terça-feira, 10 de abril de 2012

BDpress #333: MOEBIUS DIZIA QUE DESENHAVA EM TRANSE – Eurico de Barros, no Q.I. do Diário de Notícias



 Q.I. (Caderno semanal do D.N.) - BANDA DESENHADA, 24 Março 2012

MOEBIUS DIZIA QUE DESENHAVA EM TRANSE

O desenhador Moebius, aliás Jean Giraud, falecido no passado dia 10 de Março, era um criador bicéfalo, que trabalhava com dois estilos completamente diferentes, conforme o universo gráfico a que se dedicava, realista ou fantástico. E, enquanto Moebius, afirmava que desenhava "em estado de transe".

Por Eurico de Barros

Chamaram-lhe "o Janus da banda desenhada francesa". Moebius, aliás Jean Giraud, que morreu no dia 10 deste mês (Março de 2012), criador das aventuras do tenente Blueberry, com Jean-Michel Charlier, e da série de ficção científica 'O Incal', com Alexandro Jodorowsky, era um caso único na 9. ª Arte, um autor bicéfalo que criava com dois estilos completamente diferentes, dependendo da identidade que assumia. E que, enquanto Moebius, dizia desenhar "em estado de transe", tentando escapar ao seu "eu". Mas estes dois mundos gráficos não se excluíam mutuamente.

HÁ ALGUNS ANOS, o autor francês de banda desenhada (BD) Moebius, aliás Jean Giraud, criador da figura do tenente Blueberry com o argumentista Jean-Michel Charlier (1),e da Série Incal com o escritor e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky (2), deu uma entrevista a um site de cultura de vanguarda americana; chamado prism-escape (www.prism-escape.com). Nela, discorreu muito menos sobre BD do que sobre o seu pendor para o misticismo de recorte alucionogénio, para as práticas New Age e as pseudociências e para aquilo que entendia ser o papel do inconsciente no seu processo criativo, sobretudo quando assumia a personalidade de Moebius (nome de um matemático alemão dos séculos XVII/XVIII, autor do conceito da Fita de Möbius), que se manifestou pela primeira vez na sua carreira durante os anos 60, quando sob esse nome desenhou uma série de histórias curtas para a revista de contracultura Hara-Kiri.

Segundo o desenhador, o encontro com Jodorowsky tinha sido decisivo para tomar consciência daquilo a que chamava "o sonho acordado", para a influência do onírico no processo criativo e a existência de uma espécie de equivalente da escrita automática surrealista na sua arte, a que se poderia dar o nome de "transe". Falando em 2010 a AFP, Moebius, que morreu de cancro no dia 10 deste mês, com 73 anos, em Paris, insistiu nesta ideia: "Tenho dois polos, dois gestos.

Quando estou na pele de Moebius, desenho em estado de transe, tento escapar ao meu eu".

Independentemente da credibilidade que possamos dar a tais declarações, sobretudo aqueles de nós mais dados a racionalidade e ao ceticismo e descrentes de todo o tipo de "estados alterados" artificialmente induzidos e de experiências com cristais e "energias místicas", e da sua associação à criação artística, é inegável que Jean Giraud/Moebius foi um caso único da história da banda desenhada, admirado por figuras como Fellini, Stan Lee, Franquin (que o considerava "o melhor realizador do seu tempo"), Hayao Miyazaki, Neil Gaiman, William Gibson, George Lucas e Paulo Coelho.

Este autor bicéfalo criava com dois estilos gráficos completamente diferentes, dependendo se assumia a identidade de Giraud (ou Gir, como também assinava) para desenhar esse marco do western realista que é Blueberry, profundamente influenciado pelos filmes anti-heróicos e subversores de um Sam Peckinpah ou um Sergio Leone; ou a de Moebius para desenhar a sua peculiar modalidade de ficção cientifica (FC), muito mais fantasista e visionaria do que hard-tech, como é aliás costume na FC francesa, concretizada em O Incal, Arzak, Le Garage Hermétique ou Les Vacances du Major, bem como em criações inclassificáveis como Le Bandard Fou. Ou igualmente na série autorreferencial de álbuns Inside Moebius, que se furta a toda e qualquer catalogação ou definição, onde o artista surge também como personagem, misturando-se com as suas outras criações, e integrando nas narrativas acontecimentos do nosso mundo como o ataque terrorista do 11de Setembro ou o líder da Al-Qaeda, Bin Laden.

