sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

CENTENÁRIO DE EDUARDO TEIXEIRA COELHO III

O KUENTRO NO CENTENÁRIO 
DE EDUARDO TEIXEIRA COELHO 
(4-jan-1919 – 2019)

ETCOELHO
A ARTE PARA ALÉM DA VIDA
(parte 2) 
Texto deJosé Ruy – no BDjornal #22 (Jan-Fev 2008)

Pedro Massano, José Ruy e Eduardo Teixeira Coelho.
No lançamento do livro A Arte de bem navegar: Navios europeus do Séc. XIV., de E.T.C. no Padrão dos Descobrimentos, durante o FIBDA de 1999.
Última presença do mestre no Festival da Amadora.

Eduardo Teixeira Coelho, além de várias bandas desenhadas completas inéditas, deixou algumas sem texto escrito mas contando uma história que quase não precisa de palavras. Foi fascinante para essa descoberta.

Sempre assisti aos seus esboços a lápis para a construção das pranchas, em traços muito ligeiros e suaves, parecendo que a grafite mal tocava no papel, deixando a definição dos detalhes para quando os cobria a tinta-da-china. Estes últimos originais estão tratados com um lápis vigoroso, completo, como que prescindindo da tinta tradicional, que mesmo assim aplicou pontualmente numa vinheta ou
outra. Algumas pranchas encontram-se cobertas a nanquim e completam uma história, ou noutros casos a narrativa ficou sem a parte final.

Mas o que mais me sensibilizou foi uma prova da sua humildade, da sua vontade de procurar fazer melhor, mesmo acima do muito bom. Considero uma sua última lição dirigida às novas gerações. Permito-me contar um episódio passado nos finais da década de 1940, que me parece definir melhor esta minha opinião.

E. T. Coelho, desde que começou a desenhar para as Edições O Mosquito, no início da sua carreira, não se poupava a esforços para melhorar sempre o que fazia. Muitos eram os desenhos que rasgava para recomeçar, numa constante busca. Isto apesar da vertiginosa produção a que era obrigado, pela saída do jornal duas vezes por semana.

Nessa época, muitos rapazes acorriam à mítica redacção do jornal para mostrarem, como eu, os seus incipientes desenhos e colherem um conselho. Certa vez, o ETC  fez um reparo para um erro no desenho acabado, da autoria de um jovem que por  sinal já publicava. Mas o rapaz retorquiu que, como aquele desenho já estava pronto, ia seguir assim. De futuro teria em atenção não repetir o 
erro. A partir daí, o jovem nunca mais apareceu. Ficara com certeza ofendido. 

O que encontrámos, eu e a Drª Cristina Gouveia, foi uma prova do espírito de ETC na busca da perfeição levado até ao extremo, mesmo no final da sua carreira. Em algumas dessas histórias que deixou em preparação, inéditas portanto, desenhou a primeira prancha duas vezes, contando o mesmo assunto com composições diferentes. Mas quaisquer delas estão boas, as cenas perfeitamente contadas, a sequência equilibrada e os desenhos perfeitos. Na prancha seguinte realizou três repetições, aproveitando uma ou mais vinhetas, mas redesenhando-as totalmente. 

E aí por diante. Ora quando um Artista da categoria de Teixeira Coelho, depois de ter atingido um nível de perfeição que todos reconhecemos, se dá ao trabalho de voltar atrás e repetir a mesma obra por duas ou três vezes, mesmo depois de acabada, é quanto a mim espantoso. 

Deixou uma história de ficção científica espacial iniciada. Tem apenas duas pranchas. Os centauros, expressivos e truculentos, raptando matronas, estão contemplados na sua selecção de temas, com estudos, muitos e vigorosos estudos. Outras são de carácter erótico, como as que desenhou sobre o Decameron, publicadas em Portugal pela Editorial Futura. 



Uma história com lobos ficou sem texto escrito. O método de trabalho do Mestre era peculiar. Idealizava uma história e esboçava-a em pequenos papéis, normalmente a lápis. Partilhava depois a ideia com a sua esposa, que por vezes ajudava com achegas, e transmitia-a então ao seu grande guionista em França, Jean Ollivier, que a partir daí elaborava um enredo, definindo as cenas e escrevendo o texto depois, em face aos desenhos já acabados. Era a mesma técnica que usava em Portugal, no jornal O Mosquito, com Raúl Correia. O trabalho não poderá ser completado, pois Jean Ollivier também faleceu entretanto. 

É sabido que uma História Quadrinhos precisa de um texto para poder ser publicada da, principalmente quando o autor deixou espaço em cada vinheta para o incluir. Em face ao ar pesaroso de Cristina Teixeira Coelho, lamentando já não ser possível reconstituir a história, ofereci-me para fazer um texto para aquele original. Tantos anos a acompanhar a obra de ETC, permitem-me poder fazer isso. Vejo o seu traço mesmo esboçado e entendo o que ele quer transmitir. 


