ANTÓNIO DIAS DE DEUS CONVERSANDO COM RAUL
CORREIA - 2ª PARTE
Dias de Deus – Em relação a «Os Doze de Inglaterra», eu tenho uma hipótese, que gostaria de saber se é fundada. Esta história estaria prevista para ser incluída em «O Caminho do Oriente»?
Raul Correia – Sim, inicialmente pensei-a como um episodio a intercalar no «Caminho do Oriente»
D.D. – Em relação à «Patrulha do Sul», uma H.Q. de legionários que ficou incompleta, o que se passou?
R.C. – Não sei porquê, nem sei quem foi o argumentista, mas decerto não fui eu. Só tivemos outra H.Q. incompleta, já não sei por que motivo, que foi «Beric o Bretão», de origem inglesa.
D.D. – Queria falar-lhe da última história que o Coelho desenhou para «O Mosquito» e que ficou incompleta - «S. Cristóvão». Ficaram algumas pranchas inéditas, sem ser impressas?
R.C. – Não. Os últimos desenhos foram os que se publicaram.
D.D. – Tinha em perspectiva a publicação de outros contos de Eça de Queirós, além dos que já tinham saído?
R.C. – Sim! Pensava na trilogia completa dos Santos: S. Cristóvão, S. Frei Gil e Santo Onofre. Mas não consegui. Assim, só publicámos a Aia, o Tesouro, o Defunto...
D.D. – ... o Suave Milagre e A Torre de D. Ramires.
R.C. – Esse último não era um conto, mas uma adaptação que tive de fazer da novela que se encontra na «Ilustre Casa de Ramires». Foi a única adaptação que fiz do Eça. Quanto aos contos, respeitei a sua transcrição integral. Já não fiz o mesmo na Morte do Lidador, de Alexandre Herculano. Se vir o texto que o E.T. Coelho ilustrou, há-de notar que tem muitas diferenças do original.
D.D. – Em relação aos outros desenhadores portugueses que trabalharam no «Mosquito», o José Garces, o Jaime Cortez e o Victor Peon, foi guionista de alguma das suas histórias?
R.C. – De José Garces nunca fui guionista. Aliás, não me lembro bem dele, pois a parte gráfica estava a cargo do Cardoso Lopes. Do Jaime Cortez também não fiz nenhum guião. Do Peon é possível que tivesse feito o guião de alguma das primeiras histórias, mas não me lembro se o fiz. Dum desenhador que me lembro bem é do José Ruy, que trabalhava na parte gráfica.
D.D. – Sabe dizer-me ao certo quando é que o E.T. Coelho saiu de Portugal?
R.C. – Foi no principio dos anos 50. Ele tinha-se casado com uma sobrinha da mulher do Cardoso Lopes; depois houve um desentendimento e separou-se. Então partiu para o estrangeiro.
D.D. – Seria em 1953? Era natural que tivesse partido só depois de «O Mosquito» ter terminado.
R.C. - «O Mosquito» terminou em 1953? Já não me lembro bem das datas.
D.D. – Acha que se poderia ter evitado que o desenhador emigrasse? Isto é, ele teria possibilidades de prosseguir uma boa carreira se tivesse continuado em Portugal?
R.C. – Bem vê: aquilo que nós podíamos pagar era muito pouco. Muito menos do que os desenhadores valiam.
D.D. – Se tem visto alguns desenhos modernos do Coelho, acha que houve modificações do seu estilo?
R.C. – Há dias, quando estiveram cá aqueles dois rapazes do Clube Português de Banda Desenhada, o Carlos Gonçalves e o outro, não fixei bem o nome...
D.D. – O Geraldes Lino.
R.C. – Sim! Esse mostrou-me um álbum da História de França em Banda Desenhada com desenhos do Coelho, e os desenhos continuam a ser admiráveis.
D.D. – Sim, a anatomia e o movimento continuam perfeitos. Mas não lhe pareceu que os rostos dos personagens estão um bocado rígidos, com menos expressão do que antigamente?
