domingo, 10 de março de 2013

COM O "ZÉ DAS PAPAS": A "VEIA CULINÁRIA DE BORDALLO + A "SOCIEDADE SECRETA" DOS MAKAVENKOS



A “VEIA CULINÁRIA” DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO

Gazeta das Caldas, 1 de Março de 2013 

Referi, quando me ocupei do azeite de Alexandre Herculano, que este foi o responsável pela Real Biblioteca da Ajuda e das Necessidades.

Ficou registo de jantares, com outros grandes das nossas letras, na casa de função que ocupava junto ao Palácio.

São notas dos que participaram e que mostra a importância por eles dada ao convívio bem pensante e a que a degustação de iguarias servia de veículo.

Disso é documento bastante o “Cozinheiro dos Cozinheiros”, também já referido!

Essa dupla “função” revestiu ainda outras formas, também privadas mas mais alargadas e participadas, como foram as associações gastronómicas.

Nas suas “Histórias e curiosidades gastronómicas“ ao referir o associativismo gastronómico, que considera pouco expressivo, José Quitério evoca o Clube dos Makavenkos.

Fundado em 1884 – “essa academia de esturdios e bons garfos”, como lhe chamou Aquilino Ribeiro – por iniciativa de Francisco Almeida Grandella, e contou, entre os seus inúmeros membros, nomes como Rafael Bordalo Pinheiro. Só estas duas personalidades, da maior relevância por estas bandas, justificam largamente a curiosidade de qualquer um.

“Ficou definitivamente instalado nos baixos do teatro da Rua dos Condes (…). Reuniam às sextas-feiras, sem pompa, mas com a circunstância da constante presença feminina, a cargo de actrizes, cantoras e coristas. Não eram autorizadas discussões sobre política e religião – de resto, o leque de opções partidárias ia de extremo a extremo. Pelos estatutos era mesmo proibido aos ministros e a outras entidades frequentarem o Clube.

Com a data de 7 de Abril de 1904, Rafael Bordalo Pinheiro enviou, de Lisboa, a Paulo Plantier (o já referido editor do Cozinheiro dos Cozinheiros) a sua receita a que chamou eiróz do mar à patriota.
Confesso não ter dados que me permitam saber a razão do título dado à iguaria; talvez tudo se deva ao estado emocional da sociedade portuguesa, à época, ainda na ressaca do ultimato inglês e, vá-se lá saber, sob a “inspiração” dos versos de Afonso Lopes de Mendonça, letra do hino nacional…

A eiróz, essa presumo-a apanhada na lagoa de Óbidos. Não resisto, pela sua originalidade coeva, a passar-lhes a respectiva receita:

- Põe-se dentro de um tacho, não muito grande, uma chávena com o fundo para cima, enrola-se uma eiroz em volta da chávena, em seguida deita-se-lhe uma colher de vinagre quatro ou cinco de vinho branco, duas ou três colheres de manteiga, das de sopa, (assim como as anteriores), meia folha de louro, um dente d’alho, e bastante pimenta.

- Tapa-se muito bem o tacho, pondo-se-lhe em cima da tampa (ou prato que a substitua), um ferro, ou qualquer peso, para evitar que saia o vapor. Deixa-se ferver meia hora em lume brando, sacudindo de vez em quando o tacho, sem o destapar. Serve-se logo em prato coberto.

João Reboredo

Eiroses, aqui em primeiro plano, no mercado da Costa Nova.

 Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos 
edição Marginália (não confundir com a Marginália Editora do séc. XXI), de 1919, reeditada em facsimile em 1994 e edição da Colares Editora, em 2010.
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MAS QUEM ERAM, AFINAL, OS MAKAVENKOS

Não foi apenas esta prosa de João Reboredo, que nos colocou definitivamente na "pista dos Makavenkos", mas uma série de conversas que temos mantido acerca do livro Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos (cujas capas de duas edições - distanciadas por quase cem anos - colocamos acima). 

Acontece que a minha curiosidade sobre o clube dos Makavenkos (e também sobre essa personagem não muito conhecida actualmente, de nome Francisco Almeida Grandella) foi crescendo e encontrei algumas - muitas mesmo - prosas esclarecedoras. Uma delas, do nosso amigo David Soares (escritor e argumentista - e desenhador também -, de banda desenhada), no seu blogue Cadernos de Daath. Deixo aqui um pouco da prosa dele, que pode ser lida na totalidade no referido blogue AQUI.

