domingo, 22 de setembro de 2013

COM O ZÉ DAS PAPAS (de Bordallo Pinheiro) 32 – A INQUISIÇÃO E A "DIETA ALIMENTAR"


Auto de Fé de la Inquisición - quadro de Goya (pintado entre 1812-1819)

 ZÉ DAS PAPAS 32

in Gazeta das Caldas, 20 de Setembro de 2013

A INQUISIÇÃO E A "DIETA ALIMENTAR"

Passou, há muito, o tempo de jejum e abstinência, próprios da quaresma. Já fomos à espiga e, sem saber bem porquê, ou talvez sabendo, pois o jejum e a abstinência são hoje o dia a dia de muitos, lembrei-me de que há matéria alimentícia a justificar o enquadramento da gastronomia com a Inquisição.

Acerca da alimentação dos encarcerados nas masmorras da Inquisição, Camilo Castelo Branco dá algumas indicações, baseado num livro de 1688, "Re­lation de l'Inquisition de Goa", acrescentando ser a mesma em todas as prisões inquisitoriais do território português.

Assim: os presos comem três vezes ao dia; almoço às seis horas da manhã, jantar às dez, e ceia às quatro horas da tarde.

Aos pretos dão-lhes canja de arroz ao almoço; ao jantar e ceia, dão-lhes peixe e arroz. Os brancos passam melhor: de manhã dão-lhes um pão fresco de três onças e peixe frito, fruta e uma linguiça, se é domingo ou quinta feira; e nestes dias, ao jantar dão-lhes carne, um pão como o do almoço, e um prato de arroz e algum guisado com farto molho, para adubar o arroz, que é cozido simples­mente com sal; nos demais dias dão peixe frito, arroz, e guisado; carne é que nunca lá se come à noite.

Conclui Camilo: "Presume o desconhecido autor que a abs­tinência da carne leva em vista evitar indigestões. Aqueles higiénicos sujeitos poupavam os corpos salutarmente, no intento de lhes purificar [depois] as almas no fogo. Em Lisboa prevalecia a mesma piedade".

Já os senhores inquisidores, apaniguados e demais funcio­nários do aparelho do santo ofício, esses, não davam mos­tras de falta de apetite antes e durante os monstruosos espec­táculos que encenavam. Talvez até o cheiro a carne humana queimada lhes fosse estímulo para o luxo de iguarias e doces com que se banqueteavam.

Extraio da «Despesa dos gastos do auto de fé que se celebrou em 18 de Novembro de 1646 em Lisboa», transcri­to por António Baião, alguns exemplos:

"De linguados, salmonetes, safios, abróteas, taganas, mu­gens e sardinhas que para sexta feira e sábado antes do auto [de fé] se deram aos Srs. inquisidores, de­putados, promotores, notários, meirinho, alcaide, solicitadores e mais oficiais e se fizeram em empadas para a ceia do sába­do e se deu aos guardas para comerem no cárcere, como é costume por não irem a suas casas, 27$096.

De vinho que se comprou a 160 réis a canada que se gastou nos 15 dias antes do auto na Mesa e secreto e se deu a Fran­cisco de Almeida para o jantar do auto e padres da Companhia, 2$120".

Vítima dos "tratos de polé" da Inquisição foi António José da Silva, "O Judeu", nome maior das letras portuguesas da pri­meira metade do século dezoi­to, consagrado autor de "Guer­ras do Alecrim e Mangerona".

Mas António José da Silva, por si, merece mais prosa.

João Reboredo
joaoreboredo@gmail.com

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Nota do Kuentro:
A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL

Foi pedida inicialmente por D. Manuel I de Portugal, para cumprir o acordo de casamento com Isabel de Aragão e Castela e após a morte desta, com a irmã, Maria de Aragão e Castela. A 17 de Dezembro de 1531 o Papa Clemente VII pela bula Cum ad nihil magis instituiu-a em Portugal, mas um ano depois anulou a decisão. Em 1533 concedeu a primeira bula de perdão aos cristãos-novos (judeus convertidos) portugueses. D. João III, filho de D. Manuel I e da mesma Maria de Aragão e Castela, renovou o pedido ao Papa e encontrou ouvidos favoráveis no novo Papa, Paulo III que cedeu, em parte por pressão de Carlos V de Habsburgo – também Carlos I, rei de Castela, Aragão, Galiza, Navarra, etc. e primo direito de D. João III.

