NONA ARTE
MEMÓRIAS DA BANDA DESENHADA
(XCIV – XCV)
O Louletano, 11 de Junho de 2007
O ARTISTA, O MESTRE, O COMPANHEIRO, O AMIGO - 15
Recordações de Tertúlia confidenciadas por José Ruy
(... Continuação)
Uma outra coisa que tivemos sempre em comum, eu e o Eduardo Coelho: o desprezo pelo dinheiro. À nossa volta, muitos estavam apegados a esse «vil metal»; uns tantos só corriam por «ele», e alguns «com ele». O E. T. Coelho tinha um trabalho entre mãos, e como estava a precisar de um par de sapatos, pensou comprá-los quando recebesse o dinheiro dos desenhos. Como era hábito, um dos amigos acompanhava-o, e ficou em baixo à porta, enquanto ele subia a entregar a obra.
O cliente gostou e perguntou-lhe quanto tinha a pagar. O Coelho sempre embaraçado nestas circunstâncias, pede um momento, desce até junto do amigo que o esperava na rua e pergunta-lhe por sua vez:
- Eh pá! Quanto custa um par de sapatos?
- Cento e vinte escudos, cem... - responde-lhe o outro.
O Coelho galga de novo as escadas, e ante o espanto do cliente, diz ofegante: - São cento e vinte escudos...
Mas sem dinheiro não podemos viver nesta sociedade. As Edições «O Mosquito» atravessavam uma fase crítica económica; o dinheiro vinha aos soluços para o pagamento do nosso trabalho, bem como dos ordenados dos colegas empregados na oficina. Nessa altura a principal fonte de receita do E.T. Coelho, era «O Mosquito», até porque a sua capacidade de produção estava praticamente absorvida por esse bi-semanário. O Cardoso Lopes propõe-lhe então:
- Porque não utiliza a própria editora e a sua oficina para realizar o dinheiro, e amortizar a nossa divida para consigo?
O Coelho pensou no assunto (a necessidade faz o engenho) e resolve editar um álbum 30 x 37,5 cms., com 6 «lâminas» de reproduções de outras tantas gravuras de Albrecht Durrer, artista que ele sempre admirou. Criou uma colecção com o nome ELMO e um logotipo que mostramos aos leitores. Mas como editor em Portugal, ficou-se por esta obra.
Frontespício da colecção Elmo e respectivo logotipo, editado por E.T.Coelho
O Mestre Rodrigues Alves deixou um dia recado ao Coelho para ir a uma certa morada, dirigido a um tal senhor, da sua parte. Só isto.
O Coelho bate à porta, e surge-lhe um sujeito alto, seco, que o fixou profundamente.
- Ah, é o senhor?! Entre! - disse, depois do Coelho se ter identificado como vindo da parte do Rodrigues Alves. Encontrou-se numa ampla sala despida de móveis, com o chão completamente acolchoado.
O locatário deixou-o só, para reaparecer momentos depois, acompanhado de um rapaz.
- Observe - disse o sujeito e agarrando o rapaz por um pulso, fez um golpe de judo obrigando-o a voltear no ar, estatelando-o em seguida nos colchões.
- É capaz? - perguntou voltando-se para Coelho. Este, depois da primeira surpresa que o tinha paralisado junto à porta, convenceu-se de repente que estava a ser vítima duma partida do Rodrigues Alves.
Respondeu:
Respondeu:
- Bem, eu tenho pouca ginástica... - e ficou à espera que o outro o atirasse ao chão ou lhe desse um golpe de «coelho».
- Eu falo dos desenhos! É capaz de apanhar o movimento? Vou repetir devagar. - E o mais lentamente que pôde, voltou a fazer o golpe. Aí o Coelho compreendeu o que se passava. O homem queria fazer um livro com lições de judo, pois era professor da modalidade, com desenhos que explicassem a sequência dos golpes. Tendo falado com o Mestre Rodrigues Alves, este indicou o Coelho, sem o prevenir do que se tratava. Estas situações eram frequentes. »»
Ilustrações de E.T. Coelho, publicadas no livro O Valor Moral da Educação Física, do capitão Alberto F. Marques Pereira, 1949
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O Louletano, 18 de Junho de 2007
O ARTISTA, O MESTRE, O COMPANHEIRO, O AMIGO - 16
Recordações de Tertúlia confidenciadas por José Ruy
Lembram-se os velhos leitores de «O Mosquito» que na aventura «O Caminho do Oriente», o jovem herói Simão Infante realiza em dada altura um golpe de judo. Foi influenciado pelo estudo a que estava obrigado, que o artista se lembrou de incluir a cena na história.
Sequência onde Simão Infante, o pequeno herói da aventura O Caminho do Oriente ensaia um arremedo de judo - publicado n’O Mosquito nº 904, de 21 de Janeiro de 1948. Nessa altura estavam fresquinhos os croquis do Coelho para o tal livro de judo
Este tipo de trabalho que resultou muito bem, fez o capitão Marques Pereira, professor de ginástica, solicitar ao Coelho ilustrações para os seus livros. O conteúdo dessas edições dirigia-se inteiramente à criança, sugerindo jogos e brincadeiras que resultavam afinal em movimentos de ginástica. Também colaborei nesses trabalhos, chegando a ilustrar todo um livro, onde as crianças imitavam o correr e o saltitar de certos animais, acompanhados com música também impressa, da autoria duma irmã do autor.
Uma dessas obras tem muito interesse. Eram parábolas da Bíblia ilustrada com dezenas de desenhos do Eduardo Coelho, tão expressivos quanto curiosos. E algumas tão difíceis como esta: «Vê melhor o argueiro no olho do vizinho do que a trave no seu próprio olho».
O director de um Instituto particular lisboeta com aulas nocturnas do curso comercial, pensou em realizar aulas de desenho artístico e desenho de letra. Sim, que a letra tem um curso próprio, e nada fácil por sinal. Precisamente o Rodrigues Alves era Mestre na Escola António Arroio da disciplina de desenho de letra.
Para o desenho artístico, iria leccionar o Coelho. Quantas vantagens para os afortunados alunos que se inscrevessem nesse curso... talvez hoje fossem mestres, com os sábios e natos conhecimentos do Artista. Mas... a iniciativa gorou-se, como tantas outras neste país. Não foi permitida autorização para o Coelho dar aulas, pois não tinha o curso da Escola Nacional de Belas Artes. Ele apenas tinha o curso comercial. Não se atendia ao que ele fazia e sabia. Atendia-se unicamente ao «canudo».
(Continua...)
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Baseado no conto de Eça de Queiroz
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