"SIN CITY" DE FRANK MILLER
O DESESPERO DA INJUSTIÇA
ATUAL – Expresso, 23 de agosto de 2014 (2)
Texto: João Paiva Boleo
A série de banda desenhada "Sin City" é constituida, até hoje, por seis graphic 'noir' novels e um conjunto de historias curtas reunidas em "Booze, Broads and Bullets"/"Balas, garotas e bebidas". Os sete livros foram publicados em Portugal pela Devir, em edições de excelente qualidade global, e representam de algum modo o coroar da obra de Frank Miller, figura-chave da intersecção do inesgotável universo ficcional dos super-heróis com as renovadas tendências da BD simbolizadas nas chamadas graphic novels e em autores como Will Eisner. A sua aprendizagem e aperfeiçoamento, como autor completo e como argumentista, fez-se nos super-heróis, com mestres como Neal Adams, destacando-se, da sua vasta obra, a participação em séries como "Daredevil/ Demolidor" e "Elektra", "Wolverine", "Ronin", obras de ficção política como "Give me Liberty" ou "Hard Boiled", a sua visão da Batalha das Termopilas em "300", etc, sem esquecer a sua colaboração para "Batman", em especial o referencial e influente "The Dark Knight Returns" de 1986, bem como, no ano seguinte com David Mazzucchelli, "Batman: Year One", carreira evocada, aquando da estreia do primeiro filme, no Expresso de 10/06/2005. Concentremo-nos, então, na BD "Sin City", iniciada em 1991 e que se desenvolveria por uma década, enquanto o autor se envolve cada vez mais no cinema.
"Com 'Sin City', de certa maneira houve um círculo que se fechou. Regresso ao tipo de material que mais desejava fazer quando comecei a trabalhar como profissional dos comics. Quando tinha 14 anos achava que as histórias do Mickey Spillane podiam dar 'fantásticas' bandas desenhadas. Apesar de ter demorado 21 anos para voltar ao ponto de partida, sentia que ainda não o tinha conseguido." (Frank Miller a Stanley Wiater e Stephen R. Bissette em "Comic Book Rebels: Conversations with the Creators of the New Comics", New York: Donald I. Fine, 1993). A primeira história longa, inicialmente apenas "Sin City", viria a chamar-se "The Hard Goodbye", óbvia referência ao famoso romance de Raymond Chandler "The Long Goodbye".
Vingança. Corrupção, identificada com a mentira. Acertos de contas. Confrontos entre grupos rivais. Máfia. Um mundo 'pós-ético' que está para lá do imoral e tudo empapa de amoralidade. Sadismo e perversão prepotentes. Prostituição. Injustiça que gera uma violência que é apenas um grito de revolta sem fé em qualquer redenção social. Desespero. Desamparo. Um mundo sufocante. Mas também alguma amizade e solidariedade. E sempre a ilusão, a necessidade, a esperança mitificada do amor.
O impacto e originalidade de "Sin City" vem de cruzar uma estética desenvolvida na renovação de alguns mundos e obsessões dos super-heróis (pairam posturas como as de Batman) com a tradição do film noir e do romance policial hard boiled — título, recorde-se, da sua BD com Geof Darrow, da mesma altura do início de "Sin City" e que foi importante para o desenvolvimento do seu trabalho gráfico.
Narrativa na primeira pessoa de um homem sofrido, da polícia ou da marginalidade, pois as duas (con)fundem-se, mas sempre sério e 'justiceiro', Miller ora adota um tom enfático e 'literário', intencionalmente pausado e por vezes mesmo redundante, ora nos oferece sequências 'mudas', ora prolonga a ação num eficaz equilíbrio entre narração e silêncio, reforçados por um jogo teatralizado e contrastado de preto e branco (salvo simbólicas exceções) que aprofunda múltiplas influências da BD 'de autor' (EUA, Europa, América Latina, Japão) e do cinema.
Mas Basin City, a "cidade do pecado", não é só um espaço urbano, é um universo dinâmico e coerente em que diversas personagens e histórias se entrecruzam nos diferentes livros, renovando as perspetivas e aprofundando a psicologia e biografia de algumas figuras, caso de Nancy. O importantíssimo universo feminino da série, aliás, está cheio de recorrências, e a presença feminina, que é sempre o motor da ação, nada tem de gratuito, embora não exclua algum voyeurismo.
Não faltam, também, piscadelas de olho, das grotescas personagens Fat Man e Little Boy ('nome' das bombas atómicas sobre o Japão) a citações cinéfilas como "lie to me" ("Johnny Guitar"), mas alguma violência e sadismo não podem deixar de ser considerados por vezes excessivos. Miller, no entanto, considera a violência e mesmo a brutalidade necessárias para obter o efeito emocional (e de denúncia?) pretendido. Pela sua maior densidade humana e um mais consistente fio narrativo, escolheria como melhores os álbuns "A Dame to Kill For/Mulher Fatal" e "That Yellow Bastard/Aquele Sacana Amarelo".
As influências que assimilou e recriou com originalidade, tornando-se ele próprio uma referência, dão a Frank Miller um lugar irrecusável na história da BD, mas aconselham também alguma distância crítica. "Sin City", com o seu impacto, mas também com alguns desequilíbrios, não tem, para dar só três exemplos de mestres do preto e branco, a riqueza e densidade de "Mort Cinder" (A. Breccia), "Corto Maltese" (H. Pratt) ou — e este influência direta, até no nome — "Alack Sinner" (Munoz e Sampayo).
____________________________________________________
Sem comentários:
Enviar um comentário