OS HERÓIS
QUE HERGÉ CRIOU POR
ENCOMENDA
Por Eurico de Barros
Em
1936, a revista católica 'Coeurs Vaillants' pediu ao 'pai' de Tintin
uma série para-as crianças e as famílias
da classe média belga. E assim
nasceu 'Jo, Zette et Jocko', que Hergé
abandonaria apos três aventuras, divididas por cinco álbuns.
Uma edição
integral da Casterman junta-os.
No início da década de 60, Hergé pediu ao seu
colaborador e distinto autor de banda desenhada Bob de Moor que transformasse o
argumento
de Tintin, et le Thermozéro, uma aventura de Tintin que abandonara e que tinha a assinatura de Michel
Greg (1), numa história da série Jo, Zette e Jocko, que se chamaria simplesmente Le Thermozéro. Hergé tinha vontade de retomar
a série, cujo
último álbum,
La Vallée
des Cobras,
tinha saído em 1957, mas o projeto acabou por ser posto de parte porque Bob de Moor (2)
teve de ajudar
o criador de
Tintin, a
modernizar o álbum A Ilha Negra, e Hergé nunca mais voltou a pegar em Jo, Zette e Jocko.
Os cinco álbuns
da série, que correspondem na realidade a três aventuras, já que
as duas primeiras histórias foram remontadas, coloridas e divididas em quatro álbuns por
razões editoriais, foram finalmente
reunidos num só volume pela Casterman, intitulado
Les Aventures de Jo, Zette et Jocko, e que inclui
Le Testament de M. Pump e Destination
NewYork (sob o titulo geral Le StratonefH 22), Le
"Manitoba" ne Répond Plus e L’Eruption
du Karamako (sob o
titulo geral Le Rayon du Mystère) e La
Vallée des Cobras (esta chamou-se originalmente,
nos anos 30, Jo et Zette au Pays du Maharadjah e a sua
publicação ficou incompleta na altura). A esta edição falta, no entanto, o
aparato histórico e crítico, bem como o material de arquivo que
habitualmente encontramos nas "integrais" dos heróis da
banda desenhada franco-belga, o que a empobrece aos olhos do leitor
e do colecionador.
Ao contrário
de Tintin, e de Popol e Virginie e Quick et Flupke, a série Jo, Zette e Jocko foi a única
criada por Hergé que resultou de um pedido. Em 1936, os diretores da revista católica
para jovens Coeurs Vaillants solicitaram a
Hergé que pensasse na criação de uma
aventura cujos protagonistas não vivessem, como Tintin, num vácuo
familiar, biográfico e profissional, e com os quais as famílias
e as crianças da classe média belga se pudessem identificar. Hergé
recordou a Numa Sadoul (3), no seu livro de entrevistas Tintin et Moi, a génese de
Jo, Zette e Jocko: "A direção da revista [Coeurs
Vaillants] disse-me mais ou menos isto: 'Sabe, o seu Tintin não está nada mal, não senhor.
Gostamos todos muito dele. Mas não ganha a vida, não vai a escola, não tem pais, não come, não
dorme... Não é muito lógico. Não podia criar uma
personagem cujo pai trabalhe, que tenha uma mãe, uma irmã, um animalzinho
de estimação?".
Nessa altura, Hergé
estava a fazer um trabalho publicitário para uma firma de brinquedos
e tinha vários em casa para se inspirar. Entre
eles estava um chimpanzé de peluche chamado Jocko. E foi a partir dele que o
autor criou a família Legrand, composta pelo pai,
engenheiro de profissão, pela mãe, dona de casa, pelos irmãos Jo e Zette, de 11e dez
anos, respetivamente (vestem-se sempre da mesma
maneira, a exemplo de Tintin e das outras personagens da sua "família"),
e pelo chimpanzé Jocko, que fala consigo mesmo, tal como Milou, mas não com os humanos. Jo e Zette
tiveram como antecedentes um duo de irmãos, Antoine e Antoinette, que
Hergé criou para serem os heróis de seis pranchas publicitárias
da marca de chocolates belgas Antoine, que não
foram assinadas pelo autor nem datadas. Curiosamente, esta aventura publicitária
levava como titulo... A Bola
de Cristal. Antoine e Antoinette tinham também animais de estimação, um
cão, Plouf (no qual
se reconhecem traços de Milou), e um papagaio chamado Dropsy.
Segundo conta Benoît Peeters (4) no
seu monumental Le Monde d'Herge, "apesar
de toda a sua boa vontade, Hergé nunca se sentiu muito confortável
com esta série, por causa da multiplicidade de
constrangimentos que lhe eram impostas e da artificialidade
da construção do conjunto". Hergé explicou assim a situação a Numa Sadoul, no livro citado:
"Foi preciso antes de mais arranjar uma profissão ao pai, uma profissão
que o fizesse viajar: muito bem, engenheiro servia bem. Mas, além disso, o papá
e a mamã passavam a maior parte do tempo a soluçar e a interrogar-se sobre a
sorte dos seus queridos filhos que desapareciam em todas as direções. Era então
preciso fazer viajar toda a família: era uma maçada! Decidi então desistir...
