sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

BDpress #319: BLANKETS – CARLOS PESSOA NO ÍPSILON – JOÃO MIGUEL LAMEIRAS NO DIÁRIO AS BEIRAS


 Público, suplemento Ípsilon, 20 Janeiro 2012

AMÉRICA NO DIVÃ

"Blankets" é, simultaneamente, o relato de uma iniciação e um mergulho na América profunda, com as suas aterradoras zonas de sombra.

Carlos Pessoa

Blankets
Craig Thompson (Trad. Devir), edição Devir

Oito anos depois de ter sido publicado nos Estados Unidos, "Blankets" tem a sua primeira edição portuguesa. É um longo romance gráfico (quase 600 páginas) assinado por Craig Thompson, artista americano nascido em 1975 no estado do Michigan. A obra, muito premiada na Europa e na América, filia-se no género autobiográfico, que caracteriza uma geração de jovens autores, nomeadamente do universo anglo-saxónico, discorrendo na primeira pessoa sobre a infância e adolescência das personagens. O editor francês deste livro apresenta-a, com justiça, como "a história de um jovem adolescente preso na armadilha da sua infância, da qual tenta desembaraçar-se para entrar no mundo adulto".

Publicar em Portugal um livro como este, volumoso e necessariamente caro, é um acto de coragem editorial que se saúda. Mas quem o adquirir não tem motivos para se arrepender, pois a edição é muito cuidada e está muito bem impressa.

A atmosfera familiar e social do protagonista edo seu irmão Phil está saturada de religião - no Wisconsin profundo, onde decorre a acção, é predominante o movimento religioso de inspiração evangélica "Bom Again Christians", que o próprio Thompson caracteriza como "fundamentalista de direita". A propagação da fé e a defesa da ordem estabelecida vão a par da condenação da sexualidade antes do casamento e da estigmatização da Homossexualidade, que são traços marcantes de uma sociedade opressiva e intolerante.

À descrição, serena e distanciada, desse ambiente envolvente, marcado pela ausência de intimidade, presença tutelar dos pais, acção moralizante da escola e práticas aviltantes dos colegas, Thompson contrapõe a pulsão libertadora do desejo e a descoberta tacteante do amor por parte do protagonista e de Raina, também ela oriunda de uma família branca e cristã, em desagregação. Mas quando ele diz que o conhecimento do outro é "excitante" e que há "tanto por descobrir", ela contrapõe: "Tudo degenera, desaba, então porquê, logo à partida, nos incomodarmos a começar?"

Apesar dos diferentes estádios de entendimento e de maturidade, os dois jovens descobrem juntos o poder transformador das situações fusionais por que passam, tornando-lhes possível a experiência da unidade sublime de todas as coisas. Escreve Thompson: "Ambos sabíamos que nada existia para nós forado momento."

Poderia dizer-se que nada do que o autor descreve está fora da dimensão "terapêutica" do seu próprio percurso individual, partilhado com os leitores nesta obra. Essa aventura única e irrepetível desenvolve-se entre a explicitação dos terrores infantis e a vivência da magia dos lugares e objectos, e também entre as cumplicidades solidárias e profundamente afectivas e a descoberta controladamente exaltada do primeiro amor adolescente.

Já não seria pouco, mas há muito mais do que o mero voo sobre a vida dos dois jovens. "Blankets" é, para lá da exploração diligente dos terrenos da subjectividade, um magnífico exercício de observação, perspicaz, lúcida e sensível, da América profunda, com as suas zonas de sombra e monstruosidades aterradoras.

No final da viagem em direcção À idade adulta, Craig é alguém que cresceu, e muito, capaz de olhar com outros olhos para o que o rodeia, a começar pelo próprio irmão. A ruptura com o quadro educacional e existencial de referência é dolorosa, mas necessária. O distanciamento em relação aos pais é inexorável e a sua relação com Raina termina. Ames de seguir em frente, o jovem queima tudo o que ela lhe tinha dado, sugerindo assim que só o fogo purificador pode eliminar as memórias fantasmáticas, esse resíduo letal da existência humana. Um manto de neve cai então sobre o protagonista, as árvores e a terra na última imagem da história.

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Diário As Beiras, 28 Janeiro 2012

BLANKETS FINALMENTE EM PORTUGUÊS

João Miguel Lameiras

Quase ao mesmo tempo que “Habibi“, o seu último livro saia nos EstadosUnidos, chegava finalmente às livrarias nacionais, a edição de “Blankets”, a obra que deu fama a Craig Thompson, aquando da sua publicação original em 2003.

Como mais vale tarde do que nunca, Blankets aqui está em português, numa bela edição em capa dura da Devir, que assim abre da melhor maneira a colecção “Biblioteca de Alice”, dedicada à Banda Desenhada de Autor.

Belíssimo livro de quase 600 páginas, “Blankets” é uma história de amor e um relato autobiográfico sincero de uma infância vivida no Wisconsin, no seio de uma família fundamentalista cristã, em que o peso da religião e a noção de pecado estão sempre presentes, condicionando a vocação artística do autor, que chegou a queimar todos os seus desenhos de infância, por achar que a sua arte o afastava de Deus e da salvação…

Mas, mais do que a infância de Thompson num meio ultra-conservador, na América profunda, “Blankets” gira em torno da sua história de amor com Raina, uma rapariga que conheceu numa colónia de férias e que lhe oferece a manta de retalhos (blanket) dá nome ao livro. É esse primeiro amor, sempre inesquecível, que Thompson recorda em belíssimas sequências, muito bem contadas e magnificamente desenhadas. Mais do que um grande narrador, Thompson é um formidável desenhador, que alterna com elegância entre os registos realista e caricatural, explorando muito bem todas as potencialidades do preto e branco, através de um traço de grande dinâmica e elegância.

A vontade de homenagear Deus e as suas criações (pois como bem lembra, Roger Vadim, num filme com Brigitte Bardot, “Deus criou a mulher”…) fazem com que Thompson gaste quase 600 páginas a contar uma história que podia perfeitamente contada em menos de 100, caso se abdicasse do ritmo contemplativo e da hábil gestão dos silêncios que ajuda a que nos concentremos na contemplação do desenho.

E a verdade é que estas quase 600 páginas se lêem de um fôlego e com grande prazer!

Vencedor de vários Prémios Eisner e Harvey nos Estados Unidos, aquando da sua publicação original, “Blankets” é, (a par com “Emigrantes”, de Shaun Tan) o melhor livro de BD publicado em Portugal em 2011 e, naturalmente, um livro altamente recomendável para todos os leitores.

(“Blankets”, de Craig Thompson, Devir, 594 pags, 35 €)


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 Craig Thompson

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