Em 23 de maio de 1536, por outra bula em tudo semelhante à primeira, foi instituída a Inquisição em Portugal. A sua primeira sede foi em Évora, onde se encontrava a corte. Tal como nos outros reinos ibéricos, tornou-se um tribunal ao serviço da Coroa.

A bula Cum ad nihil magis foi publicada em Évora, onde como se disse atrás, então residia a Corte, em 22 de outubro de 1536. Toda a população foi convidada a denunciar os casos de heresia de que tivesse conhecimento – mas claro que a coisa visava sobretudo os cristãos-novos. No ano seguinte, o monarca voltou para Lisboa e com ele o novo Tribunal. O primeiro livro de denúncias tomadas na Inquisição, iniciado em Évora, foi continuado em Lisboa, a partir de Janeiro de 1537. Em 1539 o cardeal D. Henrique, irmão de D. João III de Portugal e depois ele próprio rei, tornou-se inquisidor geral do reino.

Mas tudo isto tem a ver com a “cedência” de D. Manuel I que, ao querer casar com a Princesa Isabel de Aragão e Castela (uma vez que não queria “ficar atrás” do anterior herdeiro da coroa, D. Afonso, filho de D. João II, que morreu em Julho de 1491, num acidente perto de Santarém e que havia sido casado com a mesma Princesa), teve que ceder às pretensões da coroa de Castela/Aragão e pedir a instituição da inquisição ao Papa da altura – que foi instruido, ao que parece, pelos agentes do rei português para não a conceder. Tudo isto por causa da numerosa população judaica existente em Portugal na altura, que a Princesa não queria ver no reino de que viria a ser rainha. D. Manuel I, que não queria o reino sem as lucrativas actividades do capital judaico, arranjou um subterfúgio ao ordenar o baptismo forçado de grande parte dos judeus, que se tornariam nos “cristãos novos”, inventores das alheiras (por exemplo), para mostrarem que também comiam “chouriços” como os outros cristãos “normais” – só que as alheiras não tinham carne de porco, claro.

O primeiro auto de fé realizou-se em 1540, tendo sido condenados a morrer na fogueira quatro homens e uma mulher. A execução teve lugar em finais de Outurbo desse ano, no Terreiro do Paço, a que assistiu D. João III e toda a corte, das varandas do Paço.

A Inquisição foi extinta gradualmente ao longo do século XVIII, desde que o Marquês de Pombal proibiu os autos-de-fé, embora só em 1821 se dê a extinção formal em Portugal numa sessão das Cortes Gerais. Porém, para alguns estudiosos, a essência da Inquisição original, permaneceu na Igreja Católica através de uma nova congregação: A Congregação para a Doutrina da Fé, de que por exemplo, o Papa Ratzinger (Bento XVI) foi secretário antes de ser eleito Pontífice.

Jorge Machado-Dias

Execução de condenados no terreiro do Paço (o Paço Real ao fundo)

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3 comentários:

  1. NUNCA ouve autos de fé no Terreiro do Paço! Já o tinha afirmado o historiador Francisco Bethencourt e voltam a afirmá-lo José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci no gigantesco estudo “História da Inquisição Portuguesa (1536-1821)”, publicado recentemente pela Esfera dos Livros. E segundo José Pedro Paiva (https://www.facebook.com/EngenheirodeReabilitacao/posts/452464228167077 ), a imagem que se tem de tal instituição é a “da "lenda negra", absolutamente acrítica, repleta de exageros, que desvirtua o que é o conhecimento da Inquisição"; “uma imagem que começou a ser construída durante o Iluminismo e foi acentuada pela historiografia liberal, que culpa a Inquisição do atraso da Península Ibérica em relação à Europa”.

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    1. Caríssimo Manuel Caldas, a ser verdade esta sua afirmação, está então errada a que colhi na biografia de D. João III, de Ana Isabel Buescu (Círculo de Leitores, 2005), que afirma ter sido realizada a primeira "queima", no Terreiro do Paço, com a presença de toda a corte nas varandas do dito Paço. De qualquer modo concordo absolutamente, pelo que conheço, com o facto de que a Inquisição foi ela própria um "exagero" dos "mui católicos" reis e rainhas peninsulares, para as causas principais da decadência dos povos da Hispânia - ainda para mais estendidos aos respectivos "impérios".

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  2. O Machado-Dias não entendeu o comentador anterior. O que ele está a dizer, REMETENDO para as palavras dos historiadores do recente livro, é que a imagem de lenda negra é isto mesmo: uma lenda, e que a inquisição NÃO FOI TERRÍVEL COMO O ILUMINISMO ESPALHOU

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