quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

BDpress #347: ANIMAÇÃO PORTUGUESA ANDA DESANIMADA


Salteadores, de Abi Feijó

A ANIMAÇÃO PORTUGUESA
CHEGA A HOLLYWOOD
MAS ANDA DESANIMADA

 Cultura, Público, 2 Fevereiro 2013 

Cinema de animação 

Kali, o Pequeno Vampiro, de Regina Pessoa, está hoje na gala da animação em Los Angeles, e vai depois ao festival de Clermont-Ferrand. Mas os tempos são de crise generalizada nas artes dos desenhos animados em Portugal. 

Sérgio C. Andrade 

Regina Pessoa (n. Cantanhede, 1969) não vai poder acompanhar hoje [2 de Fevereiro], no Royce Hall de Los Angeles, a exibição do seu Kali, o Pequeno Vampiro, um dos oito nomeados, na categoria de curta-metragem, para a 40.a edição dos Annie Awards, os principais pré­mios da indústria do cinema de ani­mação de Hollywood. E confessa-se "um bocado triste" pela ausência, motivada pela falta de apoios para a viagem. Não tanto porque acredi­te que tenha hipóteses de vencer a estatueta-praxinoscópio - "estar no­meada já é muito bom para o meu trabalho", disse a realizadora, que vê na produção dos Estúdios Walt Disney Paperman, de John Kahrs, o previsível vencedor nesta categoria -, mas pela experiência que tal via­gem acrescentaria à sua vida.

"Estes prémios são normalmente uma forma de Hollywood valorizar a sua própria indústria", diz Regina Pessoa, que, com o seu último filme - e depois de já ter estado na pré-corrida para os Óscares com o anterior, História Trágica com Final Feliz (2005) -, meteu, assim, uma lança portuguesa na terra da animação. 

História Trágica com Final Feliz - capa do livro.

Kali, o Pequeno Vampiro

Em contrapartida, vai ver Kali, o Pequeno Vampiro ser exibido sete ve­zes no Festival de Curtas-Metragens de Clermont Ferrand, em França, ini­ciado ontem [1 de Fevereiro], e onde é o único filme português em competição. E subi­rá depois até Lille e Bruxelas, com passagem pelos arredores de Paris, onde apresentará em Gentilly, dia 5, uma exposição sobre a produção e realização da história do seu peque­no vampiro.

O mediatismo conquistado pelo filme - estreado no IndieLisboa do ano passado, e já premiado nos importantes festivais de Hiroxima e de Chicago - contrasta com o quadro de crise aguda na animação em Por­tugal. Uma situação que não é mais do que a extensão, a este domínio, da crise que afectou a produção ci­nematográfica em geral, e que só nestes últimos dias tem visto abri­rem-se perspectivas, com o lança­mento dos concursos para os apoios para o corrente ano, e o desbloquea­mento dos subsídios ainda relativos a 2011 - porque 2012, como se sabe, foi um "ano zero" para o sector, com a suspensão generalizada dos apoios do Instituto do Cinema e do Audio­visual (ICA).

O deserto...

"A situação é dramática, e à nossa frente só vemos o deserto", diz José Miguel Ribeiro, realizador, produ­tor, professor e presidente da Casa da Animação, associação fundada no Porto em 2002 e que no ano passado se viu na contingência de fechar a sede, por razões logísticas, mas principalmente pela perda do subsídio anual do ICA. "Com a sus­pensão desse apoio, não tínhamos condições para continuar", justifica o realizador de A Suspeita (Cartoon d'Or em 2000), que, no entanto, es­pera que a associação seja reactivada - para decidir o futuro, os sócios vão ser convocados para uma assembleia geral no corrente mês de Fevereiro. 

A Suspeita

Também em busca de futuro está a Associação Portuguesa dos Produ­tores de Animação (APPA), com sede em Lisboa, que vai renovar o elenco directivo e está igualmente à procura de condições de sobrevivência. "As coisas arrastaram-se, foi preciso fazer a actualização dos sócios, mas acha­mos que temos um serviço a prestar à animação", diz Humberto Santana, o presidente da associação que re­presenta o sector e vale um voto no Conselho Nacional da Cultura.