R.C. – Talvez... O E.T. Coelho parece que está agora a desenhar uma coisa de que gostava muito - os pormenores de armaduras e de armas. Mas não sei muito acerca do que está a fazer. Esse rapaz do C.P.B.D. é que foi a Lucca e falou com ele. O Coelho foi sempre muito reservado, muito ensimesmado.
D.D. – Parece que sim. Há 2 anos, na Filgráfica, quisemos expor originais dele e só dispúnhamos dumas ilustrações, aliás magnificas, que fez para contos da «Formiga» e que estavam na posse do José Ruy. Depois fizemos fotografias dos painéis e mandámo-las. Pois ele não gostou nada. Ficou zangado e escreveu-nos que o estávamos a ridicularizar, expondo obras da sua juventude.
R.C. – Ai ele zangou-se? Isso é muito curioso.
D.D. – Queria agora pôr-lhe algumas questões, especificamente relacionadas com «O Caminho do Oriente».
R.C. – Que o Dr. muito amavelmente chamou «Os Lusíadas da Banda Desenhada»...
D.D. – E tenho razões para isso. Pergunto-lhe qual foi a motivação dessa história, qual é a parte que pertence a Raul Correia e a que pertence a E.T. Coelho, na criação e individualização dos personagens. Sim, porque nalguns casos vê-se bem que a inspiração veio de modelos reais.
R.C. – A base da história foi o roteiro de Álvaro Velho e pensei-a pouco tempo antes de começar a ser desenhada.
D.D. – Um ano antes?
R.C. – Menos! Uns meses. A minha ideia era que houvesse sempre um personagem que acompanhasse toda a história e que no final, tal como Charlot no filme «O Circo», voltasse as costas aos espectadores e se afastasse lentamente. Era o Simão Infante.
D.D. – Portanto, nunca pensou em utilizar o Simão Infante noutras histórias que viessem a ser publicadas a seguir...
R.C. – Não! O Simão Infante pertencia só a «O Caminho do Oriente».
D.D. – E, todavia, foi uma pena ele não se ter transformado num herói de série, pois não há muitos heróis de série em português, a não ser o Quim e Mañocas, o Zé Pacóvio, e talvez aqueles dois miúdos que entraram nas últimas histórias do Cortez. Os leitores conhecem o Tintín, o Cuto, mas quanto a heróis portugueses, nada... Fez um plano geral da história ou foi-a desenvolvendo gradualmente?
R.C. – Procurei cingir-me ao roteiro de Álvaro Velho. Claro que, por vezes, a história seguia direcções inesperadas, algumas por iniciativa do Coelho, por exemplo, a balada da conquista de Lisboa. Eu até lhe cheguei a dizer: «Veja lá se acaba a conquista de Lisboa, para a viagem do Vasco da Gama poder continuar».
D.D. – Portanto, alguns personagens são de invenção de Raul Correia e outros do Coelho. Quem pertence a quem?
R.C. – Por exemplo o «Broa» foi totalmente criado pelo Coelho. Eu seria incapaz de fazer um personagem assim. O Fernão Veloso é um personagem histórico; a sua entrada na narrativa foi uma decisão minha. Quanto a Simão Infante, fui eu que o criei.
D.D. – Para o Simão Infante, o Coelho usou algum modelo vivo?
R.C. – De facto o Coelho usava muitas vezes modelos vivos. No caso do Simão Infante sei que havia um miúdo que posava para ele.
D.D. – Já agora, um apontamento: em 1978, na Filgráfica, apareceu-nos no Stand do C.P.B.D. um individuo, com cerca de 40 anos, que declarava ter servido de modelo para o «Dinamite», na novela «Dinamite», Cocacola e Vendaval». Parece que, na altura, era paquete, ou aprendiz, numa tipografia em que o Coelho trabalhava. Fiquei com pena de não ter colhido mais informações na ocasião, mas, com a azáfama da F.I.L, isso passou-me da cabeça. Queria saber, ¡á agora, quem dava as cores em «O Caminho do Oriente», que acho terem sido muito bem aplicadas.
R.C. – As cores eram escolhidas por Cardoso Lopes e era também ele quem pintava.
