ZÉ DAS PAPAS (43-44)
NA GAZETA DAS CALDAS
Por João Reboredo
Gazeta das Caldas, 7 de Fevereiro de 2014
AS MESMAS VIVÊNCIAS
No meu último escrito, em que descrevi a aventura e a lição do Chefe João Ribeiro ao "transformar" bacalhau seco em base de iguaria, omiti, propositadamente, o nome do prato: o mesmo do Hotel onde era 2º Chefe: Universal. Das várias receitas de bacalhau que confeccionou de forma primorosa uma há que pede explicação prévia, melhor, duas:
Começo por lhes dizer o que é, tecnicamente. É uma brandade. Se consultarmos a "bíblia" da cozinha, ou seja o Larousse Gastronomique, encontramos: puré de bacalhau emulsionado em azeite e leite. É uma especialidade do Languedoc e da Provença e tem pequenas diferenças conforme os locais, algumas por causa da adição e sua forma, ou não, de alho. Alguns Chefs incorporaram puré de batata mas isso para os puristas já é blasfémia.
A cozinha portuguesa regista em lugar cimeiro duas brandades: uma, de importação, pois trata-se da receita do bacalhau espiritual, comprada em França pela concessionária da Cozinha Velha, Restaurante à entrada do Palácio de Queluz, a Condessa de Almeida Araújo. E tem pouco a ver com a que nos é frequentemente apresentada em muitos restaurantes! O Virgilio Gomes, gastrónomo de mérito, que secretariou o Conselho Técnico de Gastronomia, criado na sequência da deliberação governamental que reconheceu a gastronomia como património cultural, no início dos anos noventa, explica, com a autoridade de quem dirigiu o referido restaurante, a receita verdadeira no seu sitio htpp//:www.virgiliogomes.com/crónicas. Recomendo vivamente a sua consulta frequente, aos que se interessam por estas coisas, é claro.
A brandade portuguesa é criação do Chefe João Ribeiro e tem uma história bem curiosa. Um dos clientes assíduos do Chefe era o Conde da Guarda, parece que ao tempo grande importador de bacalhau, que adorava. Acontece que o senhor a certa altura tinha dificuldades em mastigar ou ficom sem dentes... e o Chefe criou, em sua honra, a "papinha" que ficou conhecida com bacalhau à Conde da Guarda, e ainda hoje constitui um dos pratos emblemáticos do actual Hotel Aviz.
Outras receitas há, da autoria ou confecção do Chefe João Ribeiro, a merecer nota excelente, nomeadamente a Lagosta à "Fra-Diavolo" e o Jambón Braisé Giroffle.
Pois este nosso Chefe ganhou dois grandes prémios, na Normandia, em França, no concurso internacional "la Tripiére d'Or" em 1959 e 1960, com a sua versão, de "tripas à moda de Caen"!
Este homem, que cozinhou para Reis, Chefes de Estado, de Governo e outros altos dignatarios mundiais, quando na entrevista, já citada, à Banquete lhe foi perguntado se havia algum prato da cozinha portuguesa da sua preferência, respondeu: "na cozinha portuguesa uns bons bifes no tacho são uma maravilha"!
Nunca publicou nenhum livro de receitas. Os seus apontamentos, dizem ter sido destruídos peia viúva, se calhar com "ciúmes" do tempo que o marido dedicava à cozinha.
Das publicações que ainda assim registam as mais conhecidas são O Livro de Mestre JOÃO RIBEIRO de José Labaredas, José Quitério e Receitas com história : os segredos do Aviz Hotel de Berenice Rugeroni Pessanha Cisneiros, com coordenação de Ana Gonçalves Lopes.
João Reboredo
Brandade de morue
Bacalhau à Conde da Guarda
Bacalhau Espiritual
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ARTE XÁVEGA
Isto da gastronomia património cultural constitui um mundo! Um dia destes dei por mim a pensar que iria escrever sobre o associativismo gastronómico, referindo as confrarias e uma realidade singular, que são as sociedades gastronómicas bascas.
Mas como fui confrontado, hoje, com a notícia triste da morte de um arrais de arte xávega na minha terra de adopção, vou referir-me a esse tipo de pesca. Penso já ter escrito, neste espaço, que sou "Caparicano". Ao longo dos anos assisti a muitos lances, puxei redes (antes do aparecimento dos tractores com aladores), vi, vezes sem conta, o Quim Cavalinha comandar os trabalhos. Foi esse mestre, com quem convivi, que parte aos noventa e tal anos e que me traz ao tema.
A palavra xávega provém do árabe xábaka e, segundo o dicionário Huaiss de Lingua Portuguesa, significava barco para pesca com rede. A denominação xávega era usada pelos pescadores do sul de Portugal. No litoral centro e norte praticava-se um tipo de pesca idêntico mas com diferenças: os barcos, com outra forma (crescente de lua) e tamanho, também de fundo chato e com as suas proas bastante mais elevadas para melhor suportarem a força das ondas, com capacidade de carga bem maior do que os barcos do sul.
Pode assumir duas modalidades: de arrastar para terra ou de arrastar para bordo. Na primeira, o barco que transporta a rede sai de um local específico na praia, onde fica fixo um dos cabos da rede e, em movimento circular, deixa-a ao largo, trazendo então para terra o outro cabo. De outro modo, as redes são aladas para dentro dos barcos que as levam ao mar. O sistema de pesca é simples. A Xávega possui um saco de rede, cuja boca se prolonga para um e outro lado, ao longo de extensas mangas ou alares de rede, diminuindo a sua altura para as extremidades Os cabos de alagem são amarrados no extremo destas mangas. Uma vez largada, a rede assenta no fundo, mantendo-se vertical mediante bóias e pesos de chumbo, conservando-se a boca do saco aberta. Atente-se a versão de Raul Brandão, no seu "Pescadores", que, em Janeiro de 1923, escrevia sobre a Costa da Caparica e cito: "Quando há muito peixe fazem-se três lanços cada dia, e trabalha-se todo o ano se o mar deixa. A rede éade arrasto para a terra. O barco sai ao mar deixando um cabo nas mãos dos dez homens que ficam no areal, e vai-o largando pouco e pouco – cinquenta e tantas cordas de dezoito braças cada uma. Quando o arrais acha que se deve largar a rede, diz: – Em nome da Senhora da Conceição, rede ao mar! – E larga-se o calão, em seguida o alar, depois o saco e por fim o outro alar e o calão, trazendo-se a corda para a terra. Abica, salta a tripulação e com os homens de terra arrastam a rede. Apanha-se sardinha, carapau, e às vezes, em lanços de sorte, e quando menos se espera, a corvina, alguma raia, pargo e linguado."
Além da Caparica há outros locais onde ainda se pratica este tipo de pesca, nomeadamente na praia de Vieira de Leiria e de Mira, de onde são originários os antepassados do "meia-lua" caparicano.
João Reboredo
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