AO SERVIÇO DA AUTOCRÍTICA
Uma reflexão, plena de humor e de dúvida, sobre o meio arquitectónico e os tempos que vivemos.
Público, suplemento Ípsilon, 3 de Maio de 2013
José Marmeleira
CRÓNICAS DE ARQUITECTURA
Pedro Burgos
Mundo Fantasma/Turbina
Entre a BD e a arquitectura existe uma relação interessada e discreta. Interessada, porque ambas partilham o exercício do desenho e a representação gráfica das construções e da cidade. Discreta, porque pese embora a diversidade de exposições e projectos editoriais que tem originado, não provoca o debate merecido. Ora, Crónicas de Arquitectura, de Pedro Burgos, vem relembrar e glosar essa relação, trazendo para um campo mais alargado de leitores 12 pranchas publicadas, entre.2009 e 2012, no Jornal Arquitectos (órgão oficial da Ordem dos Arquitectos). Em termos temáticos adivinham-se os conteúdos, mas estes não lidam apenas com os problemas específicos da arquitectura. Transcendem-nos, comentando, com um humor magoado, o desemprego, a crise financeira, os sonhos utópicos da juventude ou, até, a obsolescência dos homens face à tecnologia. Arquitecto de profissão e formação, Pedro Burgos começou a publicar em fanzines nos finais dos anos 1980 e nas décadas seguintes foi construindo, por meio de histórias curtas e tiras semanais, uma obra singular que encontra os seus principais momentos em A Esquina (com João Pedro Cotrim e edição da Campo das Letras) e Airbag e Outras Histórias (MaisBD e Bedeteca de Lisboa). O seu desenho tem conciliado experimentação e um apreço geral por certas convenções da banda desenhada: as vinhetas e a sequencialidade convivem, por exemplo, com um desrespeito pelo naturalismo, e a presença imprevista de linhas e manchas modera o realismo dos lugares e das personagens.
Este equilíbrio está presente em Crónicas de Arquitectura, mas mediante uma pequena inversão. As vinhetas cedem o lugar à composição da página como um todo espacial que as personagens podem percorrer (ver as crónicas Ser Belo ou Ser Digital), libertando a leitura. A única geometria aceite é a da arquitectura, tornada protagonista pela representação de espaços interiores, edifícios e construções. Por vezes, promete-se mesmo a tridimensionalidade (impossível): apetece recortar os desenhos e fazer pop-ups do papel (em Ser Imigrante ou Ser Populista). Mas o traço de Burgos afasta-se das experiências em torno da figuração das obras anteriores. O desenho das personagens obedece antes à síntese do desenho humorístico e sugere afinidades com a linha-clara e com o registo mais acessível de um autor como Blutch. Predomina a intenção de comunicar uma ideia, uma reflexão curta, ou não tivessem as histórias sido concebidas para publicação num periódico. Cada prancha responde ao tema de capa do Jornal Arquitectos (Ser Lixo, Ser Belo, Ser Pobre) na forma de um comentário autocrítico sobre o métier. Em Ser Populista, o cliente resiste à sedução da arquitectura moderna para desespero do arquitecto; em Ser Rico, o condomínio é um campo de golfe apesar da indiferença dos seus moradores; em Ser Crítico há um crítico que não dorme, assustado com os monstros da nova arquitectura. A ambição, a desilusão, a dúvida, o falhanço assombram outras personagens, do jovem que quer ser independente ("estás aqui estás num call center", diz-lhe o mestre) ao arquitecto indeciso diante da planta do edifício que replica o desenho do território continental português ("Demolimos tudo ou isto salva-se?", pergunta-lhe o empreiteiro). Sem prejuízo dos problemas da arquitectura, é a capacidade que as crónicas de Burgos têm de estabelecer um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, aludindo a uma realidade transversal a outras profissões e ofícios, que faz deste livro uma proposta notável no campo da banda desenhada portuguesa. A arquitectura é a protagonista (da composição e das narrativas) mas a paisagem na qual intervém é-nos demasiadamente familiar. Revemo-nos nela com ironia (em Ser Imigrante) e angústia (em Ser Nada).
Exposição da galeria Mundo Fantasma, Porto
Pedro Burgos
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Viva o Pedro!
ResponderEliminarUm grande abraço para ele
alain