BDpress #470
O MESTRE DOS QUADRADINHOS
JOSÉ RUY É O ILUSTRADOR PORTUGUÊS
COM MAIS ÁLBUNS EDITADOS: 81.
MAIS DE METADE SÃO DE BANDA DESENHADA
Publicado no Correio da Manhã, suplemento Domingo, 20 Novembro 2016
Texto de Teresa Fidalgo
Fotos de Pedro Catarino
Começou a desenhar "garatujas" com quatro ou cinco anos.
Mas foi a primeira edição do mítico jornal de banda desenhada O Mosquito, que entrou em casa de José Ruy pelas mãos do pai, que fez nascer repentinamente “aquele fascínio por contar histórias aos quadradinhos”! Corria o ano de 1936 e José Ruy, o ilustrador português com maior número de álbuns publicados (81) e um dos maiores da banda desenhada nacional, tinha então apenas cinco anos e estava longe de adivinhar que aquilo seria o seu futuro.
O mítico jornal de banda desenhada custava então 50 centavos e os cinco mil exemplares de tiragem, consideravel para a altura, egotaram-se rapidamente. Tal como os números seguintes, que no auge chegaram a vender 80 mil exemplares e que marcaram a memória de varias gerações de adeptos da BD. José Ruy incluia-se nesse naipe de seguidores, até que em 1945, com apenas 15 anos, ele próprio foi tarnbem desafiado a sentar-se nos estiradores de O Mosquito. "Era preciso um rapaz para dar cor" e o então jovem aluno da António Arroio não hesitou em sentar-se ao lado dos mestres António Cardoso Lopes Júnior (conhecido por 'Tiotónio') e Raul Correia.
(Nota do Kuentro: O Mosquito começou a publicar-se em 14 de Janeiro de 1936)
Lá se iam os planos paternos para que cursasse arquitetura!
“O meu pai era da opinião de que o desenho e a pintura não davam nada. E efetivamente não dão. Mas dão muito gozo a quem tem o privilégio de poder fazer deles profissão”, admite José Ruy, rodeado de esboços e recordações no seu atelier na Amadora, cidade que o viu nascer (bem como a 'Tiotónio') e que, por causa deles, fez por se afirmar capital da BD. E como início das colaborações para O Mosquito e mais tarde para O Papagaio veio a mesada extra para comprar “melhor papel e tinta da china”. Melhor do que aquela de marca nacional, a Cisne, "que era cinzenta e não tinha opacidade e era dificil de ser captada graficarnente!”
Na António Arroio, onde foi discípulo do mestre Rodrigues Alves, especializou-se em Artes Gráficas, que viriam a providenciar-lhe o sustento durante décadas e décadas, ao mesmo tempo que em paralelo fazia banda desenhada para jornais e revistas.
Quando era menino exercitava furiosamente o traço. “Fiz milhares de desenhos, de estudos, desde a anatomia dos anirnais ao movimento das ondas do mar. Depois das aulas, ia para o jardirn zoolóico e desenhava as feras. Cheguei a assistir ao parto de uma leoa e depois desenhei todo o processo de crescimento de uma das crias. Isso permitiu-me ganhar uma grande versatilidade e facilidade no desenho.
Desenho tudo de uma forma muito rápida, sem grandes dúvidas ou hesitações. Quase nunca apago!” Essa velocidade de produção ainda hoje, aos 86 anos, o acompanha.
Continua a desenhar muitas horas por dia e, seguramente, muito mais do que aquilo que consegue editar. Também continua a sentir a urgência de acabar um desenho apertar-lhe o peito, tal como quando era criança “ou gerindo a vida conforme os desenhos. Se quero acabar um, almoço mais tarde. Ou então como primeiro, para depois poder dedicar-me só a ele” confessa.
Geralmente, é a mulher que tem de lhe bater à porta do atelier a lembrá-lo dessas coisas mundanas...
Até porque o privilegio de se poder dedicar somente à banda desenhada só chegou muitos anos de trabalho depois nas artes gráficas.
“Foi mais ou menos em meados dos anos 80, quando a Editorial Notícias me desafiou para trabalhar na BD a tempo inteiro.” Quando começou a trabalhar para a ASA, passou então a trabalhar no seu atelier a partir de casa, cujas paredes não deixam dúvidas quanto ao legado do homem que entre elas vive: estão forradas de homenagens, caricaturas, dedicatórias de carinho e admiração.