Produtor e realizador, Humberto Santana está já a sofrer na pele as consequências da crise. No ano pas­sado, viu-se obrigado a encerrar o estúdio Animanostra que fundara em Lisboa, em 1991 (aí nasceu o bone­co Vitinho, que no início da década de 90 dava na RTP as "boas-noites" aos mais novos). Este desfecho sig­nificou o despedimento das últimas quatro pessoas das mais de 30 que aí chegaram a trabalhar nos melho­res anos da animação portuguesa.

Se há um nome que historicamen­te simboliza a maturidade e qualida­de do cinema de animação de autor em Portugal, é Abi Feijó, autor de Os Salteadores (1993), Fado Lusitano (1995), O Clandestino (2000), filmes realizados sob a chancela do Filmógrafo, que fundou no Porto, em 1987. Por este estúdio-escola passaram vá­rios animadores que viriam prolon­gar e projectar, depois, uma certa imagem de marca da animação de autor, como o já referido José Miguel Ribeiro, Pedro Serrazina (Estória do Gato e da Lua), ou... Regina Pessoa, que aí realizou o seu primeiro filme, A Noite (1999) 


A Noite


Com uma acumulação de prémios em festivais por todo o mundo, Abi Feijó (que se tornaria o primeiro presidente da Casa da Animação, outro dos seus grandes projectos) viu-se, a dada altura, obrigado e fechar e ven­der o Filmógrafo - que viria a ser ad­quirido, pela importância simbólica de um euro, por António Costa Va­lente, do Cineclube de Avanca, outra marca com história neste sector.

A dedicação a tempo inteiro à ani­mação viria a afectar mesmo a vida pessoal de Feijó, que se viu na contingência de vender o seu apartamento no Porto para pagar as dívidas do es­túdio. Decidiu entretanto "regressar" à casa da sua família numa aldeia de Lousada, onde divide agora o tem­po com a actividade lectiva (Algar­ve, Porto e Guimarães) e a produção, com a sua nova "empresa familiar" Ciclope Filmes, dos trabalhos da sua companheira Regina Pessoa. E pro­jecta também a criação, na terra, de um Museu da Imagem Animada.

"O que é lamentável é que os res­ponsáveis não percebam que a ani­mação, sobretudo, cria prestígio para Portugal através dos bons resultados conquistados nos últimos anos no estrangeiro", diz Abi Feijó, referindo-se à "meia-dúzia de autores que têm uma obra reconhecida internacio­nalmente". 

Abi Feijó

Num artigo no seu blogue pessoal, o autor de Fado Lusitano assumiu, desde há muito, que os profissionais da animação têm de ser "subsidio-dependentes". "Essa é uma situação antiga: se o Estado atribui milhões de incentivos, por exemplo, à Autoeuropa, para assegurar postos de trabalho, por que é que não o pode fazer no caso do cinema, para con­quistar parcerias internacionais?". E cita dois casos exemplares: Kali, o Pequeno Vampiro, que teve um custo próximo dos 400 mil euros, só foi concretizado através de parcerias com a França, o Canadá e a Suíça; no reverso da medalha está o seu pro­jecto da Ciclope Filmes, Amélia, de Alice Azevedo e Mónica Santos, que já perdeu o parceiro francês e corre o risco de perder o canadiano, pelo facto de o ICA não ter ainda desblo­queado os 53 mil euros atribuídos em 2011. (Já depois da conversa com o PÚBLICO a meio desta semana, Feijó foi contactado pelo instituto com a indicação de que essa verba estaria em vias de ser libertada. Mas o ICA não respondeu, em tempo útil, às perguntas que lhe enviámos sobre a situação da animação.)

Na mesma situação de incerteza estão a Animanostra, o Cineclube de Avanca/Filmógrafo, a produtora de José Miguel Ribeiro e tantas outras existentes no país, que não sabem ainda se irão poder recuperar da tra­vessia do deserto do ano passado.

