Gazeta da BD #65
16 Dezembro 2016
HERÓIS DA BD PORTUGUESA - 1
QUIM E MANECAS
DE STUART CARVALHAIS
Jorge Machado-Dias
Escrevem os organizadores do Colóquio, na nota introdutória:
“Desde tempos imemoriais, os grupos humanos têm criado heróis para neles projectarem a sua estrutura ética. Desde o semi-deus antigo ao héroi urbano pós-moderno, as configurações histórico-culturais da figura heróica apresentam-se múltiplas e variadas. Há, pois, heróis míticos, trágicos, cómicos, épicos, romanescos, picarescos, clássicos, tradicionais, modernos, contemporâneos, assim como anti-heróis e super-heróis. Numa palavra, o herói tem mil caras.(...)
Sendo dissidente, desertor, mestiço, pirata, missionário, repórter, viajante, sedutor, detetive, explorador, arqueólogo, justiceiro – estas e outras figuras heróicas, como seria expectável, encontram-se, no masculino e no feminino, em mitos, contos, romances, teatro, cinema, banda desenhada ou vídeo-jogos (...)”
Nas comunicações apresentadas, apenas duas delas analizam concretamente personagens da BD: Corto Maltese, de Hugo Pratt e o Barão Wrangel, de José Carlos Fernandes.
Para esta série sobre Heróis da BD Portuguesa elenquei doze personagens, começando por Quim e Manecas, de Stuart Carvalhais. Vejamos então.
Stuart Carvalhais (Vila Real, 1887 – Lisboa, 1961) teve uma formação convencional incipiente e foi, sobretudo, um autodidacta. Começou a trabalhar como pintor de azulejos em 1905 e depois de um curto período como repórter fotográfico, tornou-se num artista plástico multifacetado, fazendo carreira como pintor, desenhador, ilustrador, caricaturista, autor de BD e artista gráfico, dedicando-se também à decoração, cenografia e até ao cinema. Em 1911 foi um dos responsáveis pela revista humorística A Sátira e colaborou na fundação da Sociedade de Humoristas Portugueses, que teve como presidente Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (filho de Rafael Bordalo Pinheiro). Em 1912-13 viveu alguns meses em Paris, sobrevivendo precariamente, colaborando como ilustrador no jornal Gil Blas.
Embora republicano e mais tarde também antifascista, colaborou em 1914 no jornal satírico monárquico Papagaio Real, então sob a direcção artística de Almada Negreiros. Deu início à sua banda desenhada Quim e Manecas em Janeiro de 1915, considerada a série pioneira e mais longa da BD portuguesa, com mais de 500 episódios, nas páginas do suplemento humorístico do jornal O Século e depois espalhada por vários outros jornais e revistas, terminando em 1953.
Quim e Manecas são dois rapazes endiabrados, que brincam à solta pelas ruas e cujas acções têm sempre consequências imprevistas. Originalmente de cariz infantil, as histórias evoluem para a crítica de questões sociais e políticas. As narrativas assentavam nas partidas aplicadas pelos dois personagens sem olhar a quem, em que o gato ou o cão, os guardas republicanos ou os ‘talassas’, a Dona Leocádia ou os boches são algumas das vítimas, sempre com diatribes escolhidas a preceito.
Mas Stuart não reduziu as aventuras dos dois rapazes à chalaça das partidas, envolvendo-os nos acontecimentos que marcavam o país e o mundo quando, por exemplo, os faz prisioneiros dos alemães ou combatentes nas trincheiras dos Aliados, ou quando os coloca no cenário arruaceiro dos confrontos entre facções republicanas, ou mesmo quando os promove a inspectores dos serviços secretos, procurando resolver o Crime do Barreiro. Nestas acções, o autor dava-lhes voz para comentar, com o mesmo grau de interesse, os seus dissabores quotidianos de “rapazolas” e as grandes questões nacionais, através de uma parafernália de recursos verbais, que cruzam o calão popular de Lisboa com a suposta erudição do latim macarrómico, o jargão republicano com provérbios e adágios.
E depois há também as invenções de Manecas, momentos sublimes de delírio tecnológico, em que se cruzam a imaginação sem limites, com o seu quê de diabólico do personagem, com as possibilidades narrativas que cada maquineta permite. Veja-se o motor a gato-e-rato que resolve a crise do carvão e merece mesmo uma condecoração pelo próprio Afonso Costa, o avião transformado em cana de pesca que prende vários alemães pelo nariz ou a lupa gigante que incendeia Berlim.
O primeiro ciclo de Quim e Manecas conclui-se em 1918, uma semana depois do Armistício que põe fim à I Guerra Mundial, a série só reaparecerá com regularidade nos anos de 1930, com excepção de uma rara e curiosíssima passagem pela nova Rússia, incluindo mesmo um encontro com Lenine, logo em 1919, publicada em duas páginas do jornal Os Sports. Lembremos que Tintin só se dirigirá ao País dos Sovietes dez anos mais tarde...
A dupla Quim e Manecas foi recuperada pelo traço de Richard Câmara em 2010, para as Comemorações do Centenário da República Portuguesa. Em 2010 foi também publicado Quim e Manecas, 1915-1918, um volume organizado por João Paiva Boléo, contendo uma colectânea de pranchas desse período.
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FONTES
Comunicações do Colóquio Internacional – Figuras do Herói, na Literatura, Cinema e Banda Desenhada, que se realizou no Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho em Abril de 2012.
Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, Leonardo De Sá e António Dias de Deus (Época de Ouro, 1999).
Centenário de Quim e Manecas de Stuart Carvalhais, João Paiva Boléo (Conferência na Biblioteca Nacional, 30 de Novembro 2015).
Quim e Manecas à Conquista da Modernidade, Sara Figueiredo Costa (Revista Ler, Fevereiro 2011).
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