Nos últimos tempos, José Ruy conheceu, com os computadores, uma verdadeira revolução no seu trabalho.
Primeiro, estranhou-os, mas depois rendeu-se a eles.
"Eu era contra os computadores porque eliminavam postos de trabalho. Na gráfica onde trabalho, por exemplo, a máquina que antes tinha quatro pessoas para trabalhar, hoje precisa apenas de uma porque os corpos são comandados por computador”, começa por contar. Mas a filha lá o foi convencendo de que o PC iria perrnitir-lhe fazer "um trabalho mais limpo" e que, caso se enganasse, não teria de apagar tudo e começar do inicio. Perfecionista e rigoroso como é – assim o descrevem os pares – ,a perspetiva de melhorar a qualidade do produto final convenceu-o: "Logo a mim, que até ainda continuava a usar uma maquina de escrever Hermes Baby, que era do meu pai. Mas a verdade é que, de cada vez que me enganava, tinha de rasurar. Ou se caía um pingo de tinta a mais.” recorda.
Agora, José Ruy faz os esboços a carvão, passa os originais a tinta da china e depois digitaliza-os. “O computador permite-me ainda ampliar os desenhos e fazer retoques ou detetar imperfeições que nos escapam no papel e que na graftca nunca corrigem, porque eles naturalmente têm medo de mexer no desenho”, explica. Finalmente, chega a parte de colorir, que antes era feita a aguarela.
José Ruy conseguiu dar a volta à técnologia e formatá-la de modo a usar a sua "paleta própria" de cores.
"Por outro lado, como faço muitas sessões em escolas, também me facilitou a vida nas apresentações: dantes levava as fases do meu trabalho em diapositivos, hoje levo tudo em PowerPoint”. E os miúdos adoram. E brindam José Ruy com as mais inusitadas questões. “Um dos rapazitos, de nove anos talvez, pergunta-me a propósito dos Lusiadas porque é que ainda no compreendia bem aquilo. Expliquei-lhe que era algo que ia passar conforme fosse crescendo!”
Sinais que os tempos não perdoam e José Ruy viveu muitos ao longo da sua carreira.
Antes do 25 de Abril, por exemplo, tinha de ter muito cuidado. "Tinhamos a censura dentro dos jornais e o nosso objetivo era que as coisas não fossem cortadas. Portanto havia que ter cuidado. Lembro que uma vez, numa história do Fernão Mendes Pinto, pintei-o como um rapaz imberbe, quando o previsivel seria que ao firn de tantos meses no mar tivesse uma longa barba. Só que isso fazia lembrar muito os piratas norte-americanos... e não podia ser!“
Dos jornais de banda desenhada também já há muito que não há sinais. "Passou-se para o livro de BD, o que é mau para os autores. Nos jornais havia sempre os colaboradores de maior gabarito, os estrangeiros e, claro, os iniciados, como eu também comecei por ser. As pessoas compravam pelos grandes ou pelos que gostavam, mas ao mesmo tempo iam ficando a conhecer os novos. Com o livro já não é assim. Se não se gosta ou não se conhece, não se compra. Até porque é um investimento muito mais caro do que era um jornal”, lamenta.
SEMPRE A PRODUZIR
Aos 86 anos, José Ruy não tem vontade de abrandar. Um dos seus mais recentes livros foi a biografia em BD de Carolina Beatriz Ângelo, lançado na última edição do festival de BD da Amadora, com o apoio do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos.
Mas em abono da verdade, a história começou a nascer na ponta dos seus dedos há cinco anos, por sugestão da filha, Teresa Pinto, membro da Comissão pela Igualdade do Género. Estava-se perto do centenário da sufragista, cirurgiã e a primeira mulher a votar em Portugal. José Ruy investigou a sua vida para a poder fazer renascer nos quadradinhos, mas não se livrou da sina da própria Beatriz Angelo. "O livro demorou cinco anos a ser publicado por falta de um apoio na distribuição”.
Mas projetos nao lhe faltam. Tem prontos a sair um livro sobre a Ordem dos Templários, outro sobre as origens da cidade de Coimbra e está a terminar urna obra sobre a forma heróica como os habitantes da ilha do Corvo venceram os corsários com pedras de lava. Como usa sempre modelos vivos, viajou recentemente para a ilha, para poder transpor para o papel rostos de verdade.
Será mais um álbum a juntar aos outros 81 já no início de 2017. Mais um para imortalizar o homem e o artista.
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