1ª foto: A desolação...
Mas aqui ficam textos de Carlos Pessoa sobre o início do 21º FIBDA, uma entrevista a Achdé sobre o novo Lucky Luke: “Lucky Luke contra Pinkerton” e uma apreciação do livro, entretanto lançado pela ASA. Caderno P2, do Público, 23 de Outubro de 2010
FESTIVAL DE BD DA AMADORA COMEÇA HOJE
A República, Quim e Manecas e os outros
Há muita banda desenhada portuguesa, o que acontece pela primeira vez. Mas a programação é desequilibrada e há poucos autores estrangeiros conhecidos
Carlos Pessoa
Começa hoje o 21.º Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora e os quadradinhos portugueses fazem a festa com a maior presença de que há memória.
Isso fica a dever-se à opção estratégica, tomada há um ano pelos organizadores, de associarem o mais importante festival do género às comemorações do primeiro centenário da implantação da República. Os críticos ouvidos pelo P2 aplaudem esta decisão que dizem ser “excelente”, mas lamentam a ausência de autores estrangeiros de renome e consideram a programação globalmente desequilibrada.
“A banda desenhada portuguesa está bastante bem representada este ano, o que é óptimo”, considera o investigador Leonardo de Sá. Mas lembra que é a primeira vez que tal acontece, quando esta “excepção é que devia ser a regra”. A avaliação do crítico e livreiro João Miguel Lameiras é semelhante: “Faz sentido aproveitar a efeméride da República para ganhar maior atenção para a BD portuguesa. Mas é pena que os álbuns previstos sobre o tema não saiam durante o festival, perdendo-se esta oportunidade de venda.”
A principal exposição é sobre a I República na Génese da Banda Desenhada e no Olhar do Século XXI. Está no Fórum Camões, na Brandoa, onde pode ser ainda vista a maioria das exposições e onde decorrerão, até 7 de Novembro, as principais iniciativas do festival.
Outra das propostas da programação é dedicada a Richard Câmara, responsável por uma proposta de recriação das personagens Quim e Manecas, de Stuart Carvalhais. Um terceiro momento consiste na homenagem ao desenhador e argumentista Fernando Bento, cujo centenário do nascimento é assinalado a 26 de Outubro, durante o festival.
Finalmente, a programação inclui a exposição É de Noite Que Faço as Perguntas, em torno do making of de um livro sobre a história ficcionada da I República com cinco bandas desenhadas assinadas por David Soares (argumento), Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre Silva (desenhos).
Ainda pelo lado da criação portuguesa, vale a pena passar pela exposição A Metrópole Feérica, sobre o álbum homónimo de Luís Henriques e José Carlos Fernandes. A lusofonia marca a colectiva A Nona Arte em Língua Portuguesa (autores de Portugal, Brasil, Angola e Moçambique).
Em termos internacionais, domina claramente a exposição consagrada aos belgas Schuiten e Peeters e ao álbum A Teoria do Grão de Areia. Outros núcleos a que os visitantes devem estar atentos são Visões de Portugal (o olhar da autora francesa Aude Samama sobre Lisboa e Amália) e City Stories (projecto de intercâmbio entre o festival polaco de Lodz e cidades europeias, entre as quais Lisboa e a Amadora).
Fora da Brandoa, o festival mantém este ano núcleos de exposição na Galeria Municipal Artur Bual (Luis Diferr e o álbum Portugal), Casa Roque Gameiro (ilustração de Bernardo Carvalho e Os Quadros da História de Portugal, de Roque Gameiro e Alberto de Sousa) e Recreios da Amadora (cartoon).
Faz falta o underground
Para o editor Jorge Machado Dias, o problema não é a programação, que considera bastante interessante, mas “aquilo que iremos ver no terreno”: “No passado temos visto exposições cujos conteúdos não justificavam o espaço concedido.
” A existência de um tema central não é, por si, garantia de qualidade, sustenta Leonardo de Sá. “O problema de fundo do festival, desde que existe um tema central, tem sido a falta de coesão da programação, a escolha insatisfatória dos temas e a forma insuficiente como têm sido desdobrados”, diz. Quanto às exposições em concreto, Leonardo de Sá é prudente: “Só posso dar respostas depois de as ver.”
João Miguel Lameiras não resiste a fazer a comparação com o Festival de BD de Beja, para constatar que, em termos gerais, o alentejano “tem sido mais equilibrado, apesar de um orçamento muito menor”.
