«O Mosquito» começou com uma tiragem de 5 000 exemplares e era distribuído, inicialmente, pelo Diário de Noticias. No número 6 já ia com uma tiragem de 10 000 exemplares. A maior tiragem foi de 30 000 exemplares, duas vezes por semana, ou seja, 60 000 ao todo, e deu-se quando «O Mosquito» mudou, pela primeira vez, do formato grande para o formato pequeno.
Talvez, em parte. Mas foi principalmente por causa das revistas brasileiras, que inundavam tudo, com um português péssimo.
Não sei. A distribuidora, no final, funcionava bastante mal e devolvia-nos quase tudo, certamente sem o ter chegado a distribuir. Nem sequer dava para revender «O Mosquito», como agora fazem alguns editores.
Sabe que eu gosto muito do Hal Foster? Se não publicámos mais autores americanos foi porque não tínhamos possibilidades económicas de o fazer. Não tínhamos os dólares que as agências distribuidoras pediam.
Prince Valiant (Príncipe Valente), de Hal Foster
D.D. - As
séries inglesas eram, então, mais baratas?
R.C. - Sim! Incomparavelmente mais baratas. Os preços da King Features Syndicate, pelo contrário, eram incomportáveis.
D.D. - A novela, de sua autoria, «Os Cavaleiros da Espada» seguia a H.Q. inglesa original, ou apenas eram aproveitadas as gravuras, para ilustrar um texto novo?
R.C. - O texto era inteiramente novo. Eu só escolhia as melhores gravuras e as que melhor se adaptavam ao texto. Eram dum desenhador inglês muito bom, que parece ter morrido durante a guerra.
D.D. - Chamava-se Reg Perrott. A data e as causas da morte são ainda obscuras. Desejava agora que me esclarecesse sobre a identidade de alguns autores de novelas, cujos nomes, às vezes, me parecem pseudónimos. Por exemplo: quem era Cardador?
R.C. - Chamava-se Lúcio Francisco Cardador. Fazia umas boas novelas, mas com ortografia péssima, que eu tinha grande trabalho em corrigir.
D.D. - Para simplificar a questão, vou dar-lhe uma lista de nomes, para que lhes faça a identificação possível.
R.C. - Robert Bess era José Padinha, um homem que veio de Africa. Peter Tenerife, Gusmão Pó e Montesdeoca eram também o Padinha. Quanto a Juan Le Guanche, não sei. Talvez fosse também o Padinha.
D.D. - Há ainda
muitas novelas, sem qualquer nome de autor. Poderia identificá-las?
R.C. - Vejamos: «O Falcão da Pradaria» - Raul Correia; «O País dos Ventos Ululantes» - José Padinha; «O Vale do Silêncio» - Raul Correia; «O Punhal do Imperador» - José Padinha?; «O Juramento de Águia Negra», «Um Caçador Fez testamento», «Quero Ser Palhaço», «Tobias Contou a História» - José Padinha? Quanto a «O Príncipe e o seu Fantasma», sabia que muitas dessas histórias eram adaptações de histórias inglesas? Essa, por exemplo, era de ficção científica. Eu nunca escreveria ficção científica, género que detesto.
D.D. - Sim, é um
género que denota grande falta de imaginação.
R.C. - Pois é. Inventa-se um planeta estranho, fabricam-se uns habitantes desse planeta, e, no fim, fazemo-los actuar como se tivessem um comportamento humano. Ora, se houvessem outros tipos de vida, eles poderiam ser totalmente diferentes dos nossos. Até talvez nem fosse precisa a existência de água. Nós só falamos daquilo que já conhecemos.
D.D. - Alguma
vez «O Mosquito» teve problemas com a censura?
R.C. - Não, porque nós sabíamos defender-nos. Uma vez fomos chamados, eu, o Oliveira Cosme e o Adolfo Simões Muller, ao gabinete do tenente-coronel que dirigia os serviços. Disse-nos que havia certas palavras violentas que deviam ser cortadas, como a palavra «assassinar». E mostrava um exemplo. Era uma história do «Diabrete», em que aparece um personagem que diz para o outro: «Não te quero ver, assassino da minha honra!». Ora nós tentámos explicar ao senhor que a palavra assassino, naquele contexto, nada tinha que ver com assassinato.
