O NOVO FILME
DE FRANK MILLER E ROBERT RODRIGUEZ
SIN CITY – A DAME TO KILL FOR
(SIN CITY – MULHER FATAL)
ESTREIA AMANHÃ (1)
ATUAL – Expresso, 23 de agosto de 2014 (1)
APOCALIPSE DO FILME NOIR
Texto: Francisco Ferreira
Após nove anos de espera, Frank Miller e Robert Rodriguez dão seguimento a "Sin City – Cidade do Pecado" e regressam com um segundo tomo em 3D não menos portentoso e vibrante. Chama-se "Sin City – Mulher Fatal”.
Recapitulamos rapidamente a história: há nove anos, Robert Rodriguez desafiou Frank Miller a passar para cinema a BD de sua autoria "Sin City", uma das mais expressivas do final do século XX (foi iniciada em 1991) e alvo de culto imediato no seguimento da obra máxima do seu autor ("The Dark Knight Returns", de 1986). Em 2005, quando "Sin City: Cidade do Pecado" chegou às salas, o Expresso recordou a génese e a história dessa BD num artigo de João P. Boléo. No universo degradante, aflitivo e muito negro de "Sin City", profundamente influenciado pelo film noir de Hollywood dos anos 40 e 50, nesse calabouço em que a Humanidade se perde para lá da ética, da moral e das regras da dramaturgia, as obsessões das personagens de Miller estavam dentro dele. Tinha as pranchas à sua frente, mas não as imaginava em movimento, nem ouvia ainda as suas vozes. Para Miller, o desafio lançado por Rodriguez representou muito mais do que uma mera adaptação para cinema (ao ponto de ter decidido nesse exato instante tornar-se realizador): foi também uma catarse e, segundo ele, "a materialização de uma explosão, algo que foi expelido com violência de dentro de mim cá para fora através de outro médium".
Nove anos de espera é muito tempo. Há duas semanas, numa breve entrevista telefónica entre Lisboa e Los Angeles (dez minutos cronometrados ao segundo) a que tivemos direito, perguntámos a Miller porque tardou tanto a aparecer "Sin City: Mulher Fatal". "Nós estávamos prontos a arrancar com o segundo filme logo em 2005, mas queríamos enfrentar um desafio técnico superior.
O Robert já pensara então no 3D, mas estou a falar-lhe de um tempo em que ainda só havia duas salas de projeção em 3D nos EUA. Decidimos esperar. E como isto mudou entretanto... Nos últimos anos, a tecnologia avançou a um ponto tal, deu um tal passo de gigante, que se aproximou dos nossos desejos." Para Miller, aceitar o 3D não foi fácil. Ele cresceu a desenhar, a devorar novelas de Mickey Spillane e de Raymond Chandler e, nos últimos anos, teve más experiências com os filmes em 3D que viu (até disse ter saído da sala a meio de "O Cavaleiro das Trevas Renasce", último filme de Christopher Nolan). "É verdade que tive experiências péssimas com os filmes em 3D de Hollywood. Acho-os sempre forçados e quase todos horrorosos. Parece que são feitos para o 3D em vez de se servirem dele. Para mim, que sou avesso a modas, o 3D significava ver uma data de coisas a voar, e eu não tenho nada disso nas minhas pranchas. Nem dinossauros, nem aliens. Foi o Robert, uma vez mais, que me levou a aceitar o 3D como um processo artístico.
Convenceu-me que com o 3D nós podíamos realçar alguns aspectos da história. Por vezes, são só detalhes gráficos que despertam a atenção do espectador e que podem fazê-los pensar noutras coisas. E convenceu-me de que podíamos manter um registo sóbrio, sem espalhafato, que se mantivesse fiel ao que desenhei. Modestamente, acho que o conseguimos."
