Jacques Tardi, C'était la guerre des tranchées
A BANDA DESENHADA TAMBÉM COMBATE
NA I GUERRA MUNDIAL
ASSINALANDO OS 100 ANOS
DO INÍCIO DA GRANDE GUERRA DE 1914-1918
Como toda a gente saberá (bem... talvez não toda a gente, porque a falta de informação das gerações mais novas é algo confrangedora) foi assinalado em quase toda a comunicação social, durante este mês de Agosto, os cem anos do início da I Grande Guerra Mundial – 1914/1918 – considerada na altura a guerra mais mortífera (19 milhões de mortos) e generalizada da História da humanidade. Afinal, percebeu-se vinte anos depois, em 1939, que foi apenas um ensaio para a Segunda Grande Guerra Mundial (1939/1945) – esta sim verdadeiramente Mundial, uma vez que envolveu quase todo o planeta – que seria três vezes mais mortífera (61 milhões de mortos) e devastadora. Curiosamente, ou não, as duas Grandes Guerras Mundiais foram desencadeadas pela Alemanha... com os resultados que conhecemos.
A Primeira Grande Guerra Mundial, conhecida até ao início da Segunda como a Grande Guerra, envolveu quase toda a Europa, e até Portugal fez questão de participar (contra a vontade de todos os aliados, diga-se de passagem), com resultados catastróficos, como nos tem mostrado a matéria que tem sido publicada no jornal Público durante este mês de Agosto. Mas a memória desta Guerra é actualmente, quase “romântica”, devido ao tempo que já decorreu sobre a data e existem na Banda Desenhada muitas obras, como comprova o recorte dartigo que republicamos abaixo, de Eurico de Barros, que abordam o tema de modo excepcional – é um post longo, que requer paciência. Vejamos então...
Diário de Notícias, QUOCIENTE DE INTELIGÊNCIA, sábado, 23 de agosto de 2014
Por Eurico de Barros
A BANDA DESENHADA TAMBÉM COMBATE NA I GUERRA MUNDIAL
Das obras de referência de Tardi, que revolucionaram a representação do primeiro conflito mundial em banda desenhada, até ao extraordinário e inédito fresco desdobrável 'The Great War', de Joe Sacco, há muito para ler no género sobre a guerra de 14-18, especialmente em francês.
A GRANDE GUERRA, a que hoje chamamos Primeira Guerra Mundial, começou a ter expressão na banda desenhada logo desde o início, imediatamente revestida de uma intenção patriótica e propagandística, já que era destinada a ser lida pelos mais novos. Daí que, em França, personagens tão populares como Bécassine e Les Pieds-Nickelés tenham sido "recrutados" para defender a causa dos Aliados nas suas-aventuras, ridicularizando o inimigo e puxando pelos valores nacionais e pelo lado dos "bons", em histórias sempre humorísticas e das quais estavam totalmente ausentes os aspetos mais desagradáveis, negros e desumanos do conflito. Estes surgiam apenas na obra dos ilustradores e cartoonistas, muitos dos quais eram soldados que combatiam na frente.
Até às décadas de 60 e 70, a versão didática e edificante dos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial era predominante na banda desenhada francófona, através de obras como La Grande Guerre, de Sergio Toppi, Jacques Bastian, Dino Battaglia e Pierre Castex, parte da série coletiva L'Histoire de France en bande dessinée, em que um desenho de grande qualidade era serviçal das generalidades aceites, dos lugares-comuns, dos mitos e das situações feitas encontradas nos manuais de história e nos livros de divulgação sobre o conflito.
Se há um autor que revolucionou a representação da I Guerra Mundial na banda desenhada, mostrando-a em todo o seu horror e absurdo com um realismo impenitente e um sentido do detalhe perfeccionista, fruto de um trabalho de documentação em profundidade, e em colaboração estreita com o historiador Jean-Pierre Verney, ele é Tardi,_o criador de Adèle Blanc-Sec. Graças a álbuns como C'était la guerre des tranchées (1993, dedicado ao avô, soldado das trincheiras) ou os dois tomos de Putain de guerre! (2008/2009), entre vários outros, Tardi tomou-se no equivalente, em banda desenhada, a um historiador "narrativo" da Primeira Guerra Mundial, que se pode consultar como se consulta um autor de livros convencionais sobre o conflito.