Esta produtiva e invulgar bicefalia criativa tomou Giraud/Moebius o "Janus da BD francesa", como notou o critico Didier Pasamonik, num homem cuja ampla paleta gráfica, estática e temática o levou a ser "ao mesmo tempo clássico e moderno, experimentador e experimentado, popular sem ter medo de ser críptico, simultaneamente racional e surreal, comercial e de vanguarda (...), mostrando em permanência as duas faces indissociáveis da nossa profissão".

Noutra entrevista, esta ao site ActuaBD (www.actuabd.com), o autor comentaria assim a sua dualidade: "Estes dois mundos estão em competição, mas olhando-os mais de perto, vemos que existem em complementaridade, alimentam-se um ao outro (...) Será sorte ou uma maldição ser um dos raros [autores] a ter um pé nos dois níveis? O da cultura popular e uma corrente mais de pesquisa, apesar da minha educação clássica bem preenchida mas com lacunas. É por isso que sou ao mesmo tempo muito clássico e muito vulgar, ao participar nessa aculturação popular."

O dois-em-um

Para quem que se reclamava de criar parcialmente num transe aparentado com os dos xamãs (Giraud/Moebius, era, entre outros, leitor do charlatão Carlos Castañeda (3)), o criador de Arzak sabia discorrer articuladamente e com toda a clareza sobre as duas facetas da sua identidade artística. Na sua obra coexistem as visões mais detalhadamente descritivas e realistas do mundo envolvente com as visões mais irracionais e surreais de outros mundos. Giraud/Moebius passava de uma à outra com a naturalidade com que mudamos de divisão em casa, pondo e tirando ora o chapéu de cowboy ora o capacete de cosmonauta e o gorro mágico.

Esse dom de conseguir ser "dois em um" conduziu Giraud/Moebius a trabalhar no cinema, e em projetos de FC e fantásticos como, entre outros, Alien - O Oitavo Passageiro, de Ridley Scott, onde concebeu os fatos espaciais e de bordo, Os Mestres do Tempo, de René Laloux (o storyboard), Tron, de Steven Lisberger (também o storyboard), O Quinto Elemento, de Luc Besson (todos os décors, em colaboração com Jean-Claude Mézières, co-autor de Valérian com Pierre Christin, que conduziu mais tarde a um processo judicial que o opôs, e a Jodorowsky, ao realizador, acusando este de ter plagiado visualmente a série O Incal, e desprezado o seu trabalho com Mézières) ou a animação nipo-americana de longa-metragem Little Nemo (colaboração no argumento e conceção dos cenários e dos fatos), ou uma versão não concretizada de Duna, de David Lynch, ainda com Jodorowsky, isto sem esquecer os jogos de vídeo.
(Em 1999, abriu em São Francisco, nos EUA, uma sala de videogames e um bar inspirados em Le Garage Hermétique, de Moebius).

Ao contrário de outros grandes autores franco-belgas com obra muito vasta e atravessando uma série de décadas e épocas, Giraud/Moebius nunca quis funcionar em regime de' estúdio, e delegar noutros desenhadores parte do trabalho, embora Blueberry tenha sido também assinado por nomes como William Vance (4), quando o seu co-criador estava a braços com outras tarefas e projetos que lhe ocupavam quase todo o tempo e esgotavam a disponibilidade. O percurso de Giraud/Moebius é tanto mais interessante porque o autor nunca se deixou fixar num estilo, numa personagem ou numa estética, não ficou preguiçosamente monotemático nem a gerir lucrativamente um herói ou uma série, embora devesse ao sucesso mundial de Blueberry o desafogo financeiro para trabalhar com a jaqueta de Moebius, o que aliás nunca procurou esconder, já que se orgulhava da próspera existência comercial do oficial de cavalaria mais famoso da BD franco-belga, que lhe permitiu dedicar-se "a coisas mais experimentais e diversas".

O desenhador jamais deixou de experimentar, de inovar sempre, de correr a vários carrinhos criativos ao longo das várias décadas que durou a sua carreira, com os mais variados estímulos e intenções. A singularíssima série Inside Moebius, por exemplo, é em parte devida "ao fim de um período de inocência, quando a questão da minha doença se pôs: porque é que eu deixei entrar este linfoma em mim?". E nela surgem também preocupações como a forma de concluir as aventuras de Blueberry, com Moebius a desenhar-se, com muita graça, a ser ameaçado pela personagem, que de Colt na mão e cara de poucos amigos lhe exige a conclusão dos argumentos. (A morte impediu que o projeto de Blueberry 1900 chegasse às mãos dos leitores).

