Diário de Notícias, sábado, 22 de Março de 2014
JIJÉ
O MESTRE DA BD
APAIXONADO PELA PINTURA
por Eurico de Barros
Assinala-se este ano o centenário do nascimento de Jijé (Joseph Gillain), criador de Jerry Spring, esteio da revista Spirou, gigante da BD e grande mas pouco conhecido pintor. A Bedeteca de Beja dedicou-lhe uma exposição, que incluiu um quadro pintado em Portugal nos anos 60.
Nos anos 30 e 40, Jijé, aliás Joseph Gillain, era um muito sério rival de Hergé, e o seu talento de desenhador era comparado ao do criador de Tintin, e até mesmo considerado superior a este por alguns. Um dos esteios históricos da revista Spirou, fundada alguns anos antes da sua rival Tintin, Jíjé já pedia meças a Hergé quando este publicava as aventuras de Tintin no Petit Vingtième, o suplemento juvenil do diário belga Le Vingtième Siècle, e ambos os títulos eram dirigidos à significativa comunidade católica da Bélgica.
Hergé e Jijé corporizam também as duas grandes escolas rivais de banda desenhada (BD) belga, respetivamente a escola de Bruxelas, formada por aquele e pelos seus colegas e discípulos da revista Tintin (Jacobs, Cuvelier, Laudy, Le Rallic, Vandersteen, Martin, etc.), mais tarde classificados como cultores da "linha clara", e a escola de Marcinelle (1), representada pela revista Spirou, onde militavam Jijé, um grande admirador de Milton Caniff, e os seus amigos e seguidores (Franquin, Morris, Will, Peyo, Roba, Paape, Jidéhem, etc.), graficamente mais individualizada e dada ao humor e à fantasia.
Mas se Hergé decidiu concentrar-se em Tintin e transformá-lo num herói e numa marca universal, investindo com inteligência na edição de álbuns das suas histórias, Jijé, além de ter criado Jerry Spring, a primeira grande série western realista da BD europeia, e de ter "dado" a Spirou o seu amigo e companheiro de aventuras Fantasio, ficou conhecido por criar ou desenvolver personagens e passá-las depois a outros (Spirou a Franquin, após o ter por sua vez herdado do seu criador, Rob-Vel, Jean Valhardi a Paape, ou Lourinho e Escarumba a Hubinon, por exemplo), por retomar séries já existentes (Tanguy e Laverdure, Barba-Ruiva), por se dividir calmamente entre o desenho realista e humorista e dedicar-se não só à banda desenhada mas também à pintura (o seu grande amor), à escultura ou à ilustração (era formado em Belas Artes, tendo sido aluno do pintor neo-impressionista Alexandre Daoust).
Esta dispersão do seu talento – e mesmo apesar do sucesso de Jerry Spring, o seu herói de referência e um clássico da banda desenhada – impediu-o de se tomar num autor tão conhecido e celebrado como Hergé (não que o hiperativo Jijé se importasse muito com isso).
O ano de 2014 marca o centenário do nascimento de Jijé (1914-1980), que está a ser assinalado com a publicação integral e cronológica da sua obra em Tout Jijé (18 volumes), com a reedição das aventuras de Jerry Spring a preto e branco (cinco volumes) e a publicação de Quand Gillan Raconte Jijé, uma compilação de entrevistas dadas ao longo de vários anos pelo autor a François Deneyer, especialista do autor, ilustrada com pranchas, desenhos, pinturas, ilustrações e esboços.
Portugal, onde a obra de Jijé, em especial as histórias de Jerry Spring, foram publicadas no Cavaleiro Andante, Zorro, Mundo de Aventuras, Spirou e Jornal da BD, e editadas em álbum pelas desaparecidas edições 70 (2), não ficou alheio à efeméride. Até dia 27, pôde ser visitada na Bedeteca de Beja a exposição "Jijé Nasceu Há 100 Anos", que, entre outro material, incluiu a reprodução de um quadro pintado por Jijé na Nazaré, nos anos 60, quando o autor visitou o nosso país, cedido pelo seu neto Romain Gillain.
