quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

BDpress #226: O REGRESSO EM PLENO DE QUIM E MANECAS – ENTREVISTA COM JOÃO PAIVA BOLÉO

Diário Digital, quarta-feira, 9 de Fevereiro de 2011

O REGRESSO EM PLENO DE QUIM E MANECAS

Texto: Pedro Justino Alves

«Quim e Manecas 1915-1918 Stuart Carvalhais», organização, introdução e glossário de João Paulo de Paiva Boléo, é um dos livros que ficam das Comemorações do Centenário da República. Editado pela Tinta da China, esta obra é obrigatória para os amantes da BD nacional e mundial, mas não só, já que todos deviam conhecer em pormenor a obra de um português que encantou e fez reflectir milhares de pessoas com o seu traço, a sua sátira e as suas opiniões.

João Paulo de Paiva Boléo reuniu cerca de duas centenas de pranchas das «Aventuras de Quim e Manecas», dois miúdos lisboetas que aos poucos vestiram o papel de heróis nacionais, mas também internacionais, já que participaram com enorme coragem na I Guerra Mundial. Com uma edição cartonada de grande formato, nada falha nesta obra, já que João Paulo Paiva Boléo, um dos maiores especialistas em BD portuguesa, contextualiza num belo texto a importância dos traços de Stuart Carvalhais. O autor apresenta inclusive um glossário fundamental que ajuda o leitor a compreender algumas das referências da época. Sem dúvida, um livro obrigatório em qualquer biblioteca…

O centenário da República foi fundamental para a concretização desta obra?

Foi, sim, porque se não fosse o patrocínio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República nenhuma editora se teria abalançado a esta edição, necessariamente dispendiosa. E é de facto a mais importante BD portuguesa da I República e relacionada com a I República. As Comemorações (de que alguns «bem pensantes» gostam de dizer mal, mesmo que delas também beneficiem de algum modo) têm sempre o mérito de congregar vontades e possibilitar ou estimular a produção de obras que de outra forma não se realizariam. E em total liberdade intelectual.

E como surgiu o convite da Tinta da China? Ou foi o contrário?

A Tinta da China surgiu como uma das poucas editoras com provas dadas para poder realizar com qualidade uma edição difícil e exigente como esta. Foi uma escolha da Comissão com a concordância das restantes partes envolvidas, ou seja, o CNBDI (Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem) da Amadora e a minha pessoa, a que a editora aderiu com entusiasmo. Eu fui convidado pela Comissão (através da Prof.ª Fernanda Rollo) por sugestão da directora do CNBDI, Dr.ª Cristina Gouveia. E já agora também é justo realçar todo o apoio e disponibilidade da família, na pessoa do Engenheiro Mário Stuart.

Quais dificuldades teve para a realização deste trabalho?

Muitas, difíceis de resumir. Desde logo as primeiras 75 pranchas pertencem à fase grande do Século Cómico que é muito rara e de difícil acesso. E para lá da sua reprodução eu tive que reler a série várias vezes para o trabalho introdutório. Por outro lado, nem toda a bibliografia é de fácil acesso e a obra de Stuart encerra algumas dúvidas, lendas e mistérios. Outra dificuldade não menos desafiante foi a minha ideia («ousada» para um não historiador) de um glossário para ajudar a contextualizar uma série de referências nem sempre fáceis de descodificar, e algumas ficaram mesmo em aberto. Outro tipo de dificuldade esteve na conjugação dos vários «actores» e na excessiva demora de algumas tomadas de decisão.

Claro que depois houve também questões técnicas, na sua maioria bem resolvidas, num caso ou noutro nem tanto. Convém não esquecer que se trata essencialmente de fac-simile, e que às vezes o próprio «original» (isto é, o Século Cómico, pois desta época não há verdadeiros originais da série) tinha defeito, ou a falta de uma letra, ou uma impressão menos boa, etc. Aproveito, aliás, para chamar a atenção para um lapso. O formato do livro é um «meio termo» entre O Século Cómico grande e o pequeno, digamos mais ou menos entre A3 e A4. Ora, no final diz-se que em ambos os casos houve redução, quando a partir da prancha 76 (página 114) houve uma pequena ampliação e não redução.

Defende que as «Aventuras de Quim e Manecas» foi uma das mais importantes da Europa, algo desconhecido pelo grande público, inclusive pelos amantes da BD, muito virados para a BD franco-belga. Como justifica isso?

