segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

BDpress #393: COMPRIMIDOS AZUIS DE FREDERIK PEETERS (EDIÇÃO DEVIR) – NO EXPRESSO



COMPRIMIDOS AZUIS 
Frederik Peeters 

Do amor em risco 

Expresso, 05 de Janeiro de 2013 

José Mário Silva 

Frederik Peeters, autor suíço de BD, desenhou uma delicadíssima narrativa autobiográfica sobre o impacto da seropositividade na vida de um casal

Durante muitos anos confinada ao gueto da BD, a novela gráfica vem conquistando cada vez mais autonomia como género literário e espaço de experimentação narrativa. O êxito extraordinário de "Maus", de Art Spiegelman (1991), vencedor de um Pulitzer e objeto de estudo nas universidades, abriu caminho a outros autores que fazem das suas vidas, no que têm de extraordinário ou de comum, a matéria-prima para uma visão pessoal do mundo. Ao lote desses autores, muitos deles recentemente editados em Portugal, como Marjane Satrapi ("Persépolis"), Craig Thompson ("Blankets") ou Alison Bechdel ("Fun Home"), junta-se agora o suíço Frederik Peeters (Genebra, 1974) e a sua história de um amor assombrado pela ameaça da sida.

Peeters começa por narrar os primeiros encontros com a futura namorada, os insondáveis mecanismos da atração entre duas pessoas, o progressivo enamoramento, até que a página 38 traz a violência do segredo que Cati não pode mais esconder: tanto ela como o filho, de, 3 anos, fruto de um casamento falhado, são seropositivos. Durante um segundo, com o cigarro ao canto da boca e os olhos pasmados, ele entrega-se "aos sentimentos mais extremos". E nós vemos literalmente esses sentimentos a pairarem sobre a sua cabeça: paixão, desgosto, tristeza, vontade de fugir, piedade. O que num romance talvez requeresse páginas a fio de introspeção é-nos dado numa breve sequência de imagens que resumem, com elegância minimalista, o desamparo de alguém que sente o chão fugir-lhe debaixo dos pés. De forma serena, sem condescendência nem heroísmo, "Comprimidos Azuis" mostra-nos depois como um casal consegue sobreviver, dia a dia, à espada de Dâmocles de um vírus com o qual os avanços da medicina já nos permitem coexistir, mas que exige uma vigilância tendencialmente paranoica.

A beleza do livro está nos pequenos gestos, na intimidade que se revela mas não se exibe, no modo como Peeters vai revelando as suas dúvidas, angústias e superações através de notáveis achados visuais (a frieza de um hospital, por exemplo, é dada pelo vazio dos corredores ou pelo close-up de uma lâmpada). Quase no fim, os dilemas existenciais resolvem-se na garupa de um mamute onírico que tanto cita Oscar Wilde e Epicteto como Burt Reynolds. Mas a imagem central do livro é outra. Numa das consultas, um médico diz: "Vocês têm tantas hipóteses de apanhar a sida como de se encontrarem com um rinoceronte branco ao sair daqui!" Por ter sido nomeado, o rinoceronte passa a existir, é um fantasma que os acompanha para todo o lado. Não desaparece, porque não pode desaparecer. Mas a família, resiliente e unida, aprende aos poucos a viver com ele.

Peeters inscreve-se na linhagem dos desenhadores que fazem da novela gráfica um fascinante campo de experimentação visual.

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COMPRIMIDOS AZUIS 
Frederik Peeters 
Biblioteca de Alice, 2012
Edições Devir, 184 págs., €24,99






 Frederik Peeters


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