quinta-feira, 28 de agosto de 2014

BDpress #429 (recortes de imprensa sobre BD): "SIN CITY" DE FRANK MILLER - O DESESPERO DA INJUSTIÇA ( J.Paiva Boléo no Expresso)


"SIN CITY" DE FRANK MILLER
O DESESPERO DA INJUSTIÇA 

ATUAL – Expresso, 23 de agosto de 2014 (2)
Texto: João Paiva Boleo

A série de banda desenha­da "Sin City" é constituida, até hoje, por seis graphic 'noir' novels e um conjunto de historias cur­tas reunidas em "Booze, Broads and Bullets"/"Balas, garotas e bebidas". Os sete livros foram publicados em Portugal pela Devir, em edições de excelente qualidade global, e representam de algum modo o coroar da obra de Frank Miller, figura-chave da intersecção do inesgotável uni­verso ficcional dos super-heróis com as renovadas tendências da BD simbolizadas nas chamadas graphic novels e em autores como Will Eisner. A sua aprendizagem e aperfeiçoamento, como autor completo e como argumentista, fez-se nos super-heróis, com mes­tres como Neal Adams, destacan­do-se, da sua vasta obra, a partici­pação em séries como "Daredevil/ Demolidor" e "Elektra", "Wolverine", "Ronin", obras de ficção po­lítica como "Give me Liberty" ou "Hard Boiled", a sua visão da Ba­talha das Termopilas em "300", etc, sem esquecer a sua colabora­ção para "Batman", em especial o referencial e influente "The Dark Knight Returns" de 1986, bem como, no ano seguinte com Da­vid Mazzucchelli, "Batman: Year One", carreira evocada, aquando da estreia do primeiro filme, no Expresso de 10/06/2005. Concentremo-nos, então, na BD "Sin City", iniciada em 1991 e que se desenvolveria por uma década, enquanto o autor se envolve cada vez mais no cinema.

"Com 'Sin City', de certa maneira houve um círculo que se fechou. Regresso ao tipo de material que mais desejava fa­zer quando comecei a trabalhar como profissional dos comics. Quando tinha 14 anos achava que as histórias do Mickey Spillane podiam dar 'fantásticas' bandas desenhadas. Apesar de ter demo­rado 21 anos para voltar ao ponto de partida, sentia que ainda não o tinha conseguido." (Frank Miller a Stanley Wiater e Stephen R. Bissette em "Comic Book Rebels: Conversations with the Creators of the New Comics", New York: Donald I. Fine, 1993). A primeira história longa, inicialmente ape­nas "Sin City", viria a chamar-se "The Hard Goodbye", óbvia re­ferência ao famoso romance de Raymond Chandler "The Long Goodbye".

Vingança. Corrupção, identi­ficada com a mentira. Acertos de contas. Confrontos entre grupos rivais. Máfia. Um mundo 'pós-ético' que está para lá do imoral e tudo empapa de amoralidade. Sa­dismo e perversão prepotentes. Prostituição. Injustiça que gera uma violência que é apenas um grito de revolta sem fé em qual­quer redenção social. Desespero. Desamparo. Um mundo sufocan­te. Mas também alguma amizade e solidariedade. E sempre a ilu­são, a necessidade, a esperança mitificada do amor.

O impacto e originalidade de "Sin City" vem de cruzar uma es­tética desenvolvida na renovação de alguns mundos e obsessões dos super-heróis (pairam postu­ras como as de Batman) com a tradição do film noir e do roman­ce policial hard boiled — título, recorde-se, da sua BD com Geof Darrow, da mesma altura do iní­cio de "Sin City" e que foi impor­tante para o desenvolvimento do seu trabalho gráfico.

Narrativa na primeira pessoa de um homem sofrido, da polícia ou da marginalidade, pois as duas (con)fundem-se, mas sempre sé­rio e 'justiceiro', Miller ora ado­ta um tom enfático e 'literário', intencionalmente pausado e por vezes mesmo redundante, ora nos oferece sequências 'mudas', ora prolonga a ação num eficaz equilíbrio entre narração e silên­cio, reforçados por um jogo teatralizado e contrastado de preto e branco (salvo simbólicas exce­ções) que aprofunda múltiplas in­fluências da BD 'de autor' (EUA, Europa, América Latina, Japão) e do cinema.

Mas Basin City, a "cidade do pecado", não é só um espaço urbano, é um universo dinâmi­co e coerente em que diversas personagens e histórias se en­trecruzam nos diferentes livros, renovando as perspetivas e apro­fundando a psicologia e biografia de algumas figuras, caso de Nan­cy. O importantíssimo univer­so feminino da série, aliás, está cheio de recorrências, e a pre­sença feminina, que é sempre o motor da ação, nada tem de gra­tuito, embora não exclua algum voyeurismo.

Não faltam, também, pisca­delas de olho, das grotescas per­sonagens Fat Man e Little Boy ('nome' das bombas atómicas sobre o Japão) a citações ciné­filas como "lie to me" ("Johnny Guitar"), mas alguma violência e sadismo não podem deixar de ser considerados por vezes excessi­vos. Miller, no entanto, considera a violência e mesmo a brutalida­de necessárias para obter o efeito emocional (e de denúncia?) pre­tendido. Pela sua maior densida­de humana e um mais consisten­te fio narrativo, escolheria como melhores os álbuns "A Dame to Kill For/Mulher Fatal" e "That Yellow Bastard/Aquele Sacana Amarelo".

As influências que assimilou e recriou com originalidade, tor­nando-se ele próprio uma refe­rência, dão a Frank Miller um lu­gar irrecusável na história da BD, mas aconselham também alguma distância crítica. "Sin City", com o seu impacto, mas também com alguns desequilíbrios, não tem, para dar só três exemplos de mes­tres do preto e branco, a riqueza e densidade de "Mort Cinder" (A. Breccia), "Corto Maltese" (H. Pratt) ou — e este influência dire­ta, até no nome — "Alack Sinner" (Munoz e Sampayo).


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