Por vários caminhos

A sua obra, que começa nos anos 50 do século passado, quando ainda reluzia o ouro da grande época da BD franco-belga, cruza o tempo agitado das revoluções e manifestações contraculturais e as grandes mutações daquela nas décadas de 60 e 70, furtando-se sempre a escolas ou movimentos, mesmo quando Moebius participa diretamente nessas convulsões (a fundação da editora Les Humanoides Associés e da revista Metal Hurlant, em 1975, por exemplo), e continuando a procurar novos caminhos formais, novas histórias para contar, outros universos para pormenorizar. Há quem aponte, por exemplo, que Jean Giraud e Moebius, e o western e a FC que cada um deles corporiza, estiveram em vias de se fundir na nova versão de Arzak, Arzak l'Arpenteur, editada em 2010, tendo o autor admitido na citada entrevista ao site ActuaBD, que havia no álbum uma tentativa de "síntese" entre os seus dois "eus" e os respetivos universos narrativos e gráficos, e sobretudo no que neles existe de "racional e irracional".

Jean Giraud/Moebius tinha também a noção de que as suas duas identidades artísticas, e os respetivos universos que daí brotaram, dividiam claramente as águas entre muitos dos seus leitores, que formavam dois grandes campos. Uma boa parte deles, mais ligados à BD clássica, apreciava a série Blueberry mas torcia o nariz todo, ou quase todo, à produção saída da pena de Moebius. Outra parte, mais jovem e nascida para a banda desenhada na década de 60, plebiscitava Moebius acima de Jean Giraud. Mas sempre houve quem circulasse sem problemas entre um mundo gráfico e outro, independentemente da geração a que pertencia ou das preferências em BD que revelava, percebendo que, embora representando duas escolas antípodas, por trás delas estava o mesmo desenhador; com uma mão firmemente na expressão clássica e outra avidamente ligada à expressão da modernidade.

O rapazinho nascido em Nogent-sur-Marne, a 8 de maio de 1938, a quem a mãe cedo reconheceu talento para o desenho e a pintura, e que se estreou em meados dos anos a assinar bandas desenhadas em revistas para jovens como Fiction, Sitting-Bull, Fripounet et Marisette ou Coeurs Vaillants, haveria de se tornar um dos nomes mais aclamados da BD contemporânea, com uma exposição retrospetiva na Fundação Cartier, e receber prémios tão variados como o Yellow Kid, o Grande Prémio de Angoulême, o Eisner Award, o World Fantasy Award na categoria de Arte ou o Max & Moritz, só para enumerar os de maior prestígio internacional.

Três "figuras paternais" ou "pais iniciadores" são reconhecidos pelo autor como fundamentais na sua vida criativa: Jijé (pseudónimo de Joseph Gillain, o criador de outra das grandes séries western da BD franco-belga, Jerry Spring, de quem Jean Giraud foi assistente, e o recomendou a Jean-Michel Charlier para desenhar Blueberry (que começou por ter a fisionomia de Jean-Paul Belmondo), iniciou a publicação na revista Pilote e cujo primeiro álbum Forte Navajo, sai em 1963, tornando-se uma das principais séries realistas da BD de língua francesa, revolucionando ao mesmo tempo o género western; o próprio Charlier, seu argumentista em parte da série Blueberry e que, como experimentado veterano do ofício, o iniciou nos caminhos da 9ª Arte; e Alejandro Jodorowsky, cuja colaboração em O Incal na década de 80, e influência intelectual, o desenhador aponta como importantíssimas no rumo que a sua obra tomaria na vertente fantástica.