Um ponto em que todos estão de acordo é quanto aos autores convidados este ano. Schuiten e Peeters são nomes fortes, mas “tem faltado sempre o underground, o pessoal dos fanzines”, diz Machado Dias. “Um festival não são pranchas nas paredes, mas livros. E para vender livros é preciso ter autores conhecidos.” Na sua qualidade de livreiro, João Miguel Lameiras diz que a programação é “fraca e sem nomes de peso”. Leonardo de Sá partilha este ponto de vista: “Há menos autores-chamariz e isso pode jogar contra a afluência de público, não se justificando também a vinda repetida de autores e especialistas.”
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Suplemento Ípsilon, do jornal Público, 22 de Outubro de 2010
LUCKY LUKE CONTINUARÁ A SER O HERÓI DO OESTE
Há uma nova aventura de Lucky Luke nas bancas. É a melhor história em muitas décadas e isso fica a dever-se em grande medida aos dois novos argumentistas da série – os escritores Daniel Pennac e Tonino Benacquista. O desenhador Achdé conta como correu a parceria.
Carlos Pessoa
Com a morte de René Goscinny, em 1977, Lucky Luke ficou um pouco à deriva. Com maior ou menor sucesso, diversos argumentistas – de Vicq, Bob de Groot e Lo Hertog van Banda a Xavier Fauche, passando por Jean Léturgie e Laurent Gerra – escreveram as histórias do “cowboy” solitário ao longo das últimas três décadas. Os últimos a entrarem nesse clube restrito são os escritores Daniel Pennac e Tonino Benacquista, que lhe injectaram um novo fulgor. O resultado, “Lucky Luke contra Pinkerton”, agora nas bancas, também surpreendeu Achdé. O actual desenhador da série diz-nos, em entrevista exclusiva, que gostaria de repetir a experiência.
Este álbum de Lucky Luke conta com dois novos argumentistas. Alguma razão especial para isso?
O editor tinha vontade de fazer uma nova experiência com uma equipa de argumentistas reputados, que são ao mesmo tempo escritores célebres em França. Além disso, o argumentista Laurent Gerra estava muito ocupado com os seus espectáculos, pelo que este era o momento perfeito para avançar com uma nova equipa.
A colaboração com escritores conhecidos é inédita no que diz respeito a Lucky Luke. Qual é a mais-valia que eles trouxeram à série?
Como são homens de letras, teatro e cinema, eles sabem construir uma história e já fizeram banda desenhada [Pennac colaborou com Jacques Tardi e Benacquista foi argumentista de Jacques Ferrandez]. Creio que, acima de tudo, chegaram com um olhar de escritores e não de argumentistas de banda desenhada, pois a história está muito bem estruturada, como um autêntico romance.
Trabalhar com pessoas que não pertencem exactamente ao meio colocou problemas ou dificuldades especiais?
Não. Pelo menos não tão graves como os que levantam a colaboração com um humorista como Laurent Gerra!...
A única diferença é que eles forneceram- me uma história completa e planificada para as 42 pranchas, deixando-me duas páginas livres para eu desenvolver completamente a história e introduzir “gags”, pois o humor é essencial em Lucky Luke. Confesso que me deu muito prazer trabalhar com eles, pois tive muita liberdade numa história que à partida já estava muito bem construída.
No futuro a série continuará a ser desenvolvida em paralelo pela equipa Pennac-Benacquista e por Gerra?
Para ser franco, não faço ideia. Sei que Laurent já trabalha numa nova ideia e espero que ele consiga arranjar tempo para a desenvolver completamente. Tanto quanto sei, nada está decidido. Mas agradar-me-ia muito fazer uma nova história com Pennac e Benacquista.
Nesta história, Lucky Luke é contestado como herói, embora depois volte a ocupar o seu lugar. Foi da sua responsabilidade este volte-face? Não teme que os leitores mais fundamentalistas fiquem zangados?
É uma decisão verdadeiramente original. Os argumentistas põem em causa o estatuto do herói inamovível de Lucky Luke. Acho que é uma belíssima ideia para o arranque de uma história, mas recordo que isso já aconteceu no álbum “Jesse James”. Nessa história, Lucky Luke é expulso pela população de Nothing Gulch. Na nossa história, o herói fica um pouco em perigo, mas regressa mais forte do que nunca. No final prova que é e continuará a ser o herói do Oeste.
A crítica (muito bem-humorada, diga-se de passagem) dos poderes ocultos por trás dos grandes homens – no caso o dirigente de uma potência mundial – introduz uma nota ideológica numa série de grande público. Qual é a sua opinião sobre isso?
É evidente que o tema é muito actual, mas em todo o caso intemporal. Pennac e Benacquista conseguiram fazer nesta história aquilo que René Goscinny fazia com frequência: uma banda desenhada com vários níveis de leitura. Um leitor adulto poderá ver nela o lado escondido, mais político, e é precisamente por tudo isso que o novo álbum de Lucky Luke é verdadeiramente para todos os públicos. Acho que é sempre bom meter o nariz em temas sérios, mas com humor...