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Uma sociedade para-maçónica que conviveu amiúde no Restaurante Abadia (além de continuar a frequentar os locais em que já se reunia, como as caves do Teatro Condes, em frente ao Palácio Foz - o jornalista e escritor Raul Brandão refere, a dada altura, nas suas Memórias que as caves do Teatro Condes foram o berço da queda do regime monárquico de D. Manuel II e a implementação da República) foi o excêntrico Clube dos Makavenkos: agremiação "gastronómico-filantrópica" à qual pertenceram, entre outros, o almirante Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, o médico Azevedo Neves, o pintor, ceramista e caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, o poeta e cronista Raimundo Bulhão Pato, o supracitado Rosendo Carvalheira e o empresário Francisco de Almeida Grandela, um dos fundadores do clube (em 1884).

A empresa (ou divisa) do Clube dos Makavenkos foi um punho fechado, acompanhado pelo mote da Ordem da Jarreteira - «honni soit qui mal y pense» -, e o seu patrono foi a personagem veterotestamentária Noé: célebre prior da vinicultura, tendo plantado a primeira videira pós-diluviana. De facto, foram íntimas as ligações de Grandela e de outros Makavenkos, como o vinicultor José Camilo Alves (da famosa marca de vinhos Caves Velhas), a lojas maçónicas das regiões vinícolas de Fanhões e Bucelas - alguns elementos das quais proclamaram a república no dia 4 de Outubro de 1910, nos Paços do Concelho de Loures (o proclamador foi Augusto Moreira Feio): um dia antes dela ser proclamada por Eusébio Leão na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Independentemente de outros significados simbólicos que possuam as videiras que adornam a Abadia, elas também consistem certamente numa evocação dessas ligações enológicas; talvez residindo no facto de Noé, patrono do clube, que no livro bíblico Génesis recebeu de uma pomba um ramo e folha de oliveira como prova de terra seca, a chave para interpretar a razão pela qual os cachos de uvas se apresentam com folhas de oliveira: são uma alegoria de, pelo menos, duas luzes, a das candeias alumiadas por azeite, que afastam a treva, e a proporcionada pelo domínio da natureza hostil através da vinicultura.

Foi Josué dos Santos, amigo de Grandela e cozinheiro (aparentemente, também fora saltimbanco e ilusionista), que "desvendou" na contracapa do livro Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos (publicado em 1919 pela Marginália Editora e escrito pelo próprio Grandela) a misteriosa origem do nome do clube: «"Makavenkos" eram um povo que existia aqui, no nosso país, e províncias vascongadas, vindo do Japão, das Ilhas Curilas, muito antes da civilização grega, antes do desaparecimento da Atlântida, e que tinham uma seita que professava uma espécie de culto pela mulher esbelta, mundana, com quem conviviam e protegiam aproveitando a mesma para fins de utilidade geral». Este resumo é, como é óbvio, satírico, mas seja qual for a sua origem, sabe-se que o nome Makavenkos foi adoptado como verbo pelos elementos do clube: era às sextas-feiras que esta sociedade "secreta" se reunia para as suas «makavenkadas» ou para «makavenkar».

A boémia dessas epícuras reuniões adquiriu contornos de anedotário, com descrições de danças desempenhadas por belas mulheres despidas, ao som de música tocada por instrumentistas de olhos vendados, e um gradiente generalista de libertinagem. Conhecido é o suposto lado revolucionário do clube (ou de alguns dos seus membros), já comunicado por Brandão, mas menos falado é o seu papel filantropo - subsidiado generosamente por Grandela, sob o qual foram realizadas todas as diligências para construir-se um sanatório para raparigas indigentes e tuberculosas em Cabeço de Montachique, com traça de Carvalheira. As obras foram interrompidas abruptamente em 1919, por culpa da crise económica provocada pela Grande Guerra à qual Grandela não foi imune. O imóvel foi então doado à Assistência Nacional aos Tuberculosos que não o desenvolveu.

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Francisco de Almeida Grandella


O Teatro Condes

Voltaremos, no próximo domingo, num Kofibraike especial, aos Makavenkos, a Francisco Grandella, ao Teatro Condes, etc...

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