D.D. – Parece que algumas vezes o José Ruy também ajudava...
R.C. – Sim, algumas vezes.
D.D. – Volto a repetir que considero as cores de «O Mosquito» muito bem aplicadas, apesar de não serem, ou mesmo por causa de não serem em tricromia. Apenas com uma cor, ou, quanto muito, com duas, valoriza-se mais o desenho.
R.C. – Não... A policromia abre novas possibilidades ao desenho. No caso do Coelho, ele não se ocupava em dar as cores e creio que, mesmo agora, são outros que lhe tratam disso.
D.D. – Sabe onde foram parar os originais de «O Caminho do Oriente»? Julgo que alguns devem estar nas mãos de Jaime Cortez, porque ele imprime, às vezes, pranchas muito perfeitas, que só parece terem sido tiradas de originais.
R.C. – Não, não sei onde foram parar as obras do Coelho. Sei que ele fez umas pinturas murais, numa casa particular, na freguesia da Sé. Levou-me para vê-las, uma vez. Ficavam ao lado duma escadaria, com luz vinda de cima.
D.D. – Eram frescos?
R.C. – Não sei bem se eram frescos ou se seria tela estendida sobre a parede.
D.D. – Em que altura foi isso? Seria em 1947, no ano do Cortejo Histórico?
R.C. – Não. Foi já depois do Cortejo Histórico.
D.D. – Alguém mostrou alguma vez interesse em fazer uma versão cinematográfica de «O Caminho do Oriente»?
R.C. – Não conheço.
D.D. – Mas, li uma vez que o Leitão de Barros tinha talado no assunto...
R.C. – O Leitão de Barros tinha muitas ideias mirabolantes que mudavam de um momento para o outro. Repito: não conheço ninguém que estivesse interessado em fazer um filme.
D.D. – Vou dar-lhe a conhecer duas apreciações que foram emitidas a propósito de «O Caminho do Oriente», e gostava de saber se aceita as duas, se rejeita alguma, rejeita ambas, ou propõe uma interpretação diferente. São elas:
1.0 - Elogio do imperialismo português.
2.0 - Epopeia vista ao nível do chão.
R.C. – Bom. Quanto à primeira, acho que as avaliações devem ser feitas conforme a época em que os acontecimentos se deram. Se não, estamos a deformar as situações reais. É verdade que houve uma expansão portuguesa, um controle de mercados, como agora se diria, acompanhada por cenas de grande violência e assassinatos, como também os espanhóis fizeram na América Central e do Sul.
D.D. – Essa é uma característica de todos os expansionismos e imperialismos.
R.C. – Quanto à segunda opinião - uma epopeia vista ao nivel do chão - acho que sim, acho que concordo com ela. O que eu queria contar era precisamente o esforço do homem do povo, o esforço anónimo daqueles que não são recordados na História, mas que são eles que fazem a História. Procurei nunca fazer politica e acho a politica como qualquer coisa de repelente, que tem de ser suportada. Faz-me lembrar aquele monstro disforme e baboso que aparecia a Santo Onofre, e que era um monstro mudo, que assusta só de estar a olhar para nós. Conhece o conto de Eça de Queirós?
D.D. – Conheço, sim.
R.C. – E depois lembro-me daqueles senhores que se apoiam na política e se servem da politica, pensando que, por esse motivo, são pessoas muito importantes. E, no fundo, não valem nada.
D.D. – Finalmente, continuo a investigação, centrada agora sobre a figura do escritor Raul Correia. Alguns dados biográficos, por favor.
R.C. – Nasci a 11 de Dezembro de 1904, em Lisboa, na rua da Prata, que se chamava então Rua Nova da Rainha. Tive muitas profissões: guarda-livros, empregado bancário, etc.
D.D. – Escreveu novelas antes das que foram publicadas no «Tic-Tac»?
R.C. – Sim. Evidentemente, quando somos novos, escrevemos versos que nunca publicamos. Os primeiros contos que publiquei foram, de facto, os do «Tic-Tac».
Foto de Geraldes Lino
(continua)
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