Além do seu génio gráfico diverso e do profundo apego aos valores estéticos e éticos tradicionais em que foi educado, e que exibiu não só nas séries mencionadas mas também em biografias didáticas como as de São João Bosco (que salvou da falência a Editorial Dupuis na Segunda Guerra Mundial), Cristóvão Colombo, Jesus Cristo e Baden Powell, nas séries americanas .que retomou durante a ocupação alemã (Red Ryder e Super-Homem), nos Enquêtes du Comissaire Major ou em histórias soltas como Blanc Casque, Bernadette ou El Senserenico, entre vários outros, Jijé distinguiu-se ainda como mentor e catalisador de inúmeros dos maiores talentos da sua geração, reunidos na revista Spirou e na Dupuis, e como figura influente dos membros de uma geração. seguinte, nomeadamente Hermann, Derib e Giraud, que foi seu aluno e cujo Tenente Blueberry muito lhe deve. Tal como o Comanche, de Hermann, e o Buddy Longway, de Derib estão em estilo e espírito marcados por Jerry Spring.
Jijé trabalhou ainda com argumentistas e desenhadores como Goscinny, Rosy, Mouminoux, Charlier, Lob ou o seu filho Philippe Gillain, chegando até a colaborar com outro dos seus filhos, Benoît, o mais velho, numa série de míni-histórias promocionais e educativas patrocinadas por uma grande marca belga de detergentes.
A seguir ao nome de Jijé lê-se muitas vezes "o pai da banda desenhada belga". Um pai que deixou numerosa e variadíssima prole, que gostava de se definir antes de tudo como pintor e nunca deixou de se dedicar à pintura e à escultura paralelamente à BD. É uma faceta que continua ainda bastante desconhecida dos que admiram e celebram Jijé pela sua obra na Nona Arte.
(1) A "Escola de Marcinelle" é assim chamada por ser nesta cidade belga que está instalada a Editorial Dupuis, que publica- a revista Spirou.
(2) Nota do Kuentro: as Edições 70 não desapareceram, foram simplesmente compradas pelo Grupo Almedina, juntando-se ao grupo.
Nos anos 30 e 40, Jijé, aliás Joseph Gillain, era um muito sério rival de Hergé, e o seu talento de desenhador era comparado ao do criador de Tintin, e até mesmo considerado superior a este por alguns. Um dos esteios históricos da revista Spirou, fundada alguns anos antes da sua rival Tintin, Jíjé já pedia meças a Hergé quando este publicava as aventuras de Tintin no Petit Vingtième, o suplemento juvenil do diário belga Le Vingtième Siècle, e ambos os títulos eram dirigidos à significativa comunidade católica da Bélgica.
Hergé e Jijé corporizam também as duas grandes escolas rivais de banda desenhada (BD) belga, respetivamente a escola de Bruxelas, formada por aquele e pelos seus colegas e discípulos da revista Tintin (Jacobs, Cuvelier, Laudy, Le Rallic, Vandersteen, Martin, etc.), mais tarde classificados como cultores da "linha clara", e a escola de Marcinelle (1), representada pela revista Spirou, onde militavam Jijé, um grande admirador de Milton Caniff, e os seus amigos e seguidores (Franquin, Morris, Will, Peyo, Roba, Paape, Jidéhem, etc.), graficamente mais individualizada e dada ao humor e à fantasia.
Mas se Hergé decidiu concentrar-se em Tintin e transformá-lo num herói e numa marca universal, investindo com inteligência na edição de álbuns das suas histórias, Jijé, além de ter criado Jerry Spring, a primeira grande série western realista da BD europeia, e de ter "dado" a Spirou o seu amigo e companheiro de aventuras Fantasio, ficou conhecido por criar ou desenvolver personagens e passá-las depois a outros (Spirou a Franquin, após o ter por sua vez herdado do seu criador, Rob-Vel, Jean Valhardi a Paape, ou Lourinho e Escarumba a Hubinon, por exemplo), por retomar séries já existentes (Tanguy e Laverdure, Barba-Ruiva), por se dividir calmamente entre o desenho realista e humorista e dedicar-se não só à banda desenhada mas também à pintura (o seu grande amor), à escultura ou à ilustração (era formado em Belas Artes, tendo sido aluno do pintor neo-impressionista Alexandre Daoust).