O ponto de vista de Tardi é o do soldado de infantaria anónimo que pena e patinha na lama, na sujidade e no sangue das trincheiras, que obedece aos seus oficiais e que morre nas investidas suicidas contra o inimigo ou vê morrer os seus amigos e camaradas sem saber porquê, e tenta ficar vivo a todo o custo enquanto amaldiçoa a sua situação e os responsáveis por ela. O universo dos seus álbuns, que o recurso ao preto e branco (como os filmes da época o eram), às cores frias ou a súbitas e explosões coloridas, torna ainda mais realista, vivido e expressivo, é aquele por onde evoluíam os militares no seu quotidiano, e tudo o que eles sentiam e viviam, Tardi faz-nos sentir e viver, partilhando a funda empatia que o une aos combatentes.
Estamos permanentemente no coração dos acontecimentos: o dia-a-dia das trincheiras, a monotonia entre os combates, os piolhos e as pulgas, o calor do verão e o gelo do inverno, os bombardeamentos com morteiros, as cargas e os morticínios, a coragem e o medo, a abnegação e o pânico, a Terra de Ninguém, os cadáveres semeados por toda a parte e os fuzilamentos "pour l'exemple", a incompetência e a indiferença dos altos comandos, a perplexidade, a falta de explicação e a revolta difusa dos soldados perante acontecimentos que os ultrapassam mas que lhes reclamam sacrifícios, sofrimento, e finalmente, a vida. E nada nos é poupado, dos corpos desfeitos pelos obuses e pela metralha, às cenas mais insuportavelmente macabras que um teatro de combate à escala industrial como foi o da Primeira Guerra Mundial pode apresentar.
Em Tardi, a guerra é como um mecanismo gigantesco, impiedoso e cego, que foge à compreensão comum e manipula os homens e os destrói, mutila e mata, em nome de doutrinas ou ideais anti-humanos. Em praticamente todos os seus álbuns direta ou indiretamente relacionados com o primeiro conflito mundial, não há um herói, mas sim uma personagem coletiva que são os soldados, atores, testemunhas, vítimas ou anti-heróis. Os soldados franceses, mas também os das restantes partes em conflito, porque a guerra a todos atinge, usa e marca da mesma forma, independentemente da nacionalidade e do lado por onde alinham.
Homem de convicções ideológicas anarquizantes, Tardi é abertamente antimilitarista e pacifista, e à sua descrição da Primeira Guerra Mundial está sempre apensa uma condenação inequívoca e militante. Mas não somos obrigados a partilhar as suas ideias politicas radicais e o seu entendimento por vezes reducionista da guerra, para reconhecermos a sinceridade emocional, a verdade humana, a superior qualidade gráfica, o rigor documental e a importância histórica dos seus álbuns ambientados no conflito (e que já formam uma parte muito significativa da sua bibliografia). Bem como a identificação do autor com o soldado raso e a sua vontade de o compreender, a sua sensibilização para as condições de vida e morte deste, e a sua indignação com o destino coletivo dos combatentes de 14-18.
Numa entrevista dada ao número especial da revista Beaux Arts, dedicado à representação da I Guerra Mundial na banda desenhada, desde a sua eclosão até aos nossos dias, Tardi explica: "Para mim, a posição de partida era o discurso antimilitarista e a vontade de destacar o pobre diabo manipulado. Deixei de parte os oficiais voluntariamente. Havia assim essa vontade, digamos, política. Mas com o tempo, e sejamos honestos, tomei igualmente consciência da minha vontade de me identificar com o poilu (1). Creio que nessa época ninguém tinha vontade de falar da I Guerra Mundial, nem de assumir esse papel. O motor da escrita é a vontade de compreender."
Juntando o gesto ao discurso, o autor recusou, em 2013, ser condecorado com a Legião de Honra, no âmbito da preparação das comemorações dos 100 anos do início do conflito, justificando-se por não desejar "nada receber nem do poder atual nem de outro poder político, qualquer que ele seja", e frisando que "os artistas não gostam de ser reconhecidos por pessoas que não são estimadas".
Os álbuns de Jacques Tardi fizeram escola na banda desenhada sobre a Primeira Guerra Mundial, influenciando diretamente ou inspirando muitos autores. De uma forma ou outra, a sombra do autor de Putain de guerre! paira sobre quase todos eles, nem que seja no tom ácido, crítico, desapiedado, sem ilusões ou abertamente niilista das histórias.