Billy the Kid, os Dalton e Rantanplan – este num regresso auspicioso à série – estão de volta em grande forma. Podemos contar com a sua presença regular nos álbuns futuros?
Teoricamente, os Dalton voltam a estar em cena a cada dois ou três álbuns, mas isso é decidido sobretudo em função das ideias dos argumentistas. No que me diz respeito, é sempre uma surpresa. Mas confesso que me divirto imenso a desenhá-los. Logo se verá!
Durante quanto tempo mais vai continuar a desenhar a série? Tem outros projectos em vista?
Sinto-me bem a desenhar o herói que impregnou a minha infância... Mas acho que é o público quem me vai mandar “parar” se eu me desleixar. Se o meu trabalho desagradar aos leitores, estes dar-me-ão a entender isso muito rapidamente e o próprio editor também, é evidente! Seja como for, o próximo álbum ainda será desenhado por mim. Mas tenho sempre entre mãos projectos paralelos. E continuo a desenvolver a minha série “Les Canayens de Monroyal”, que é um sucesso no Quebeque.
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O MELHOR LUCKY LUKE ESTÁ DE VOLTA
É da melhor colheita, produzido por “mestres vinhateiros” sabedores do ofício.
Carlos Pessoa
Lucky Luke contra Pinkerton
Daniel Pennac e Tonino Benacquista (argumento)
Achdé (desenho)
Tradução de Maria José Pereira e Paula Caetano
Edições Asa
É preciso procurar muito no passado da série Lucky Luke para encontrar prazer na leitura e boas razões para rir. A morte do argumentista René Goscinny, em 1977, deixou um vazio em séries de grande público que lhe deviam parte muito substancial do sucesso editorial – Astérix é uma delas, Lucky Luke é outra. A verdade é que a dinâmica emprestada às aventuras pela imaginação e talento de Goscinny nunca mais voltaria a marcar presença nas décadas seguintes.
O efeito desse luto é o que toda a gente sabe. Os dois heróis da BD franco-belga entraram num plano inclinado de previsibilidade, falta de inspiração e falência de ideias. Ao contrário do gaulês, porém, os editores de Lucky Luke foram experimentando argumentistas sucessivos – passaram pela série Vicq, Greg, Lo Hartog Van Banda, Guy Vidal, Xavier Fauche ou Jean Léturgie –, quase sempre com o mesmo resultado decepcionante.
A morte em 2001 de Morris, criador e desenhador de Lucky Luke, obrigou a repensar tudo e a encontrar outra solução para a continuação da série. Uma nova equipa de autores (o argumentista Laurent Gerra e o desenhador Achdé) assume a responsabilidade de reconduzir o “cowboy” ao lugar que lhe compete na galeria dos heróis franco-belgas. Desde 2004 produziram três histórias – “Aventura no Quebeque” (2004), “O Nó ou a Forca” (2006) e “O Homem de Washington” (2008), resgatando algum do fulgor de outrora e garantindo níveis de venda bastante interessantes. Surge agora “Lucky Luke contra Pinkerton”, fruto da colaboração de Achdé com a dupla de argumentistas Daniel Pennac e Tonino Benacquista. A explicação oficial para esta surpreendente alteração do elenco é a indisponibilidade de Gerra (ler entrevista com Achdé nesta mesma edição). Seja essa a razão de fundo ou não – o recurso a mais do que uma equipa de criadores é uma fórmula com boas provas dadas até ao momento em séries como Blake e Mortimer ou Spirou –, a verdade é que Lucky Luke ganhou imenso com o sangue novo que lhe trouxeram os dois escritores franceses, ambos com incursões na banda desenhada, mas para todos os efeitos estranhos ao meio. Há ritmo, humor, sentido narrativo e tudo o mais (no que se tem de incluir a presença dos Dalton e o reaparecimento de Rantanplan) que fez da série um dos grandes clássicos europeus do género.
Articulando habilmente ficção e veracidade histórica, os autores não hesitaram em colocar em causa a condição intocável do herói Lucky Luke, preocupantemente ultrapassado pelas iniciativas de Allan Pinkerton em boa parte da história. É com a mesma coragem que fazem a denúncia dos abusos de poder sobre os cidadãos em nome da defesa da sociedade e dos seus valores, numa clara alusão à manipulação e condicionamento da opinião pública através dos mecanismos do medo e da ameaça terrorista.
O equilibrio entre estes elementos temáticos e as exigências de construção de uma boa história para públicos tão diversificados em termos etários e mentais faz deste álbum uma das boas surpresas do ano editorial. É Lucky Luke da melhor colheita, produzido por "mestres vinhateiros" sabedores do ofício.
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