A produtora de Humberto Santa­na continua à espera de condições para concretizar um seu projecto antigo, a adaptação do clássico de Sophia, A Menina do Mar, e a série juvenil Figurões, de André Carrilho e João Paulo Cotrim, para as quais - e ao contrário do que tem sido habitual - tem a garantia de parti­cipação financeira da RTP, mas falta a do ICA.

António Costa Valente e o estú­dio de Avanca têm agora pronta pa­ra estrear a curta-metragem , de Nuno Fragata. Mas no estúdio des­ta pequena localidade do distrito de Aveiro trabalham agora só sete pessoas, quando aí "já trabalharam mais de 40, no tempo da realização da longa-metragem Até ao Tecto do Mundo" (terminada em 2006 como primeira obra de longa duração na história da animação portuguesa). Costa Valente está agora também à espera da comparticipação, já pro­metida pelo ICA, para o desenvolvimento do projecto de uma nova longa-metragem, A Lenda de Kong Kit, o Gangster de Macau.

José Miguel Ribeiro lançou, no final do ano passado, uma loja-editora no mercado de Montemor-o-Novo, a que chamou Praça Filmes. E continua a acalentar o projecto de fazer a série infantil Dodu, para a qual iniciou, de resto, contactos com uma produtora brasileira. "Em Portugal, mais grave do que não ha­ver dinheiro é a sensação de que as séries não encontram parceiros nas televisões, que é para onde elas são pensadas", lamenta o realizador de O Passeio de Domingo



Uma "ilha" no deserto

Mas, no meio de todo este deserto, há ilhas de optimismo. Uma delas é a produtora Bang Bang, criada em Lisboa há 15 anos por Miguel Braga, que tinha passado pela Animanos­tra. Em 2010, este animador encon­trou um investidor nacional com "o sonho" do cinema de animação. Daí nasceu o projecto da série Nutri-Ventures, de que já foram realizados 30 episódios, que estão a passar na RTP e no Canal Panda, e que tem perspectivas de "ser vendida para televisões de 17 países", diz Miguel Braga. "Nutri-Ventures não é cine­ma de autor - não é isso que nos interessa -, é uma série que segue a estética do cartoon e se destina a teenagers, fazendo a apologia da alimentação saudável, mesmo não tendo uma preocupação didáctica", explica, adiantando que o investi­mento inicial foi de dois milhões de euros, mas já chegou aos cinco mi­lhões. Tendo por princípio não re­correr a subsídios, a Bang Bang tem garantido trabalho - para além de Nutri-Ventures está também a pro­duzir a série ZigZag (RTP2) - a uma equipa de 47 pessoas.

O efeito das escolas

A crise da animação atrás documen­tada, curiosamente, não tem tido ainda expressão no fluxo de novas produções. Para além do filme de Regina Pessoa, na carteira de títulos que a Agência da Curta-Metragem (Vila do Conde) apresenta esta se­mana no mercado de Clermont Fer­rand estão 23 filmes de animação produzidos nos últimos três anos. E nas três últimas edições do Cinanima, as inscrições de filmes portugueses ultrapassaram sempre a meia centena. António Cavacas, da direc­ção do Festival de Espinho, diz que estes números não apagam a "grave situação da animação em Portugal". Eles resultam, por um lado, da ha­bitual lentidão na produção de uma curta-metragem, que normalmente ultrapassa os três anos, e também da cada vez maior presença de produ­ções das escolas.

Abi Feijó considera, de resto, que esta é a principal novidade dos últi­mos anos na animação em Portugal, notando que, quando há dois anos a Casa da Animação promoveu um simpósio sobre o ensino desta ar­te no país, foi surpreendida com a participação de... 14 escolas. Esses cursos existem nos diferentes graus do ensino, desde os ramos vocacio­nais no secundário, até ao recente lançamento de uma licenciatura em Animação pela Universidade do Al­garve. "Depois do reconhecimento inter­nacional da animação portuguesa de autor nos anos 90", a primeira déca­da do novo século teve como marca mais importante "o aparecimento das escolas", diz o realizador de Fado Lusitano, notando que este facto sur­giu quase em simultâneo com a eclo­são da crise económica. Saber que destino fica guardado para os jovens animadores que saem dessas escolas

Fado na Noite, de Fernando Relvas

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