D.D. - Deve ter
sido no «Pajem do Rei», ilustrado por Fernando Bento.
R.C. - E assim
por diante. Quem barafustava sempre mais era o Muller.
D.D. - Mas sempre houve retoques em algumas vinhetas de histórias de «O Mosquito», como no Buck Ryan e até numa história do Cuto...
R.C. - Sim, numa das últimas histórias do Cuto houve um desenho em que tivemos que lhe apagar a pistola, e o rapaz ficou com o dedo espetado a apontar para o inimigo, que parou aterrorizado...
D.D. - Era um
disparate.
R.C. - Um autêntico disparate. A novela onde tivemos mais censura foi uma história inglesa, onde havia cenas de grande violência. Tinha cortes que nunca mais acabavam. Mas, depois, parece que se fartaram, e o final já foi publicado sem nenhum corte.
D.D. - Parece
que o Jornal que teve mais problemas com a censura foi «O Mundo de Aventuras».
R.C. - Sim, em virtude
do tipo de histórias que publicava.
D.D. - Como era feita a distribuição de «O Mosquito» na província? É que eu vivi na província até 1951 e lembro-me que «O Mosquito» chegava a toda a parte e era sempre pontual. Até chegava a ser apregoado pelos ardinas, como se fosse um jornal diário.
R.C. - Inicialmente era distribuido pelo Diário de Notícias. Mais tarde, cerca de 1941, passou a ser distribuido pela «Editorial Organizações». Era uma distribuidora que se tinha separado do Diário de Noticias e que também entregava a «Eva». «O Mosquito» deixou de ser distribuido pelo Diário de Noticias porque eu me zanguei com eles. No que diz respeito à «Editorial Organizações», excepto nos últimos tempos, a distribuição era boa.
D.D. - Qual era
a percentagem de assinantes, no período de maior expansão?
R.C. - Cerca de 15%
das vendas.
D.D. - Sei que «O Mosquito» era enviado pelo correio dobrado em três, quando de formato grande, dobrado ao meio, quando de formato pequeno. Tinha cintas próprias?
R.C. - Sim, com um desenho idêntico ao do cabeçalho da revista. No início, as direcções eram preenchidas à mão por mim e pela minha mulher. Mais tarde, isso mudou.
D.D. - Guardou
alguma dessas cintas?
R.C. - Infelizmente
não.
D.D. - Gosfava de saber se o Eduardo Teixeira Coelho começou a trabalhar primeiro na Empresa de «O Mosquito» ou no «Senhor Doutor». Neste último jornal começou em 1942. Na Empresa «O Mosquito» começou nas «Engenhocas» e na «Colecção de Aventuras», também em 1942, mas é difícil estabelecer com exactidão, pois estas revistas não tinham data.
R.C. - Também não o posso esclarecer. Julgo que o E.T. Coelho teria publicado desenhos na secção dos leitores.
D.D. - Já percorri todas as secções de leitores, antes de 1942, e não vi lá nada que me parecesse do Coelho.
R.C. - Pois
deve ser confusão minha...
D.D. - Quem é
que o contactou? Foi o senhor Raul Correia ou foi o Cardoso Lopes?
R.C. -
Foi o Cardoso Lopes que o conheceu primeiro.
D.D. - Isso explicaria porque ele começou a desenhar nas «Engenhocas», que era uma especialidade de Cardoso Lopes. Gostaria de conhecer os nomes dos guionistas de Eduardo Teixeira Coelho. Por exemplo, quem foi o argumentista de «Os Guerreiros do Lago Verde»?
R.C. - Foi
José Padinha, bem como de «O Grande Rifle Branco» e de «O Feitiço do Homem
Branco».
D.D. - E em
«Os Náufragos do Barco Sem Nome»?
R.C. - Nessa
fui eu o argumentista.
D.D. - E.T. Coelho, nessa história, tem uma maquetização pouco habitual das pranchas, com assimetrias, leitura oblíqua, vinhetas sem cercadura, processos que não costumava usar. Acha que se inspirou nos trabalhos de Emílio Freixas?
