BUILDING STORIES
CHRIS WARE
Um livro que não é um livro mas uma caixa gigante com histórias espalhadas por 14 suportes diferentes: Building Stories, de Chris Ware, põe em causa todas as regras da narrativa e devolve-nos ao maravilhamento das primeiras leituras. A propósito, fomos folheá-lo num colégio.
"Isto não tem um mapa?
Público, suplemento Ípsilon, 15 Março, 2013
António Rodrigues
"Nunca gostei do formato tradicional dos livros de comics e desde muito cedo tentei fazer alguma coisa que fosse diferente (...), como Art Spiegelman e a revista RAW, de Françoise Mouly, [que] alargaram as possibilidades [da BD no passado]" Chris Ware
Building Stories
O último livro de Chris Ware foi editado em Outubro do ano passado — pela Pantheon, nos Estados Unidos, e pela Random House, no Reino Unido. Tendo em conta o diminuto mercado português e os altos custos de produção desta caixa-livro, é improvável que venha a conhecer edição portuguesa.
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Building Stories é desconcertante. Questiona a ideia do livro como o conhecemos. Sabota a relação habitual com o leitor. Deixa de ser apenas uma entrega de letras pretas sobre papel branco ou, neste caso, de ilustrações coloridas sobre folhas de boa gramagem destinadas à fruição individual de quem lê, para pular a cerca e activamente questionar a relação, as expectativas, as regras habituais da narrativa.
"É um jogo mais do que um livro", afirma uma das professoras. "Não se pode ler no comboio, não se pode ler no café, não se pode ler na sala, com o cão e os filhos", acrescenta outra. E têm toda a razão. Os 14 distintos livros, panfletos, jornais, revistas e a caixa que os guarda não só formam um conjunto pesado como exigem ser libertados e espalhados. Na caixa há sugestões para "colocar, esquecer ou perder completamente algum do seu conteúdo entre as quatro paredes de uma casa normal bem situada".
Em entrevista à revista New Statesman, o autor confessa o seu gosto pelas experiências: "Nunca gostei do formato tradicional dos livros de comics e desde muito cedo tentei fazer alguma coisa que fosse diferente e mais adequada ao material que apresento", abrindo novos caminhos para a banda desenhada e as novelas gráficas do futuro "como Art Spiegelman e a revista RAW, de Françoise Mouly, alargaram as possibilidades" no passado.
Uma das alunas do St. Julian's quase cita Chris Ware sem saber: "Isto não deve ser para ler tudo de seguida, deve ser para perder um pouco pela casa." Ao que outra diz "é para espalhar numa mesa", acrescentando a primeira: "ou na casa de banho". E quando se apresta para explicar melhor a professora interrompe-a: "Demasiada informação!"
Building Stories dá asas à imaginação. Faz tudo para justificar a citação de Pablo Picasso usada como epígrafe: "Tudo o que podemos imaginar é real." Tem histórias dentro: a da jovem sem uma perna que mora no terceiro andar (é a partir do ponto de vista dela que tudo se conta), a de um casal trintão com peso a mais e amor a menos, a da idosa senhoria solitária e a do pequeno prédio de apartamentos onde todos vivem, edifício que Ware chega a antropomorfizar ao enchê-lo de pensamentos sobre moradores actuais e passados.
Mas se dá asas à imaginação, é parco quanto a indicações de leitura. O autor deixa ao leitor a construção da narrativa com os meios à sua disposição. Embora a tendência seja a de partir dos suportes mais pequenos para os maiores - é difícil libertar o nosso cérebro de amarras apriorísticas -, não há uma escolha certa: todos os caminhos levam à Roma de Building Stories e nenhum pode ser descrito como a distância mais pequena entre dois pontos.
Daí que "isto tem um mapa?" seja a primeira pergunta de uma outra aluna assim que a caixa se abre à volta de uma mesa da biblioteca do St. Julian's, onde sentados ou em pé os alunos vão distribuindo entre si os diferentes artigos da caixa-livro. "O que eu não percebo é a ordem, não percebo nada disto. Isto é muito estranho", confessa um deles, manifestamente desorientado.
Duas das professoras presentes queimam pontes com o estranho objecto antes mesmo de qualquer construção. O livro não as seduz, são leitoras de livros-livros e não nasceram com a era digital. "Isto é como o cubo de Rubik, é preciso juntar as cores. Mas dá muito trabalho e não vejo que compense assim tanto", justifica-se uma delas.
Há alunos que fazem o mesmo, embora experimentem primeiro. Torcem o nariz à confusão, à exigência, vão conversando baixinho. Outros dedicam-se a lançar piadas - nem seria uma turma de adolescentes sem alguém a tentar introduzir o humor na experiência em grupo. É esse que afirma: "Vou comprar só para poder discutir isto com a minha mãe”, sem disfarçar a ironia de quem nunca sequer ponderou concretizar a declaração.