Outra questão que nos levaria longe. O que não está escrito em inglês cada vez mais «não existe» internacionalmente. E no que à BD diz respeito isso ainda é verdade também em relação ao francês. Por outro lado, os franceses (e belgas) são muito zelosos dos seus pergaminhos e não gostam que os «outsiders» se intrometam com precursores que lhes possam «fazer sombra». É ver a coisa como um «campeonato», o que é provinciano e ridículo, mas os seres humanos (com excepções, claro) são muito assim. Por outro lado, a circulação das formas é algo de aleatório e complexo. Quando se fala a propósito do Quim e Manecas da data aqui em causa (1915) em missing link ou chaînon manquant, o elo que falta entre a BD norte-americana e a europeia é simbólico, porque não se sabe se por exemplo o Alain Saint-Ogan, que em 1925 (10 anos depois!) criou o Zig et Puce conheceu o Quim e Manecas, e é provável que não, enquanto que é sabido que o Zig et Puce foi fundamental para Hergé – daí que já tenha visto chamar chaînon manquant precisamente ao Zig et Puce, mas neste caso no contexto francês. Só que as obras não devem deixar de ter uma leitura autónoma na data e contexto em que são realizadas. E embora houvesse coisas muito giras anteriores em França e noutros países, como Portugal, ninguém fazia em 1915 na Europa BD com a qualidade e a modernidade desta série de Stuart, e numa quantidade que está para lá da curiosidade anedótica. É mesmo uma grande obra. Só nos Estados Unidos se fazia mais e melhor. Daí que eu diga que em matéria do tal «campeonato» é pena que Stuart tenha abandonado os balões ao fim de cerca de uma trintena de páginas, mas isso não afecta o seu valor global. Mas é preciso ler mesmo para se poder formar opinião - e agora qualquer um pode fazê-lo, dantes só os investigadores nas principais bibliotecas (e mesmo isso com cada vez mais restrições). Mas atenção: leia-se com o mesmo olhar com que se lêem outras obras da mesma época, não é com dez vezes mais exigência.

Claro que mesmo quando houver (se houver algum dia) uma tradução francesa e outra inglesa deste livro, mesmo assim vai levar muitos anos a «impor» Stuart junto da Intelligentsia que «manda» na história da BD europeia, mas deu-se um primeiro passo decisivo, pois para uma primeira abordagem basta olhar de boa fé.

Numa selecção informada das grandes BDs europeias (como a exposição patente em Bruxelas neste momento, Trésors de la BD Européenne), não deveria deixar de figurar Quim e Manecas. Mas atenção, eu aqui sublinho mais a qualidade do que ser preponderante, que isso na Europa não foi, por desconhecimento e razões de peso cultural do país. Em Portugal sim. Quim e Manecas foi um grande sucesso, marcou gerações de muitas formas, percorreu, embora sem o esplendor inicial, várias décadas, é uma referência, como se costuma dizer, incontornável. Embora tenha sempre permanecido uma obra pessoal. É como que o ex-libris de um dos nossos maiores artistas gráficos, com uma obra imensa, muito acarinhada mas no fundo a precisar de mais atenção. Repare que, por exemplo, na exposição patente no CCB e que privilegia a BD portuguesa depois do 25 de Abril, estão dois mestres do passado, Rafael Bordalo Pinheiro e Carlos Botelho, mas Stuart está ausente. E no entanto um autor presente (Richard Câmara), no contexto precisamente do Centenário da República, fez uma recriação modernizada do Quim e Manecas.

Como foi a relação do público com as «Aventuras de Quim e Manecas»? Era uma BD aguardada com alguma expectativa?

Todas as fontes e todos os depoimentos apontam nesse sentido. O filme perdido de 1916, o merchandising, os diversos produtos derivados, o jogo, bolachas, etc., as referências nos jornais, a presença, por exemplo, na importante BD de Cottinelli Telmo em 1920, tudo indica que o sucesso e a popularidade foram enormes, era uma série acompanhada, querida, e que passou a ser referência em diversos contextos sociais.

Uma das primeiras curiosidades ao lermos as pranchas é termos balões de falas nas pranchas e, posteriormente, caixas de textos tradicionais? Porque essa mudança? Não foi precisamente o «movimento» contrário que se verificou um pouco por todo o lado?

Naquela época na Europa (ao contrário dos Estados Unidos) os pedagogos eram contra os balões. Em diversos países e publicações importavam-se BDs norte-americanas a que tiravam os balões e punham textos (muitas vezes em verso) por baixo. Não se sabe exactamente o processo que levou ao fim dos balões no Quim e Manecas, mas com atenção percebe-se que foi com alguma relutância que Stuart os abandonou, pensando-se que terá havido influência dos pedagogos (ou das ideias pedagógicas) através de responsáveis ligados ao jornal, e nomeadamente Acácio de Paiva, autor de muitos dos textos e director do Século Cómico. O «movimento», como diz, só se verificaria mais tarde, e aí Saint-Ogan e depois Hergé teriam na Europa um papel fundamental.

Mas era normal em 1915 termos balões de falas nas BD?

Como já vimos, não. Os balões só se imporiam na Europa na década de 30, o que dá às primeiras pranchas de Quim e Manecas, desde logo nesse aspecto, um valor incomparável.