Esta dispersão do seu talento – e mesmo apesar do sucesso de Jerry Spring, o seu herói de referência e um clássico da banda desenhada – impediu-o de se tomar num autor tão conhecido e celebrado como Hergé (não que o hiperativo Jijé se importasse muito com isso).
O ano de 2014 marca o centenário do nascimento de Jijé (1914-1980), que está a ser assinalado com a publicação integral e cronológica da sua obra em Tout Jijé (18 volumes), com a reedição das aventuras de Jerry Spring a preto e branco (cinco volumes) e a publicação de Quand Gillan Raconte Jijé, uma compilação de entrevistas dadas ao longo de vários anos pelo autor a François Deneyer, especialista do autor, ilustrada com pranchas, desenhos, pinturas, ilustrações e esboços.
Portugal, onde a obra de Jijé, em especial as histórias de Jerry Spring, foram publicadas no Cavaleiro Andante, Zorro, Mundo de Aventuras, Spirou e Jornal da BD, e editadas em álbum pelas desaparecidas edições 70 (2), não ficou alheio à efeméride. Até dia 27, pôde ser visitada na Bedeteca de Beja a exposição "Jijé Nasceu Há 100 Anos", que, entre outro material, incluiu a reprodução de um quadro pintado por Jijé na Nazaré, nos anos 60, quando o autor visitou o nosso país, cedido pelo seu neto Romain Gillain.
Além do seu génio gráfico diverso e do profundo apego aos valores estéticos e éticos tradicionais em que foi educado, e que exibiu não só nas séries mencionadas mas também em biografias didáticas como as de São João Bosco (que salvou da falência a Editorial Dupuis na Segunda Guerra Mundial), Cristóvão Colombo, Jesus Cristo e Baden Powell, nas séries americanas .que retomou durante a ocupação alemã (Red Ryder e Super-Homem), nos Enquêtes du Comissaire Major ou em histórias soltas como Blanc Casque, Bernadette ou El Senserenico, entre vários outros, Jijé distinguiu-se ainda como mentor e catalisador de inúmeros dos maiores talentos da sua geração, reunidos na revista Spirou e na Dupuis, e como figura influente dos membros de uma geração. seguinte, nomeadamente Hermann, Derib e Giraud, que foi seu aluno e cujo Tenente Blueberry muito lhe deve. Tal como o Comanche, de Hermann, e o Buddy Longway, de Derib estão em estilo e espírito marcados por Jerry Spring.
Jijé trabalhou ainda com argumentistas e desenhadores como Goscinny, Rosy, Mouminoux, Charlier, Lob ou o seu filho Philippe Gillain, chegando até a colaborar com outro dos seus filhos, Benoît, o mais velho, numa série de míni-histórias promocionais e educativas patrocinadas por uma grande marca belga de detergentes.
A seguir ao nome de Jijé lê-se muitas vezes "o pai da banda desenhada belga". Um pai que deixou numerosa e variadíssima prole, que gostava de se definir antes de tudo como pintor e nunca deixou de se dedicar à pintura e à escultura paralelamente à BD. É uma faceta que continua ainda bastante desconhecida dos que admiram e celebram Jijé pela sua obra na Nona Arte.
(1) A "Escola de Marcinelle" é assim chamada por ser nesta cidade belga que está instalada a Editorial Dupuis, que publica- a revista Spirou.
(2) Nota do Kuentro: as Edições 70 não desapareceram, foram simplesmente compradas pelo Grupo Almedina, juntando-se ao grupo.
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Jijé Nasceu Há 100 Anos
Exposição [que esteve] patente na Bedeteca de Beja
até dia 27 de Março
Joseph Gillain, óleo de 1946
(atenção: não foi esta a pintura exposta na Bedeteca - o quadro acima
veio do blogue BD no Sótão - daqui: http://bd-no-sotao.blogspot.pt/2014/03/blog-post_2070.html)
Tout Jijé
5 volumes
Dupuis
22,80 euros cada na amazon.fr
Quand Gillain raconte Jijé
François Deneyer /Jijé
Dupuis
400 páginas
42,75 euros na amazon.fr
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Homenagem de Derib, Giraud e Hermann a Jijé
Joseph (a trabalhar numa escultura), Annie e Benoît Gillain em Bouvignes (1938)
Joseph Gillain em 1965
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