Há muitas novidades entre um filme e outro, mesmo se "Sin City: Mulher Fatal" recupera grande parte das personagens da obra matriz: o tremendo Marv, que não tem medo de coisa alguma (Mickey Rourke), Gail (Rosario Dawson), também Nancy Callahan (Jessica Alba), a protegida de Marv que agora descobrimos mais angustiada que nunca, a ganhar a vida numa pista de striptease — a história da personagem dela no novo filme foi escrita de raiz sem ter passado pela BD. Outro aspeto de "Sin City: Mulher Fatal" é que é atraído como um íman para a 'má da fita', a mulher fatal do título, um furacão chamado Ava Lord (que recorda, como não?, certos papéis de Ava Gardner), desempenho genial de Eva Green a servir uma personagem tão maléfica que quase se pode dizer que ela encarna todos os pecados capitais (e "não há justiça sem pecado", reza o cartaz...).
Também houve perdas, com a morte dos atores Brittany Murphy (que fazia de Shellie) e Michael Clarke Duncan (que fazia de Manute), este último substituído por Dennis Haysbert. Especialista a infligir a dor, Manute é o motorista, guarda-costas e pau para todo a colher de Ava Lord, esperando-o um combate de antologia com Marv. Também houve trocas de atores: a de Clive Owen por Josh Brolin (já que o filme se passa antes da cirurgia plástica da personagem de Dwight McCarthy) e a de Michael Madsen por Jeremy Piven. Outra personagem, Johnny, originalmente pensada para Johnny Depp (que não pôde aceitar o papel), foi parar a Joseph Gordon-Levitt, e a sua história é de partir o coração, segundo Miller: "Ele é um daqueles tipos que julga que pode enganar toda a gente, basta-lhe atirar uma moeda ao ar. Eu adoro personagens assim. Mas, no fundo, Johnny só pensa nele próprio. Está obcecado com a sua persona. Decide que vai enfrentar Roark e vencer um homem mais poderoso do que ele, mas repete um erro que não se pode repetir: e esta é uma lição para a vida!"
Não vamos continuar a apontar diferenças entre o primeiro filme e o segundo, mas há que dizer mais uma coisa: "Sin City: Mulher Fatal" é uma obra bastante mais entrosada do que a anterior, com duas histórias paralelas que não se dividem na narrativa tal como se dividiam no primeiro filme. Parece-nos que a essência 'thrillesca' ganha bastante com isso. Também perguntámos a Miller como é que o trabalho de realização é dividido no set, e ele respondeu como os irmãos Coen: "Não partilhamos, tomamos as decisões juntos. Nem sei como se podia fazer um filme de outra maneira. Chegamos intuitivamente ao que queremos e separamos o que está a funcionar do que está errado. É claro que eu não percebo grande coisa de 3D, e o Robert neste terreno está como peixe na água. Mas ele está sempre a 'enganar-me'. Nos anos 90, andava o cinema longe da minha cabeça, eu dizia a mim mesmo que, se havia uma BD minha que jamais poderia ser adaptada ao cinema, era 'Sin City'. Mas depois apareceu o Robert Rodriguez."
Outro aspeto comum às obras de Miller, e em particular a "Sin City", é uma atração pela violência e pela luxúria — em sintonia com a memória do film noir. Basin City é uma cidade infernal, um poço sem fundo que não procura a verosimilhança com a realidade. Perguntámos ao autor porque é que o seu universo criativo tem de ser tão negro, se no seu trabalho também existe espaço para sentimentos mais nobres, como a luta pela dignidade, por exemplo. Miller conclui: '"Sin City' é atravessado por um grande tema: a vingança. Toda a gente se quer vingar de alguém ou de alguma coisa, exceto Marv, que sofre de súbitos ataques de crise e reage instantaneamente ao que lhe acontece, sem perder tempo. As minhas personagens existem nesse mundo de violência e luxúria mas não deixam de ser humanas. Aliás, eu acho que o que elas procuram, já desesperadamente, é uma réstia de humanidade. Uma humanidade presa por um fio mas que ainda sentimos que está lá.
No fundo, elas também choram, também ficam com o coração despedaçado. Muitas vezes, por amor."
O "puritanismo" americano...
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