quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A BANDA DESENHADA PORTUGUESA VAI A ANGOULÊME

  
Três cartazes do Festival de Angoulême deste ano.

ESTE ANO
A BANDA DESENHADA PORTUGUESA 
VAI A ANGOULÊME 
A 47ª Edição do Festival inicia-se hoje
30/1/2020 a 2/2/2020


BDpress #532 Recorte do artigo publicado no Público de 29/1/2020 

Texto de José Marmeleira

Duas publicações de e com autores portugueses estão nomeadas para o Prémio de BD Alternativa do festival francês que começa amanhã (30/01/2020). É uma notícia promissora que atesta a resistência de autores e editores.

Difícil e distante. Assim pode ser descrita a relação entre o Festival de Banda Desenhada de Angoulême (França) e Portugal. Se as esferas da cultura literária e das artes visuais reagem ao festival com indiferença, para a banda desenhada portuguesa Angoulême tornou-se um acontecimento longínquo, de difícil acesso.

Na edição que arranca amanhã, vislumbram-se, entretanto, sinais de mudança em tão carente cenário. É que o Prémio da BD Alternativa, atribuído desde 1982, acolhe este ano, entre os 37 candidatos, duas publicações portuguesas, a Pentângulo e a Ali Watched Over by Machines of Loving Grace. A decisão do júri será conhecida no dia 2 de Fevereiro e o vencedor receberá uma bolsa de 1000 euros e um convite para visitar a edição de 2021. É verdade que não é o galardão mais mediático, mas a visibilidade que confere aos trabalhos é inegável. Autores franceses hoje consagrados beneficiaram da projecção que o prémio lhes trouxe, antes de iniciarem uma carreira profissional consagrada à banda desenhada enquanto editores ou autores.

Quem sabe se esse futuro não aguarda alguns dos nomes portugueses? Jorge Nesbitt, um dos coordenadores da Pentângulo, entusiasma-se com a nomeação e a possibilidade de uma distinção: “É muito importante. Aparecer num festival como o de Angoulême permite abrir as portas da banda desenhada portuguesa à internacionalização. Esse é o nosso grande desejo, visto que o mercado português é muito limitado, não oferece grandes possibilidades à banda desenhada, em particular à mais autoral.”

A Pentângulo, que resulta de uma parceria entre o Ar.Co-Centro de Arte e Comunicação Visual e a editora Chili com Carne, inscreve-se precisamente nessa categoria, como aliás também a Ali Watched Over by Machines of Loving Grace. Trata-se de um universo que, diga-se, dois tipos de leitores tendem a não reconhecer. Tanto aquele que consome nostalgia, como aquele que sacode para um canto a BD são alheios à expansão multiforme da uma arte que se reinventará, recriando limites, contornos e narrativas.

É nesta realidade que os coordenadores da antologia All Watched Over by Machines of Loving Grace, Dois Vês (a autora prefere identificar-se com a sua assinatura artística) e João Carola se revêem e trabalham.

Vencedora do 6º concurso “Toma Lá 500 Paus e Faz uma BD”, organizado pela Chili com Carne, surge como exemplar dessa outra banda desenhada. "Da capa à paginação, passando pelo design, quisemos criar um objecto uno, pontuado pelos olhares e histórias de cada autor, com uma abordagem mais transversal", explica Dois Vês ao Público. "Grande parte das histórias não correspondem à banda desenhada convencional. São mais experimentais."

Com efeito, entre as referências dos dois editores (e autores) estão projectos à margem do mainstream, como a editora finlandesa Küs!, a revista francesa La Revue Dessinée, especializada em reportagens em banda desenhada, a ilustradora e autora Amanda Baeza ou outros nomeados, como o colectivo croata Komikaze e a própria Pentângulo.

A propósito, existem laços fortes entre as duas publicações nacionais.

Embora a All Watched Over by Machines of Loving Grace incida sobre a influência da cibercultura, da Internet e da inteligência artificial nas relações humanas, enquanto a Pentângulo não tem uma orientação temática, os trânsitos entre os dois títulos saltam à vista. Por exemplo, Dois Vês e João Carola estudaram no Ar.Co e participam no segundo número da Pentângulo e não é de mais lembrar a presença dinamizadora da Chili com Carne na figura de Marcos Farrajota.

