadro de crise aguda na animação em Portugal. Uma situação que não é mais do que a extensão, a este domínio, da crise que afectou a produção cinematográfica em geral, e que só nestes últimos dias tem visto abrirem-se perspectivas, com o lançamento dos concursos para os apoios para o corrente ano, e o desbloqueamento dos subsídios ainda relativos a 2011 - porque 2012, como se sabe, foi um "ano zero" para o sector, com a suspensão generalizada dos apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).
O deserto...
"A situação é dramática, e à nossa frente só vemos o deserto", diz José Miguel Ribeiro, realizador, produtor, professor e presidente da Casa da Animação, associação fundada no Porto em 2002 e que no ano passado se viu na contingência de fechar a sede, por razões logísticas, mas principalmente pela perda do subsídio anual do ICA. "Com a suspensão desse apoio, não tínhamos condições para continuar", justifica o realizador de A Suspeita (Cartoon d'Or em 2000), que, no entanto, espera que a associação seja reactivada - para decidir o futuro, os sócios vão ser convocados para uma assembleia geral no corrente mês de Fevereiro.
A Suspeita
Produtor e realizador, Humberto Santana está já a sofrer na pele as consequências da crise. No ano passado, viu-se obrigado a encerrar o estúdio Animanostra que fundara em Lisboa, em 1991 (aí nasceu o boneco Vitinho, que no início da década de 90 dava na RTP as "boas-noites" aos mais novos). Este desfecho significou o despedimento das últimas quatro pessoas das mais de 30 que aí chegaram a trabalhar nos melhores anos da animação portuguesa.
Se há um nome que historicamente simboliza a maturidade e qualidade do cinema de animação de autor em Portugal, é Abi Feijó, autor de Os Salteadores (1993), Fado Lusitano (1995), O Clandestino (2000), filmes realizados sob a chancela do Filmógrafo, que fundou no Porto, em 1987. Por este estúdio-escola passaram vários animadores que viriam prolongar e projectar, depois, uma certa imagem de marca da animação de autor, como o já referido José Miguel Ribeiro, Pedro Serrazina (Estória do Gato e da Lua), ou... Regina Pessoa, que aí realizou o seu primeiro filme, A Noite (1999)
A Noite
A dedicação a tempo inteiro à animação viria a afectar mesmo a vida pessoal de Feijó, que se viu na contingência de vender o seu apartamento no Porto para pagar as dívidas do estúdio. Decidiu entretanto "regressar" à casa da sua família numa aldeia de Lousada, onde divide agora o tempo com a actividade lectiva (Algarve, Porto e Guimarães) e a produção, com a sua nova "empresa familiar" Ciclope Filmes, dos trabalhos da sua companheira Regina Pessoa. E projecta também a criação, na terra, de um Museu da Imagem Animada.
"O que é lamentável é que os responsáveis não percebam que a animação, sobretudo, cria prestígio para Portugal através dos bons resultados conquistados nos últimos anos no estrangeiro", diz Abi Feijó, referindo-se à "meia-dúzia de autores que têm uma obra reconhecida internacionalmente".
Abi Feijó
Na mesma situação de incerteza estão a Animanostra, o Cineclube de Avanca/Filmógrafo, a produtora de José Miguel Ribeiro e tantas outras existentes no país, que não sabem ainda se irão poder recuperar da travessia do deserto do ano passado.
A produtora de Humberto Santana continua à espera de condições para concretizar um seu projecto antigo, a adaptação do clássico de Sophia, A Menina do Mar, e a série juvenil Figurões, de André Carrilho e João Paulo Cotrim, para as quais - e ao contrário do que tem sido habitual - tem a garantia de participação financeira da RTP, mas falta a do ICA.
António Costa Valente e o estúdio de Avanca têm agora pronta para estrear a curta-metragem Só, de Nuno Fragata. Mas no estúdio desta pequena localidade do distrito de Aveiro trabalham agora só sete pessoas, quando aí "já trabalharam mais de 40, no tempo da realização da longa-metragem Até ao Tecto do Mundo" (terminada em 2006 como primeira obra de longa duração na história da animação portuguesa). Costa Valente está agora também à espera da comparticipação, já prometida pelo ICA, para o desenvolvimento do projecto de uma nova longa-metragem, A Lenda de Kong Kit, o Gangster de Macau.
José Miguel Ribeiro lançou, no final do ano passado, uma loja-editora no mercado de Montemor-o-Novo, a que chamou Praça Filmes. E continua a acalentar o projecto de fazer a série infantil Dodu, para a qual iniciou, de resto, contactos com uma produtora brasileira. "Em Portugal, mais grave do que não haver dinheiro é a sensação de que as séries não encontram parceiros nas televisões, que é para onde elas são pensadas", lamenta o realizador de O Passeio de Domingo.
Mas, no meio de todo este deserto, há ilhas de optimismo. Uma delas é a produtora Bang Bang, criada em Lisboa há 15 anos por Miguel Braga, que tinha passado pela Animanostra. Em 2010, este animador encontrou um investidor nacional com "o sonho" do cinema de animação. Daí nasceu o projecto da série Nutri-Ventures, de que já foram realizados 30 episódios, que estão a passar na RTP e no Canal Panda, e que tem perspectivas de "ser vendida para televisões de 17 países", diz Miguel Braga. "Nutri-Ventures não é cinema de autor - não é isso que nos interessa -, é uma série que segue a estética do cartoon e se destina a teenagers, fazendo a apologia da alimentação saudável, mesmo não tendo uma preocupação didáctica", explica, adiantando que o investimento inicial foi de dois milhões de euros, mas já chegou aos cinco milhões. Tendo por princípio não recorrer a subsídios, a Bang Bang tem garantido trabalho - para além de Nutri-Ventures está também a produzir a série ZigZag (RTP2) - a uma equipa de 47 pessoas.
O efeito das escolas
A crise da animação atrás documentada, curiosamente, não tem tido ainda expressão no fluxo de novas produções. Para além do filme de Regina Pessoa, na carteira de títulos que a Agência da Curta-Metragem (Vila do Conde) apresenta esta semana no mercado de Clermont Ferrand estão 23 filmes de animação produzidos nos últimos três anos. E nas três últimas edições do Cinanima, as inscrições de filmes portugueses ultrapassaram sempre a meia centena. António Cavacas, da direcção do Festival de Espinho, diz que estes números não apagam a "grave situação da animação em Portugal". Eles resultam, por um lado, da habitual lentidão na produção de uma curta-metragem, que normalmente ultrapassa os três anos, e também da cada vez maior presença de produções das escolas.
Abi Feijó considera, de resto, que esta é a principal novidade dos últimos anos na animação em Portugal, notando que, quando há dois anos a Casa da Animação promoveu um simpósio sobre o ensino desta arte no país, foi surpreendida com a participação de... 14 escolas. Esses cursos existem nos diferentes graus do ensino, desde os ramos vocacionais no secundário, até ao recente lançamento de uma licenciatura em Animação pela Universidade do Algarve. "Depois do reconhecimento internacional da animação portuguesa de autor nos anos 90", a primeira década do novo século teve como marca mais importante "o aparecimento das escolas", diz o realizador de Fado Lusitano, notando que este facto surgiu quase em simultâneo com a eclosão da crise económica. Saber que destino fica guardado para os jovens animadores que saem dessas escolas
Fado na Noite, de Fernando Relvas
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