MARIANE SATRAPI
EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Público, suplemento Ípsilon, 8 Março 2013
Pela primeira vez desde que começou a pintar, aos seis anos, a autora de Persépolis exibe os seus quadros. A exposição em Paris coincidiu com a estreia nos cinemas de La Bande des Jotas, o seu novo filme. Em entrevista ao ípsilon, a iraniana que desenha mulheres com cores de Matisse defende-se de críticas inclementes.
Margarida Santos Lopes, em Paris
A Galeria Jérôme de Noirmont situa-se na Avenida Matignon, no 8º bairro de Paris, área onde reside uma parte da alta burguesia francesa. Só poderia ser este o lugar da primeira exposição pública (até dia 23) das pinturas de Marjane Satrapi, bisneta do imperador persa Nasser al-Din Shah (que reinou de 1848 a 1896 e teve 100 mulheres - dando "sangue azul" a muitos iranianos) e neta de um príncipe da dinastia Qajar.
Satrapi não está em Paris - irá escrever-nos de Berlim, onde está a rodar o que designou, sem mais detalhes, por "um filme americano" - quando entramos na galeria que já vendeu 17 dos seus 21 quadros, dez dos quais no dia da inauguração. A visita a Marjane Satrapi - Peintures é guiada pela amiga e curadora Emmanuelle de Noirmont, que a convenceu a desvelar as obras que, até 30 de Janeiro, Satrapi resguardava no seu atelier, na Place des Vosges, onde desenhou Persépolis, e um poster com a inscrição "Fuck You" acolhia os convidados.
Enquanto Emmanuelle de Noirmont, porte altivo, descodifica as fontes de inspiração da artista ("o encantamento com as cenas de interior e a composição elaborada das obras de Balthus; a admiração pelas construções geométricas de Mondrian, e as cores sensuais de Matisse"), nós revisitamos Broderies ("Bordados"). Neste livro de BD, nove mulheres bebem chá, numa tarde dedicada a "ventilar o coração", ou seja, a "falar nas costas dos outros" - sobre sexo, "naturalmente". Uma das figuras mais marcantes - do enredo e da vida de Marjane Satrapi - é a trisavô, pintora, poeta, mulher "escandalosa".
No catálogo da exposição, Satrapi entrelaça o afecto: "Há 80 anos, no Irão, ela casou-se com um general do exército, meio século mais velho. Na noite do casamento, antes do acto sexual, fingiu ter uma súbita vontade de ir à casa de banho (no exterior), saltou o muro e fugiu para casa de uma tia (...). A minha trisavô não voltou a casar-se e dizia que era 100 vezes mais interessante ser amante de um homem casado do que engomar as camisas de um marido. Foi estudar pintura para a Suíça [onde se tornou amante de um ministro]. Eu era filha única e gostava mais de estar com adultos do que com crianças. Por isso, passava todos os fins-de-semana com ela. Não só ela me deixava 'pintar' em todas as superfícies possíveis, incluindo paredes, como contava histórias - sobre amor e amores, paixão e vingança, Europa e Irão. Eu desenhava e sonhava durante o dia. Esses encontros, aos fins-de-semana, são a base de várias histórias que tenho vindo a contar."
Para desgosto das feministas, Marjane Satrapi sublinha que não partilha a causa - "longe disso!". "Reparem no que Margaret Thatcher fez ao Reino Unido", exemplifica como símbolo de "mal feminino". Pinta mulheres "como um poeta embriagado, pelas mesmas razões que Modigliani e Gauguin": "Pinto a minha trisavô, eu própria, a minha avó, as suas primas e outras das quais tenho memórias vagas. São as pessoas que me fizeram. São a minha busca por um tempo perdido. Excepto nos retratos familiares [expostos em Paris], as mulheres nunca olham na nossa direcção. Estão atentas ao que se passa no exterior da tela: o fora-de-campo."
Nas personagens da galeria da Avenida Matignon, nuas de risos e lágrimas, de gestos grandiosos ou grotescos, olhamos para o vermelho intenso dos lábios e o negro dos cabelos espessos, para a indumentária e as poses, e é como se reconhecêssemos as protagonistas de Broderies - incluindo Satrapi. "É natural que o ambiente familiar e a infância de Marjane influenciassem o seu trabalho, ainda que estas faces, de grande expressividade, sejam anónimas", explica Emmanuelle. "As bocas estão fechadas, pintadas de forma a reflectir a subtileza das emoções. Em contraste, os corpos e o ambiente que os rodeia têm cores vivas para colocar as personagens numa melhor perspectiva."
Para Emmanuelle de Noirmont, Marjane Satrapi - Peintures "reúne os paradoxos da personalidade" da sua amiga: "Um carácter simultaneamente exuberante, altamente influenciado pelo exterior e surpreendentemente introspectivo; a razão e a lógica interligam-se aqui com sentimentos e emoções resultantes de experiências pessoais que misturam valores orientais da sua cultura iraniana e valores ocidentais da sua vivência em França."
Criada numa casa sem brinquedos mas com muitos livros, Satrapi conheceu uma única BD na infância, Tintin, que não apreciava "porque não tinha mulheres". Foi em Estrasburgo (França), numa academia de artes decorativas, que a sua "vocação" foi desperta por Christophe Blain (autor da série Isaac O Pirata), Emmanuel Guibert (A Filha do Professor), Joann Sfar e David B. (Urani - A Cidade dos Maus Sonhos). A sua identidade como artista seria, assumidamente, moldada em 1995, quando recebeu, de presente de aniversário, Maus, a banda desenhada com que o cartoonista norte-americano Art Spiegelman ganhou um Prémio Pulitzer em 1992 ("especial", porque o júri não conseguia distinguir entre ficção e biografia), sobre a relação entre o autor e o seu pai, um judeu polaco sobrevivente do Holocausto. Em 1999, quanto tinha 29 anos, Satrapi começou a desenhar Persépolis. Em 2000, foi publicado o primeiro volume do livro, que se tornaria filme em 2007. Hoje, a BD está traduzida em mais de 25 línguas, incluindo o português (Contraponto).
A partir da Alemanha, na curta entrevista que nos deu por e-mail ("O meu tempo não é precioso - eu não tenho tempo!"), Marjane Satrapi diz: "Pinto desde sempre e agora senti que estava preparada para expor pela primeira vez - acredito que não será a única. É extremamente difícil falar sobre os meus quadros. Não há muita coisa a dizer. Quero que quem vê o meu trabalho imagine a história que mais lhe apetece ler. Não interessa qual a história que eu contei a mim própria enquanto pintava." No catálogo de Peintures, ela cita Diderot, filósofo, escritor e crítico do Iluminismo francês: "Quando escrevemos, temos de escrever tudo? Quando pintamos, temos de pintar tudo? Por favor, deixemos algo para a imaginação."
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Amanhã: sobre LA BANDE DES JOTAS, o novo filme de Satrapi
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