Do mesmo modo como identifico a data de um seu original pelo suporte de papel que usou, a tinta que foi empregue ou o estilo de traço e técnica. Além disso sei do gosto que ETC sempre teve pelas histórias com lobos, como deixou escrito: 


À primeira vista poderá parecer que a maior parte desse espólio não terá possibilidade de publicação. Primeiro, porque as pranchas existentes não estão todas cobertas a nanquim. Segundo, pelo facto de algumas dessas histórias não estarem terminadas, já nem falando da falta do texto escrito. Mas um editor com vistas inteligentemente largas, pode tirar partido do estado em que essa obra se encontra. 

O lápis é suficientemente pujante para ser bem reproduzido, e esses originais reunidos em vários álbuns ou num único, acompanhados de um texto elaborado por um especialista no assunto, estou a pensar no Jorge Magalhães, em Leonardo De Sá, em Paiva Boléo ou em Dias de Deus, pode ter êxito junto do público. Será a edição póstuma de um grande autor que continua a deslumbrar os seus leitores, para além da vida. 

Do conjunto de obras que se encontram por ver a luz da estampa, estão duas que considero geniais. O texto é de sua esposa Gilda Reindl Teixeira Coelho. A primeira é sobre a História dos Dias da Semana, pois cada país nomeia-os de maneira sempre diferente. É o resultado de um trabalho de pesquisa de vários anos. Esse original está magnificamente ilustrado por E. T. Coelho, no seu melhor traço, com o texto escrito em francês. 


O facto de os desenhos serem realizados a preto e branco também facilita os custos da edição. Esta obra interessará a diversos países, e tem todas as condições para se fazer uma publicação conjunta e simultânea. 

Consultados uns editores na Itália, França e creio que na Grã-Bretanha, cada um foi dizendo que alinhavam na edição, desde que primeiro um outro desse o arranque. 

Teixeira Coelho e Gilda tentaram em Portugal. Telmo Protásio propôs-se logo editá-lo na Meribérica/Liber, mas esta, como se sabe, ficou um tempo depois sem condições de poder fazê-lo. A pedido dos autores, meus grandes amigos, fiquei fiel depositário dessa preciosidade e eu próprio fui consultando aqui outros editores. Depois de muito tempo de espera com respostas sempre adiadas indefinidamente, cheguei à conclusão que os editores têm pouco tempo disponível ou têm pouca visão. 

A outra obra é As Lendas dos Cavalos. Conta a história do equídeo através dos tempos, como símbolo, como componente de guerra e como ajuda de força e de locomoção ao ser humano. 
Para esta obra ficaram muitas notas escritas por Gilda Teixeira Coelho de onde se pode construir um texto e bastantes ilustrações de ETC. 


Nesta carta, refere-se o Artista às actividades de sua esposa Gilda: Acho pois importante dar a conhecer ao mundo este fabuloso espólio, através de exposições, dando oportunidade aos editores de se alertarem e publicarem o seu trabalho, não só o que já foi dado à estampa há muito tempo, mas principalmente este que fomos encontrar no santuário do seu ateliê em Bagno a Ripoli. 


A poucos quilómetros de Florença fica Lucca, a chamada Cidade da BD, que lhe atribuiu o célebre troféu Yellow Kid para melhor desenhador estrangeiro em 1973.  Tive também a oportunidade de visitar o Museu de BD de Lucca inaugurado há dois anos, com Cristina Teixeira Coelho, Giulio Benuzzi e a Drª Cristina Gouveia. Como é possível não haver aí uma exposição permanente de alguma prancha de E. T. Coelho? Ou em Angoulême, na França? Ou na Inglaterra, na Alemanha ou mesmo em Espanha, países para onde o Artista trabalhou durante tantos anos? 

Caberá ao Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora avançar sozinho com esse importante projecto? Para isso, é necessária a colaboração da família do autor, cedendo material inédito e objectos pessoais do artista que enriquecerá a mostra, e serão precisas verbas não recuperáveis, pelo menos directamente, pois os eventos desta Autarquia nunca têm fins lucrativos. 

A nossa deslocação permitiu tomar conhecimento do muito que ETC deixou de bom e importante nos seus últimos anos. Verificámos no local as suas relíquias que o mundo precisa de conhecer, como foi sempre o desejo expresso do Artista. As condições estão criadas. Falta o arranque. 

Depende de todos nós, pessoas de boa vontade e admiradores da obra de Eduardo Teixeira Coelho, e também de quem tem poder de decisão, não permitirmos que todo esse último acervo fique inerte e afundado num armário, sem condições de conservação, como num mausoléu. Pelo menos, os cerca de quatro mil originais de ETC que se encontram no Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem, na Amadora, estão bem tratados e protegidos contra ácaros, inundações, incêndios, humidade e a degradação produzida pela inércia dos humanos. E podem ser expostos ao público e observados por especialistas, num desejo expresso pelo autor, Eduardo Teixeira Coelho, em documento assinado por si.

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