Outra série, Les Sentinelles, de Xavier Dorison e Enrique Breccia, combina Primeira Guerra Mundial, ficção científica e a mitologia dos super-heróis norte-americanos, criando um grupo de personagens com características ou poderes especiais, que combate nas trincheiras ao lado das tropas. Por outro lado, Notre Mère la Guerre, outra série, assinada por Kris e Mael, anda pelo território do policial. Um oficial investiga o assassínio de várias mulheres na frente, que poderão ter sido cometidos por um grupo de jovens soldados com cadastro na vida civil e que estavam na cadeia antes de terem sido alistados à força. O oficial descobre que os suspeitos, estranhamente, são protegidos por um cabo esquerdista e antimilitarista. Em Vies tranchées, Hubert Bieser coordena o trabalho de uma equipa de desenhadores que recorda casos reais de soldados que, na Primeira Guerra Mundial, foram internados por sofrerem de problemas mentais, serem pobres de espírito ou loucos perigosos, ou apresentarem desordens do foro psicológico causadas pelos combates. Bieser escreveu uma tese sobre o tema e teve acesso a milhares de documentos e arquivos de época, de entre os quais seleccionou os 15 casos descritos neste álbum passado na retaguarda.
Entre os títulos recentes mas já clássicos da banda desenhada sobre a I Guerra Mundial encontram-se os dois volumes de Paroles de Poilus, uma obra coletiva coordenada por Jean-Pierre Guéno, o responsável pela edição em livro homónima, contendo correspondência selecionada e excertos de diários de militares franceses. No primeiro álbum, os desenhadores convidados ilustram essa correspondência e esses diários, enquanto no segundo, com o subtítulo Mon Papa en Guerre, correspondendo a outro livro também coordenado por Guéno, surgem as interpretações gráficas das cartas trocadas entre os soldados e os seus filhos.
Saindo do universo francófono e viajando até aos EUA, encontramos um raro comic passado na Primeira Guerra Mundial e que só estará disponível no final do verão: White Death, da autoria do britânico Charlie Adlard, desenhador da série Walking Dead, e Robbie Morrison.
Nenhuma seleção de álbuns de banda desenhada sobre a guerra de 14-18 estaria completa sem uma referência a The Great War, de Joe Sacco, autor, jornalista e pioneiro do jornalismo em banda desenhada (Safe Area Goradze, Palestine, Footnotes in Gaza, etc.). Inspirando-se na Tapeçaria de Bayeux, Sacco criou um extraordinário e inédito fresco em forma de desdobrável panorâmico com sete metros de comprimento, onde está representado ao mais intimo detalhe, e sem recurso a palavras ou a onomatopeias, o primeiro dia da Batalha do Somme, uma das maiores e mais mortíferas da I Guerra Mundial.
A 1 de julho de 1916, morreram cerca de 20 mil soldados britânicos e ficaram feridos 40 mil (do lado alemão, houve seis mil baixas, entre mortos e feridos). Escrevendo sobre The Great War no The Sunday Times, o pintor, desenhador e fotógrafo David Hockney disse:
(1) Poilu - termo informal utilizado para os membros da infantaria francesa da Primeira Guerra Mundial
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'C'était la guerre des tranchées'
Tardi
Casterman
126 páginas
ISBN 978-2203359056
17,00 euros na amazon.fr
'Putain de Guerre!, Intégrale'
Tardi
Casterman
136 páginas
ISBN 978-2203051300
25,00 euros na amazon.fr
'L'Ambulance 13'
(vários volumes)
Cothias/Ordas/Mounier
Bamboo Éditions
'Le Pilote à l'edelweiss'
(vários volumes)
Yann/Hugault, Paquet
'Le Coeur des Batailles'
(dois volumes)
Morvan/Cordeil/Walter
Delcourt
13,95 euros cada na amazon.fr
'Les Sentinelles'
(vários volumes)
Dorison/Breccia
Delcourt
'Notre Mère la guerre'
(vários volumes)
Kris/Mael,
Futuropolis
'Vies tranchées'
Vários autores
Delcourt
112 páginas
ISBN 978-2756017815
19,99 euros na amazon.fr
'Paroles de poilus'
(dois volumes)
Vários autores,
Soleil
19,99 euros cada na amazon.fr
'White Death'
Adlard/Morrison,
Image Comics
104 páginas
ISBN 978-1632151421
13,80 euros na amazon.co.uk
‘The Great War’
Joe Sacco
Jonathan Cape
56 páginas
ISBN 978-0224.097710
17,10 euros na amazon.co.uk
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