"Não creio que tenhamos na nossa cabeça um 'livro da vida' que folheemos para encontrar os capítulos e as passagens; a nossa memória é mais como uma gema ou como uma flor ou como algo tridimensional que podemos mudar, virar do avesso, entrar ou sair", explica Ware em declarações ao The Comics Journal.
Building Stories não se limita a experimentar no formato, também é dado a experiências no desenho. A narrativa tende a ir para lá da habitual esquerda-direita das tiras a que a BD nos habituou: sobe e desce escadas, joga com as janelas do prédio, vagueia com pensamentos, parte do centro para a periferia ou vice-versa, transforma-se em letras desenhadas. Os balões de diálogo são substituídos por balões de figuras azuladas, os desenhos diminuem de tamanho até fazer doer a vista. Aliás, se há nele uma lógica é a da arquitectura, imposta por esse prédio do final do século XIX, princípio do século XX, que é o centro do mundo deste livro.
Escreve Ware: "Quem nunca tentou, ao passar à noite por um prédio ou por uma moradia, espreitar pelos cortinados ou persianas meio-fechados, à espera de apanhar um fogacho da vida privada dos seus moradores. Qualquer coisa... o mais breve vislumbre de movimento... talvez uma cabeça assomando-se... um pouco de cabelo... uma sombra misteriosa... o lampejo de um corpo... de qualquer forma parece mais revelador do que um cumprimento generoso ou uma cordialidade calculada... Mesmo o mexer ténue de um simples cortinado pode sugerir o mais colorido bouquet de segredos."
Duplo maravilhamento, o da caixa que se abre frente aos nossos olhos para nos mostrar o bouquet de segredos, como quem espreita para lá desse cortinado e observa a vida que se desenrola para lá da sua experiência; e o do livro que nos devolve, mercê da surpresa e do jogo, às primeiras leituras de infância, ao momento em que descobrimos que juntando as letras em carreiras de palavras podíamos viajar interminavelmente.
E no St. Julian's, depois das muitas perguntas soltas de quem ainda vai pelos livros de mão dada - e quando o instinto de perguntar primeiro se acalmou para dar lugar à descoberta -, houve rostos de genuíno enlevo, mostrando o puro prazer da leitura, chegando ao ponto de se citar Hitchcock: "Parece que são histórias verdadeiras, é como espreitar pela janela do vizinho. Eu gosto de ver as pessoas desde a minha casa, como no filme do Hitchcock, o Janela Indiscreta."
Serão estas histórias verdadeiras? Serão estas pessoas verdadeiras? Será este edifício verdadeiro? Viveu o autor neste edifício? Foram as mais incessantes perguntas que ouvimos. Sinal de um tempo em que o rótulo do "verdadeiro" parece emprestar a qualquer narrativa um cunho mais autêntico, tão longe da referida citação de Picasso que se lê na caixa.
Todavia, a bem da informação, vale a pena responder que o próprio Ware, na referida entrevista à New Statesman, confessa: "A personagem principal é parecida com a minha mulher e é verdade que temos uma filha". Acrescenta ainda sobre o prédio que é uma mistura de dois edifícios distintos onde viveu em Chicago antes de se mudar para Oak Park, o subúrbio da principal cidade do estado do Illinois (e terceira mais populosa dos Estados Unidos) para onde a sua protagonista igualmente se muda.
As personagens são, no entanto, fictícias, embora os seus traços possam encontrar-se em cada canto das grandes metrópoles, onde a solidão se agudiza com a presença de tanta gente e a tendência para a depressão é maior e mais táctil, e de onde a felicidade parece ter-se ausentado para parte incerta, escondendo-se no sótão das memórias ou vagueando inalcançável à mercê de um qualquer acaso cósmico fora de controlo e da serenidade, como na comédia romântica com John Cusack e Kate Beckinsale (Serendipity).
"Sempre que conhecemos alguém ou sabemos alguma coisa sobre alguém, estamos a criar ficção. Escrevemos ficção sobre pessoas que conhecemos, que pensamos conhecer bem, porque criamos histórias sobre elas na nossa cabeça e, qualquer que seja a história, o mais provável é que não seja verdade", refere o autor em entrevista à Publishers Weekly. "Não estou a tentar dizer que tudo o que ouvimos é imaginário, mas estou a tentar apreender um sentido dessa verdade e um sentido desse mecanismo" de contar histórias, continua.
Ware garante que, acima de tudo, pretende que o leitor "se divirta" com Building Stories. No entanto, a estranha forma que adoptou para o seu livro é, a julgar pela pequena amostra do St. Julian's, um pau de dois bicos: aquilo que atrai uns é o mesmo que afasta outros. Mas, como diz uma das alunas, numa associação nitidamente sofisticada para uma adolescente de 15/16 anos, o livro "faz sentido, tipo Clarice Lispector". E, como dizia a escritora brasileira, "escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível", seja em palavras negras sobre papel branco, seja em 14 fragmentos ilustrados da mesma história.
Chris Ware
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