R.C. - Acho
que não. O Coelho era um artista com muitas potencialidades.
D.D. - «Os Náufragos do Barco Sem Nome» pode ser considerado como um ensaio para «O Caminho do Oriente»?
R.C. -
Talvez...
D.D. - Nessa história o Coelho começou também a usar sistematicamente os balões, uma experiência rara, especialmente nas obras que fez em Portugal.
R.C. - Bom, é o eterno problema entre os balões e o texto por baixo. É verdade que neste último caso não se perturbou a beleza do desenho.
D.D. - Os desenhos de E.T.C, são muito valorizados pela boa utilização dos espaços em branco. Nas histórias que desenhou em França, os balões desfiguram, por vezes, o desenho.
R.C. - Nas
histórias que eu vi, os balões estavam colocados de maneira a poupar o desenho.
D.D. - Falemos
agora de «O Falcão Negro». Quem foi o guionista?
R.C. - Fui eu
que dei as linhas gerais, embora o Coelho tivesse liberdade para desenvolver o
argumento.
D.D. - No «Falcão Negro» há uma cena de tortura que é extremamente impressionante. Pelo menos, foi o que senti quando a li. Nessa altura tinha 9 anos e a cena chocou-me. De quem é a responsabilidade dessa cena?
R.C. - Que
cena de tortura é?
D.D. - O Falcão Negro ó amarrado a uma árvore e depois é-lhe cravado nas costas um galho aguçado que lhe vai rasgando a carne.
R.C. - Ah, já
sei. O responsável por esse episódio fui eu.
D.D. - Quem foi o argumentista de «Sigurd o Herói», a primeira H.Q. em que E.T. Coelho trata de vikings?
R.C. - Também
fui eu.
D.D. – E de «O Mensageiro»? Era uma história de cow-boys.
R.C. - Não
sei. Minha não é.
D.D. - E o guionista de «O Lobo Cinzento»?
R.C. - O argumento era meu, mas partia muitas vezes de desenhos que o Coelho fazia. O mesmo sucedeu com «A Lei da Selva», onde ele desenhava os leões e depois eu tinha que inventar a história. Passava dias inteiros no Jardim Zoológico a desenhar os animais. Quase que parecia que também passava lá as noites. Depois travou conhecimento com um oficial de cavalaria e então passava a vida a desenhar cavalos.
D.D. - Há ainda três histórias em que entram mouras encantadas, publicadas em períodos diferentes, duas na «Formiga» e uma em «O Mosquito». Têm alguns aspectos comuns, o que me leva a agrupá-las sob o titulo: «A Trilogia das Mouras». São «A Moura e o Mar», «A Moura e a Fonte» e «A Moura e o Dragão».
R.C. - Foi adaptado por mim, ou, pelo menos, foi inspirado num livro de contos, não sei se de Alexandre Herculano. Não me lembro.
D.D. - E as três últimas histórias do Falcão Negro, «Tempestade no Forte Benton», «As Vítimas do Sol» e «Terra Turbulenta»?
R.C. -
Também são minhas.
UMA ACHEGA DE JOSÉ RUY:"(...) Refiro-me à resposta da pergunta sobre os verdadeiros nomes dos argumentistas que colaboraram em
O Mosquito. Naturalmente que a entrevista foi feita à distância, com questões e respostas escritas, mas o Raul Correia infelizmente apresentava já lapsos em relação a coisas antigas.
Diz ele que o argumentista ROBERT BESS era o Padiña.
Foi um lapso do Raul Correia, pois o verdadeiro nome desse autor, era Roberto Ferreira, um jornalista do Diário Popular (e ou do Diário de Lisboa) amigo do Tiotónio, do Coelho e depois também meu. Foi até mais em casa do Coelho que tive com ele maior contacto. Foi autor do argumento da novela «Sunyana, o Rebelde» publicada em O Mosquito a partir do N.º 399, em 21 de abril de 1943.