Na periferia de uma arte

Outro aspecto aproxima os dois projectos: o desejo de reconhecimento por um trabalho feito dentro de um "nicho para nichos", escondido da luz pública, que o domínio da arte à partida lhes deveria garantir. Esse nicho ultra-especializado é em grande parte a condição marginal da banda desenhada em Portugal, pese embora o trabalho meritório de editoras e livrarias. Longe da atenção dos meios de comunicação e do público (do mais ao menos exigente), a banda desenhada só merece destaque se tiver a caução da literatura (por exemplo, em adaptações de obras), do assunto (quanto mais jomalistico, melhor) ou da personagem da BD (Astérix).

Tal menorização pode explicar a ignorância a que são votados os títulos nomeados para os principais prémios – alguns, obras notáveis como Préférence systeme, de Ugo Bienvenu, da Denoël Graphic, Clyde Fans, de Seth, da Delcourt, ou Berlin, City of Light, Book Three, de Jason Lutes, também da Delcourt.

Dito de outro modo: são, para a maioria de nós, verdadeiros desconhecidos.

Esta realidade é tanto mais empobrecedora quando a edição actual faz convergir nas exposições memória, experimentação e cultura pop, sem privilegiar uma ou outra direcção.

Há banda desenhada para todas as sensibilidades: a poética de Yoshiharu Tsuge, a infância de Derib, o mundo mágico de Luke Pearson, o pulp de Robert Kirkman (argumentista da série The Walking Dead), a fantasia iconoclasta e femínista da Nicole Claveloux, o absurdo de Antoine Marchalot, as fábulas de Edmond Calvo, a experimentação do projecto de Pierre Feuille Ciseaux, o humor de Catherine Meurisse (autora que escapou ao massacre do Charle Hebdo).

Esta apresentação podia continuar com menção a conferências, encontros (com Charles Burns, Seth, Posy Simmonds, Sansuke Yamada, entre outros), oficinas, mas o que importa reter é que no que respeita à banda desenhada somos irremediavelmente periféricos (ao contrário da Espanha e do Brasil).

Ora é contra essa exclusão, por vezes auto-imposta, que a Pentângulo e All Watched Over by Machines of Loving Grace se afirmam, dando a ver e a ler histórias e desenhos de Francisco Sousa Lobo, Daniel Lima, André Pereira, Francisco San Payo, Sara Boiça, Amanda Baeza, Ana Maçã, Dois Vês, Cláudia Salgueiro, Cátia Serrão ou João Carola.

"A ilustração portuguesa tem dado passos importantes no sentido da internacionalização, com o Bernard Carvalho, da Planeta Tangerina, ou a Catarina Sobral", recorda Jorge Nesbitt. "Têm mostrado o seu trabalho em certames internacionais e recebido prémios. O desejo é que isso também possa acontecer com autores de banda desenhada."

As expectativas de Dois Vês e João Carola afinam-se pelo mesmo acorde: "Só a simples nomeação já foi muito positiva, pois pode trazer mais olhares para o que fazemos. Se vencermos, vamos poder estar no próximo ano em Angoulême, trocar contactos com outros autores, expor o nosso trabalho a uma audiência mais alargada. Seria uma recompensa para dois anos de trabalho."

Com ou sem prémio, a banda desenhada portuguesa vai estar em Angoulême, à procura de uma luz mais intensa e acolhedora. Talvez daí, possam nascer outras histórias.

A ilustração portuguesa tem dado passos importantes no sentido da internacionalização. O desejo é que isso também possa acontecer com autores de banda desenhada.  Diz Jorge Nesbitt – Coordenador da Pentângulo


Da esq. para dir.: Maridos de Rosa Francisco; Problemas de Coleccionador de Ana Dias; Veneza de Francisco Sousa Lobo.


Banda desenhada de Francisco San Payo; banda desenhada de Rodolfo Mariano; Le Petite Mort de Mathieu Fleury. Todas Pentângulo


Banda desenhada de Ana Maçã, da Ali Watched Over by Machines of Loving Grace
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FOTOS DE EDIÇÕES ANTERIORES 
DO FESTIVAL DE ANGOULÊME







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