Pode-se catalogar as histórias criadas por Stuart Carvalhais? Por exemplo, a I Guerra merece destaque nas suas pranchas. Há outras «tendências» mais explícitas?

Suart era por natureza «incatalogável». Para não me alongar diria que é uma BD republicana por excelência, mesmo que isso já não seja tão óbvio em relação ao próprio Stuart.

Os valores da recente República foram excessivamente transmitidos através das pranchas? Considera as mesmas de certo modo políticas?

O facto de ser verdade que esta BD não é só (e talvez nem principalmente) para crianças não lhe tira o cariz de «brincadeira» (no melhor sentido), de sátira, de peripécias várias que jogam com várias aspectos e vários estímulos da sociedade, cinema, arte, aspectos sociais, etc., e claro, a Grande Guerra. De modo que muitas pranchas podem ser consideradas políticas (algumas mais directamente, outras mais subtilmente), mas não no sentido de fazer doutrinação (como fazia, por exemplo, na mesma época, Manuel Monterroso na Montanha para as Crianças, no Porto), mas ou como defesa de questões de fundo ou, inversamente, como sátira.

Apesar de ser um confesso republicano, Stuart Carvalhais acaba por questionar alguns dos valores da República. Esta dicotomia acaba por mostrar a sua independência?

Não sei se Stuart era um confesso republicano, mas é natural que ele tenho seguido o caminho de muitos – esperança e desencanto. As eventuais (e aparentes) contradições confirmam de facto a sua independência. Stuart era um homem livre, crítico, com uma efectiva solidariedade, que foi vivencial, pelo povo e pelos deserdados, e isso sobrepunha-se a posicionamentos políticos mais esquemáticos.

Nas últimas pranchas já há a preocupação de criar alguma expectativa no público, as histórias têm sempre continuação. Essa mudança deveu-se a quê?

Não é só no final – a primeira história de continuação (que começa no Século Cómico grande e acaba já no pequeno, ainda estamos em 1916) é o «Pé Fatal», paródia aos filmes em episódios muito populares na época. A criação da série não tinha um planeamento muito elaborado e a extensão dependia das temáticas que iam sendo criadas e convocavam episódios mais curtos ou mais longos, alguns relacionados com acontecimentos recentes. Podem realmente detectar-se vários ciclos.

Como qualificaria as invenções de Manecas na obra? Com o tempo, principalmente com o decorrer da Guerra, ela acaba por ser preponderante na trama, tornando ela própria uma «personagem». Ou não?

Manecas, que só é «bebé» no bibe, e que no fundo não tem idade, é de facto o grande herói da série, a grande e principal «personagem», muito mais do que o Quim.

Trata-se de uma grande inventividade que é de Stuart e é também do contexto. Para não ir mais longe, pois já havia ideias fantásticas dessas em autores de BD e cartoonistas, nomeadamente ingleses e norte-americanos, o que não tira originalidade e pessoalidade a Stuart, valia a pena fazer um trabalho sistemático de análise da Ilustração Portuguesa (onde o Século Cómico foi integrado a partir de Julho de 1916) no que se refere a engenhos e engenhocas presentes na I Guerra Mundial, e mesmo criações imaginosas de artistas estrangeiros, e confrontá-los com o Quim e Manecas. Esse progresso técnico, entre criações arrojadas e outras absolutamente bizarras, era extremamente estimulante para um artista vivo e imaginativo como Stuart.

Qual a invenção que mais admira?

Boa pergunta! Tinha que fazer um catálogo das invenções (o que também era uma boa ideia). Gosto muito da pesca dos alemães, por exemplo, na página 124 do livro, ou os alemães apanhados nos sapatos marítimos pelos laços (página 202), mas a que me impressiona mais é talvez a das lupas colossais que põe Berlim a arder, pela verosimilhança e pelo lado premonitório (página 152).

E a prancha que mais aprecia em termos estéticos? E de história?

Há montes, claro, mas escolheria duas ou três. Partindo do livro, as páginas 61, no fundo do mar, e 80, que conclui no zimbório da Estrela, o episódio de Quim na guilhotina (110-111), o belíssimo ciclo em várias cores nas páginas 114-119, o Gil Goes (173), enfim... Quanto a histórias, além do «Pé Fatal», sei lá, as ruas de Lisboa, o ciclo das profissões, a célebre prancha (página 57) que começa em francês e acaba em italiano, e que antecede uma semana sem história porque o autor não sabia como safar os heróis (!), e, claro, as invenções e os combates com os alemães.






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Curiosidade (Pedro Cleto in As Leituras do Pedro):
- Quim e Manecas foram escuteiros uma década antes de Totor, foram ao País dos Sovietes uma década antes de Tintin…
- Quim e Manecas protagonizaram um dos selos de correio da emissão filatélica "Heróis Portugueses de Banda Desenhada":

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As imagens são da responsabilidade do Kuentro
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