É também curioso que essa novela ilustrada pelo grande Eduardo Teixeira Coelho, só foi publicada em O Mosquito, embora já pronta, depois das novelas: «AVENTURAS DE JIM WEST», «O MISTÉRIO DO STARNIGHT» e «LEIS DO OESTE», numa espera de quase 4 meses. Sei que essa novela do Roberto Ferreira teve as suas ilustrações prontas antes das outras saírem, mas não apurei o motivo. Na altura não interessava.
No entanto, pode ver-se a diferença de traço do E T Coelho, que foi evoluindo rapidamente nesse ano de 1943, quase de mês para mês. As primeiras ilustrações de «Sunyana» já fazem diferença das últimas, realizadas cerca de três meses depois e já não têm a ver com as das novelas publicadas antes dessa.
É uma curiosidade que só por agora reler esta entrevista me lembrei de trazer a lume, dando-a a conhecer ao meu amigo Machado Dias. (...)" -
Em 4 de Maio de 2012
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CONTINUA NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA, DIA 8 DE MAIO
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Devo realçar (o que certamente outros também já fizeram) a oportunidade de trazer de novo à ribalta esta entrevista feita por A. Dias de Deus a Raul Correia, já lá vão mais de 25 anos, e publicada n'O Mosquito da saudosa Editorial Futura.
ResponderEliminarPelo que me recordo, ela tinha sido gravada pelo Dias de Deus, não se tratando, portanto, de respostas escritas a um questionário prévio, mas sim de uma longa comversa informal, em que as perguntas e as respostas se sucederam de improviso.
Foi, aliás, por insistência minha que o Dias de Deus se resolveu a passá-la ao papel, a fim de ser publicada n'O Mosquito, e a sua extensão obrigou a que tivesse de ser dividida em três partes. Na altura, entendemos, eu e ele, que não deveria ser alterada uma linha, mesmo constatando que algumas das informações do Raul Correia não estavam correctas e que havia outros lapsos de memória.
Mas esta entrevista vale sobretudo, ainda hoje, pelo seu enquadramento histórico, numa altura em que se tentava recuperar o mito d'O Mosquito, embora em moldes mais modernos, dirigidos a um público de mentalidade e preferências bem diferentes. Infelizmente, a tentativa não durou muito...
Por último, não me querendo alongar mais, uma observação de pouca monta, mas que poderá interessar a alguns: a cena da tortura do ramo encurvado, citada por Dias de Deus, pertence ao 1º episódio, publicado entre os nºs 713 e 748 d'O Mosquito; a outra cena de tortura que ilustra o texto, aliás muito semelhante, apareceu num episódio posterior e o Falcão Negro safou-se dela sem problemas, ao contrário do que sucedeu na primeira vez, em que ficou ferido e agonizante, amarrado a uma árvore, com o ramo bicudo cravado na carne, até ser encontrado e libertado por um guerreiro índio de uma tribo amiga, que lhe tratou as feridas, levando-o para a sua aldeia (isto se não me atraiçoa a memória, pois não tenho esses números d'O Mosquito à mão)...
Um abraço do
Jorge Magalhães
R.C. - Vejamos: «O Falcão da Pradaria» - Raul Correia; «O País dos Ventos Ululantes» - José Padinha; «O Vale do Silêncio» - Raul Correia; «O Punhal do Imperador» - José Padinha?; «O Juramento de Águia Negra», «Um Caçador Fez testamento», «Quero Ser Palhaço», «Tobias Contou a História» - José Padinha? Quanto a «O Príncipe e o seu Fantasma», sabia que muitas dessas histórias eram adaptações de histórias inglesas? Essa, por exemplo, era de ficção científica. Eu nunca escreveria ficção científica, género que detesto.
ResponderEliminarD.D. - Sim, é um género que denota grande falta de imaginação.
R.C. - Pois é. Inventa-se um planeta estranho, fabricam-se uns habitantes desse planeta, e, no fim, fazemo-los actuar como se tivessem um comportamento humano. Ora, se houvessem outros tipos de vida, eles poderiam ser totalmente diferentes dos nossos. Até talvez nem fosse precisa a existência de água. Nós só falamos daquilo que já conhecemos.
As vezes pergunto-me porque é que a FC é tão desprezada em Portugal e são respostas como estas que me mostram o porque, mas a parte realmente irónica é que a BD sobre do mesmo estigma: ignorância.