O fôlego criativo e a capacidade de trabalho de Giraud/Moebius são verdadeiramente impressionantes. Além das séries e álbuns já enumerados, e das referidas colaborações no cinema, assinou ainda, por exemplo, "páginas de atualidade" e L'homme est-il bom? no Pilote; histórias completas soltas no Total Journal; Cauchemar Blanc no Echo des Savanes, e o primeiro álbum de outra série western, Jim Cutlass, igualmente com argumento de Jean-Michel Charlier; Double Evasion e Citadelle Aveugle nas páginas da Metal Hurlant (co-fundada por si, Jean-Pierre Dionnet (5), seu argumentista no “improvisado” Le Garage Hermétique, Philippe Druillet (6) e Bernard Farkas (7); um episódio das aventuras do super-herói americano Silver Surfer, com argumento de Stan Lee, quando da sua estadia nos EUA, nos anos 80, onde teve uma aventura comercial falhada, em associação com a mulher, Claudine; o ciclo Le Monde d'Edena, na revista À Suivre, os argumentos de um novo ciclo de aventuras de Blueberry, Marshall Blueberry, Le coeur couronné, de novo em colaboração com Jodorowsky, e mais uma vez para Les Humanoides Associés, e Griffes d'Ange; The Irish Version, um álbum da serie XIII, de Van Hamme (8) e do seu amigo e colaborador William Vance; os argumentos de La Nuit de l'etoile e Cristal majeur, com desenhos de Marc Bati; e até mesmo um CD-ROM, ao lado de Paulo Coelho, Pilgrim; ou um livro com as suas pinturas, Quatre-Vingt-Huit, editado em 1990 pela Casterman, e uma obra erótica coletiva com a chancela dos Humanoides Associés, Ode à l'X. E ainda ficaram algumas outras por enumerar, entre ilustrações, bandas desenhadas a solo ou em colaboração e projetos de cinema interrompidos.

Em 1991, foi publicada, sob a forma de livro, uma série de entrevistas com Numa Sadoul (9), Moebius, entretiens avec Numa Sadoul, que anos antes tinha sido editado com outro título e numa versão mais curta, Mister Moebius et Docteur Gir.

Por ocasião da morte de Jean Giraud/Moebius, o desenhador, escritor e crítico de BD Benoit Peeters escreveu: "Não sei se é a hora de construir panteões. Mas se a banda desenhada deve erigir um, Moebius certamente faz parte dele, ao lado de Topffer, McCay, Herrimann, Hergé, Franquin, Goscinny, Tezuka e alguns outros (estou apenas a citar os desaparecidos). Porque, primeiro que tudo, ele era um prodigioso artista. Porque se tinha imposto em géneros e estilos espantosamente diversos. Porque é um daqueles que fizeram realmente crescer a banda desenhada ao mesmo tempo que os seus leitores. Porque amava prodigiosamente este meio artístico, mesmo se nunca se privava de ultrapassar as suas fronteiras. Mas também porque era uma verdadeira personagem: estávamos sempre curiosos de ver o que pensava, que surpresa estava a preparar, em que nova aventura se ia lançar. Mesmo as suas derivas e a forma como às vezes se perdia tinham qualquer coisa de fascinante. Há muitos grandes autores hoje, mas havia apenas um só Moebius-Giraud-Gir.”

Notas:
(1) Jean-Michel Charlier (1924-1989) foi um dos maiores e mais produtivos argumentistas da BD franco-belga, sendo o autor de series como Dan Cooper, Tanguy e Laverdure, A Patrulha dos Castores ou Barba-Ruiva.
(2) Alejandro Jodorowsky (n. 1929) é um realizador, autor, encenador e argumentista chileno, ligado à chamada "psicomagia". Realizou filmes de culto como El Topo (1970) e Santa Sangre (1989)
(3) Carlos Castañeda (1925-1998) foi um antropólogo americano, estudioso do fenómeno do xamanismo, a que acabou por se dedicar e endossar.
(4) William Vance é o pseudónimo do autor belga de BD William van Cutsem (n. 1935), desenhador de séries como Bob Morane, Bruno Brazil ou XIII.
(5) Jean-Pierre Dionnet (n. 1947) é um argumentista, produtor e apresentador de televisão francês, que trabalhou em revistas como Pilote, L'Echo des Savanes ou Metal Hurlant, que cofundou.
(6) Philippe Druillet (n. 1944) é um autor francês de BD, criador de obras como a saga de Lone Sloane, Vuzz ou Nosferatu, e co-fundador da revista Metal Hurlant.
(7) Bernard Farkas foi cofundador e diretor financeiro da revista Metal Hurlant.
(8) Jan Van Hamme (n.1939) é um escritor argumentista de BD belga, autor de títulos como Thorgal, Largo Winch, XIII e de três álbuns da série Blake e Mortimer após a morte do seu autor, E.P. Jacobs.
(9) Numa Sadoul (n. 1947) é um autor e historiador de banda desenhada francês, autor de livros de entrevistas com desenhadores como Hergé, Franquin ou Tardi.


Ilustração de Gonçalo Alho

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