Tintin, pelo menos, é livre! Feliz Tintin! Recorda-me a frase de Jules Renard
(5): 'Nem
toda a gente tem a sorte de ser órfão'."
Mesmo assim, Hergé ainda desenhou cinco aventuras de Jo, Zette e Jocko
entre 1936 e 1954, sendo que a versão para álbum da última, La Vallée des
Cobras, foi em grande parte da responsabilidade de Jacques Martin, o
criador de Alix, com uma ajudinha de Bob de Moor.
Apesar de ter sido criada para a Coeurs Vaillants, a série passou depois
para o suplemento juvenil Le Petit Vingtième, do diário Le Vingtième
Siécle, a "casa" de Tintin, sendo mais tarde também publicada nas
páginas do Tintin belga. Mesmo tendo em conta o enquadramento convencional em que
surgiram, Jo, Zette e Jocko apresentam varias características interessantes, e
as suas aventuras são uma combinação de elementos, personagens e situações
feitas clássicas das histórias juvenis de banda desenhada da sua época, e do génio
criativo de Hergé e das estruturas narrativas que ele privilegiava, e que se
harmonizam de forma bem mais feliz do que alegam alguns dos que menosprezam
esta série como sendo menor na obra do "pai" de Tintin.
'Les Aventures de Jo, Zette et Jocko'
de Hergé
Casterman, 272 págs.
TSBN-978-2-203-01611-8
23,75 euros, na amazon.fr
Mesmo dependendo da ajuda dos pais
e dos adultos em geral para se saírem bem das complicações em que se
envolvem, sempre relacionadas com a profissão do pai, Jo e Zette são também heróis
inteligentes, voluntariosos e corajosos, que usam estas qualidades para levarem
a sua avante, o que faz com que se desenvolva uma forte identificação entre
eles e os leitores.
Tal como sucede nas histórias de Tintin, as de Jo, Zette e Jocko contêm
elementos de aventura tradicional, de espionagem e de ficção científica,
ambientando-se muitas vezes em regiões distantes. Benoît Peeters nota que nelas
encontramos coisas para que Hergé "não arranjou espaço nas aventuras de
Tintin". Mas há
também outras que não estariam deslocadas nas histórias deste, nomeadamente a
tecnologia (Le "Manitoba" ne Répond Plus e L'Eruption du
Karamako são particularmente inventivos neste aspeto). E também o sentido
de humor de Hergé e o seu gosto pelos gags bem concebidos estão por toda
a parte nas aventuras de Jo, Zette e Jocko (ver tudo o que se refere à figura
do milionário norte-americano Pump, fanático da velocidade e que acaba por ser
vitima de si mesmo em Le Testament de M. Pump). E ainda, tal como Milou, também o chimpanzé
Jocko se mete em confusões paralelas às dos seus donos, muitas vezes com
outros animais. Hergé não resistiu a fazer pequenas piscadelas de olho ao universo
de Tintin nas histórias de Jo, Zette e Jocko. Por exemplo, o observador mais
atento não deixara de reparar no retrato do capitão Haddock pendurado na parede
da sala da família Legrand em Le Testament de M. Pump.
Em 1972, a longa-metragem animada Tintin e o Lago dos Tubarões foi buscar ideias a Le "Manitoba"
ne Réponds Plus e L'Eruption du Karamako. Em Portugal, Jo, Zette e
Jocko chamaram-se Joana, João e o Macaco Simão, e estrearam-se na revista Zorro
em 1964. As suas cinco
aventuras, traduzidas como O Testamento do Sr. Pump, Destino Nova Iorque,O
'Manitoba' não Responde, A Erupção
do Karamako e O Vale das Cobras, foram editadas pela Verbo na década
de 80. Ao que parece, existe nos arquivos da Fundação Herge um esboço completo
do álbum Le Thermozéro feito por Bob de Moor.
(1) Michel Greg
(193l-1999) foi um dos maiores argumentistas e
autores da banda desenhada franco-belga, chefe de redação da revista Tintin
e criador de personagens como Achille Talon.
(2) Colaborador muito próximo de Herge, Bob de Moor (1925-1992) era o pseudónimo do desenhador
Robert Frans Marie de Moor, que terminou o álbum
inacabado de E. P. Jacobs Mortimer contra Mortimer, da série Blake e
Mortimer.
(3) Numa Sadoul
(n. 1947) é o autor de vários livros de entrevistas com
grandes autores de banda desenhada, caso de Hergé, Uderzo ou Franquin, bem como de obras sobre
Gotlib e Moebius.
(4) Romancista, crítico e argumentista de banda desenhada,
Benoît Peeters (n.1956)
é o especialista na obra de Hergé, a que já dedicou vários livros.
(5) Jules Renard
(1864-1910) foi um escritor e dramaturgo
francês, cofundador da revista literária Mercure de France.
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