sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Gazeta da BD #87 – HERÓIS DA BD PORTUGUESA #13 – A GUARDA ABÍLIA – de Júlio Pinto e Nuno Saraiva


Gazeta da BD #87 na Gazeta das Caldas
HERÓIS DA BD PORTUGUESA #13 
A GUARDA ABÍLIA
de Júlio Pinto e Nuno Saraiva 

(5 Janeiro 2018)


Para iniciar este artigo, não posso deixar de transcrever o texto descritivo inicial de Júlio Pinto que inaugura a banda desenhada A Guarda Abília – Uma Mulher de Fardas. Trata-se de uma verdadeira pérola na BD portuguesa:

“Filha de pais ausentes, nem por isso Abília deixou de ter uma infância feliz. O avô, republicano, socialista e laico, cedo a ensinou a dizer “carbonária”. A avó adormecia-a com maravilhosos discursos de Afonso Costa. E os bigodes eriçados de Buiça, na fotografia ao lado da sua pequena cama, velavam pela tranquilidade do sono da inocente. Os primeiros anos da vida de Abília decorreram assim, num cenário a que uma velha farda, romanticamente roída por sucessivas gerações de traças, dava o toque de perfeição final.

Era a heróica farda de um antepassado morto na campanha que um dia permitiria a trasladação dos ossos de Gungunhana para o Maputo. Foi com essa peça de vestuário militar, que Abília vestiu os primeiros amigos imaginários. Mais tarde, já na escola, o fascínio da pequenita por fardas continuou a manifestar-se. Aos 11 anos, fazia questão de oferecer amendoins à porteira (fardada) do prédio onde vivia. Aos 15 fornecia cerveja ao guarda-nocturno da zona. Aos 16 teve a sua iniciação sexual, logicamente com um bombeiro de Sacavém. Depois veio a universidade, a licenciatura em antropologia e o primeiro emprego, no departamento de alteração comportamental de clientes do BPL, o famoso Banco do Povo Livre.

Mas havia um vazio na sua existência, que nem a leitura de clássicos do nosso tempo conseguia preencher. Abília sofria do que certos lacanianos chamam “a angústia da farda ausente”. Até que um anúncio, um simples anúncio na TV, deu novo rumo à sua vida e lhe permitiu o início de uma bela carreira. Abília respondeu ao chamamento da farda e entrou para a Polícia da Felicidade Pública. Hoje é a agente mais popular da Esquadra dos Prazeres. O perfume das fardas dá-lhe ânimo para as ingratas tarefas no dia-a-dia.

Era Lisboa e chovia. Nos passeios da cidade, acotovelava-se a arraia miúda: correctores da bolsa, dealers, gestores de recursos humanos, um ou outro crítico literário, o incessante a-fazer do quotidiano endurecia as próprias faces talhadas para a ternura. Havia contudo um oásis de paz e serenidade, na confusão da urbe: a Esquadra dos Prazeres! (...)”

Mas logo na página/história seguinte, A Morte dos Paradigmas – não esqueçamos que cada página publicada no Independente, tinha um título – na Esquadra dos Prazeres, enquanto um guarda pergunta a outro, enquanto jogavam às cartas: “Não achas que o Levantado do Chão operou um corte epistemológico no percurso do Saramago?” A guarda Abília atendia uma chamada de “um caso de polícia”. O chefe da esquadra manda-a investigar. Qual não é o espanto da guarda quando, chegada ao endereço indicado pelo telefonema, lhe aparece um antigo professor dela na faculdade, Pleonasmo Farto Coelho (será preciso “traduzir” o nome?): “O que é que uma ex-aluna minha faz com essa farda vestida?”, pergunta-lhe ele. Na vinheta seguinte, às escuras, ela comenta: “Você está um bocadinho mais gordo, professor Pleonasmo...”

Parece-me que nesta série de histórias, a agudeza de Júlio Pinto, atinge um estágio supremo de mordacidade crítica nos argumentos que ele escreveu e que foram subliminarmente interpretados no desenho de Nuno Saraiva. Júlio Pinto morreria em 5 Outubro de 2000 – sarcásticamente, diria eu, precisamente no “dia da República”.

Esta série foi publicada no semanário O Independente, – tal como Filosofia de Ponta e Arnaldo, o Pós Cataléptico – entre Outubro de 1998 e Julho de 1999, histórias depois agrupadas em álbuns editados pela Contemporânea Editora entre 1999 e 2000 – ao que parece completamente esgotados.

Na minha opinião, Saraiva nunca mais conseguiria uma qualidade literária nas suas bandas desenhadas como na colaboração com Júlio Pinto, que foi, ao que parece o único argumentista com que aceitou trabalhar. Isto muito embora, ressalvando a qualidade de Tudo Isto é Fado, publicada semanalmente no semanário Sol.

Deixo aqui um pequeno excerto do texto crítico de Pedro Moura, publicado no seu blogue LerBD:

“(...) É bem possível que, no futuro, olhemos para trás e vejamos o papel de Nuno Saraiva como que ocupando um papel fundamental numa certa imagem de Lisboa. Uma das grandes desvantagens de existir apenas uma certa atenção crítica ou massificada para com BD existente em livros é colocar na sombra outro tipo de produções, como por exemplo a banda desenhada em jornal, a qual, não sendo de facto mais uma das colunas vertebrais desta disciplina, como o foi entre os séculos XIX e XX, não deixa de ter aqui e ali alguma presença. E no caso de Saraiva, uma presença de importância extrema. Afinal de contas, a sua produção tem atravessado décadas quase ininterruptas de uma média de duas páginas publicadas por semana em vários semanários, do Independente ao Expresso, e inclusive o Sol, de onde saem estas páginas reunidas em volume (Tudo Isto é Fado). E se algumas séries primitivas associadas aos jornais foram sendo reunidas em livro (Filosofia de Ponta, Arnaldo o pós-cataléptico, A Guarda Abília), muitas outras nunca encontraram esse poiso físico mais definitivo, e quase seguramente mais por responsabilidade do próprio autor, mais preocupado com a produção do passo seguinte, do que esse balanço e congelamento da forma através da colecção livresca...”

Os meus agradecimentos a Leonardo De Sá, que me conseguiu as digitalizações de algumas pranchas desta BD.









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